terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sarrar, verbo imprescindível


Não viveu quem passou por essa vida sem ter sarrado. Não viveu quem não experimentou ainda que fosse aquele sarro às pressas, interrompido ao meio por um susto, um flagrante, uma luz acesa. Sarrar é orgânico. Vem de muito longe. Está lá no velho Aurélio que, mesmo com aquele jeitão antiquado de explicar as coisas, conta que sarrar é uma espécie de bolinação da humanidade que vem desde a civilização pré-romana. 

 

Nossos ancestrais enchiam a cara de vinho e aos poucos iam se encostando uns nos outros até passarem a noite em rituais de sarro. 

 

Muitos de vocês já nasceram vítimas de um sarro. Sarro mal calculado, é verdade! Coisa de amadores! Porque o sarro mesmo mora na pureza humana. Não tem penetração! É algo quase bíblico e regulado por um código de ética que te impede de perder a cabeça mesmo nas circunstâncias mais tentadoras.  

 

Sarro não tem absolutamente nada a ver com preliminares. Sarro é sarro. E ponto. Romeu e Julieta não foram além do sarro, mas sarraram tanto que acabaram mortos, reféns da incompreensão de suas famílias e da má vontade de Shakespeare. Cleópatra, a mocreia egípcia, sarrou com metade da população da Antiguidade. Ironicamente, morreu de uma picada.

 

Sarro e morte sempre caminharam próximos, mas não necessariamente juntos. Sarrar sempre foi perder a noção do perigo, correr riscos, desde os tempos de Madame Bovary, Anna Kareninna e Capitu. Sarro é mais tradição que traição.   

 

Sarrar é uma arte que exige dos incautos certas habilidades, como controle emocional e coordenação motora – e o nível intermediário de um curso de contorcionismo, claro. Sarrar dentro de um Fusca, por exemplo, em empreitadas malsucedidas poderia causar danos irreversíveis ao corpo. Conheci pessoas que já chagaram ao pronto-socorro com o pé enganchado no porta-luvas ou uma alça do intestino presa no freio de mão.



O tema parece saudosista, mas é que o sarro anda meio esquecido pelas novas gerações. O sarro raiz, aquele no pé do muro ou debaixo da mesma goiabeira onde Damares viu Jesus pela primeira vez, corre o risco de extinção. 

 

Sarrar era o prelúdio do sexo. Mas não era o sexo. Era o estado da arte do tesão. O sarro tinha algo a ver com refinamento do humor, euforia da carne, fome do corpo. Sarrava-se no corredor da escola, na cantina, no quarto da prima, no escuro do cinema, no portão da casa da namorada, naquele mergulho a dois na piscina ou no mar. Sarrava-se com as amigas do colégio vestidas naquelas calças de tergal cafonas.

 

Todo mundo sarrava. Sarrar era fazer poesia a dois – na vertical, na horizontal – e deixar o cheiro de versos lúbricos impregnados na roupa. Feito epidemia.

 

Hoje não há mais sarro. Eles chamam de pegação. Pegação é o sarro Nutella, sem criatividade ou rumor! Não é a mesma coisa. Sarrava-se na base do consentimento. Pegação é quase assédio! 

 

Sarro é menos pé no chão. Sarro é mais Vera Fischer e menos Regina Duarte!

 

Sarrar nunca foi tão humano e necessário como nos dias atuais! Um ato revolucionário capaz de curar almas sebosas, intolerantes! Um dia, quem sabe, pentecostais arrependidos ainda hão de pregar nas redes sociais a redenção do sarro. 


Porque o sarro salva!     


domingo, 22 de novembro de 2020

Um poeta sentado no mundo


 

Não espere aqui um poeta de terno e gravata com o meticuloso hábito de escrever versos nos finais de tarde de uma segunda-feira, depois do expediente. Em Delações, Daniel Blume desata de vez o nó da circunspecção e joga-se por inteiro na desordem da poesia, como o intrépido equilibrista de um circo sem lona, sem redes de proteção. 

 

O quarto livro de poesias de Daniel Blume tem asas, bossas, bagagens e expõe um poeta agora sentado no mundo. O chão da aldeia, os personagens desnudos, os corpos cambaleantes, a tinta dos bardos e as paisagens possíveis formam esse caleidoscópio fronteiriço na obra do autor.

 

Delações, como o próprio nome sugere, é um mosaico bem sortido de percepções – algumas delas insofismáveis, límpidas; outras, enfeitando talvez o invisível mapa de descobrimentos da linguagem. Sim, o poeta espraia-se na página ávido de mar, de céu, de sol, de gente, e movido pela necessidade devoradora de perceber as coisas, de reinventá-las, delatá-las. Quem sabe dilatá-las, expandi-las, até que se desintegrem feito partículas de um qualquer poema. 

 

A poesia de Daniel Blume vem também dos prados e das pedras, das urbes e das uvas, às vezes cresce como as marés de agosto. As tramas de cores, as fagulhas do recomeço, as fissuras no tempo, os outonos do destino estão em toda parte, como ‘ossos dos dragões no parque’. Não é todo dia que a poesia age como pintura. 

 

Em Delações é bem capaz o leitor de se reconhecer no escuro claro das dúvidas ou nos lampejos incandescentes que margeiam a escritura de Daniel Blume. A alma do autor está na bandeja, nua, desassossegada. A poesia – ‘Sabem tudo o que revelei/ não tudo o que sou’– apenas insinua. 

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cartas do futuro (1)


Você era tão linda de máscara. O castanho escuro dos olhos, cílios guarnecendo suavemente as pálpebras, sobrancelhas com desenho delicado realçando a pele alva, a voz um tanto embaraçada na franja seminua do tecido... 


Aquele ar de mistério por trás do adereço me ganhou no primeiro encontro por entre as gôndolas da farmácia, na seção de cosméticos. Era março ainda. Um dia pra não esquecer. Disputamos quase ao mesmo tempo o último frasco de álcool gel da prateleira. Deixei que você o levasse, as mãos úmidas e ligeiramente trêmulas tateando o medo.


Com o tempo, fui me encantando mais e mais. O cabelo esvoaçante, os brincos de um metal suave enfeitando a tarde, o movimento sutil dos ombros ao dissimular a timidez, o perfil político compenetrado, a servidão aos protocolos, o jeito de falar dos receios da solidão, de me advertir sobre riscos de contágio, tudo me fascinava.


Até aquela máscara tinha um quê de sedução. O tecido lembrava um veludo lilás que me remetia à infância... As alças encobertas por fios de algodão peruano eram qualquer coisa de outro mundo, não feriam a pele, não te deixavam orelhuda como eu percebia em outras mulheres mais descuidadas. Ao contrário da minha, tua máscara nunca embaçava os óculos de aros modernos e lentes de policarbonato.


Você era tão linda de máscara. Parece que o bairro todo parava pra te ver saindo de casa entonada naquela máscara último modelo, design arrojado... Alimentei por longos meses o desejo de tocar tuas mãos, de lentamente retirar tua máscara (e guardá-la como se estivesse colecionando um amuleto, um troféu), de sentir teus lábios, de me enroscar na tua língua que jamais avistei...


Por tantas vezes me peguei imaginando o recorte do teu nariz, a boca carnuda, os dentes alvos, o hálito de pastilha Walda. Mas mantivemos o distanciamento sexual, como premonitoriamente pedira a ministra. 


Jamais vou esquecer aquele teu aroma têxtil que me causava um certo borogodó. E que as outras meninas não tinham.


Os dias se passaram e nós ali, encegueirados, nas aulas online, no homework, no delivery, na rotineira expectativa do PCR... 


Aí veio a vacina. E você tirou a máscara, Íris! 


Agora, fevereiro, estamos nós em pleno Carnaval. Ah, você era tão linda de máscara... Mas hoje, aqui no meio da folia, nessa aglomeração infinda, observando teus traços à luz da ciência, vejo que restou da gente apenas aquele vulto de um veludo lilás.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

A fruição da história



Quando a literatura liquidifica-se com desmedida elegância e é servida ao leitor com doses alquímicas de cinema, música, quadrinhos e toda a parafernália da cultura pop, estamos diante de algo revelador e muito próximo da crua realidade contemporânea. Assim é Bangu à beira-mar, o romance de estreia de Érico Cordeiro que ao mesmo tempo seduz, pela narrativa envolvente e a combinação de episódios pitorescos da história, e espanca, pela habilidade com que esgrime o som e a fúria de certos personagens.   

 

Érico Cordeiro não é cristão-novo na literatura. Já publicou outros títulos sobre música e cultura contemporânea, dois temas que ele domina com insuspeitada devoção, e tem em casa pelo menos dois balaios de poemas prontos para qualquer quermesse intelectual. Mas em Bangu à beira-maro autor inaugura uma jornada nova na sua escritura. A tecelagem de um romance exige imaginação engenhosa e uma certa fleuma em relação ao fato narrado e a urdidura dos personagens.  

 

O livro deliberadamente funde ficção e realidade – aquilo que o próprio autor classificará como obra de fricção – e esboça um mosaico de nomes, lugares e incidentes, numa espécie de nuvem que encobre a aventura humana na terra do clã Baptista de Moura Facundo e daqueles que estão na sua órbita.  

 

Tudo começa no sertão do Ceará do início do século passado, quando um coronel arruinado, como outras “multidões de avoantes sem asas”, comanda a diáspora rumo ao desconhecido no sudeste brasileiro. É, antes de tudo, um romance visceral entrecortado por uma poesia com alma, pólvora e dentes.

 

Do sertão para o Rio de Janeiro, que experimenta, como agora, os efeitos da gripe espanhola, o inimigo invisível que aterrorizou o mundo entre 1918 e 1920. Do Rio para Milão, o autor deixa rastros de um bem armado enredo policial e traz de roldão, diretamente ou por vias transversas, personagens conhecidos da ciência, do meio artístico, da economia e da política, e segue embolando imaginação e realidade com a desenvoltura de um prosador nato, arrojado.

 

Nise da Silveira, Dona Ivone Lara, João do Rio, Ataulfo Alves, Herbeth de Souza, Gramsci, 

Prestes, Sinhô, Madame Satã, Marighella, Vargas, Mário Lago e outros vão entrando livremente na história de Érico Cordeiro ao lado dos fictícios Baptista de Moura Facundo, todos nomes postos numa féerica e lúcida linha de montagem narrativa. Frente a frente com Mussolini, o autor mergulha nas entranhas do fascismo com a destreza de um samurai.     

 

Da Itália para a Lapa, a boêmia, o samba, o terno de linho branco, o cheiro do sexo, o coldre e o vermelho sangue espirrando nas sombras de um Rio antigo e malandro. A viagem está posta na página. A tarifa de embarque é o apetite do leitor para a venturosa fortuna daquela inventividade quase verossímil que só os bons autores são capazes de empreender. Bangu à beira-mar é uma obra em franca fruição. 

 

 

domingo, 11 de outubro de 2020

Como se não fosse o mar

 

Hoje o mar de São Luís amanheceu diferente. Não era o mesmo mar que conheci desde quando aqui cheguei para ficar, ainda criança. Não eram as mesmas ondas, as mesmas águas. Era outro o mar, como se aquele velho mar desbotado pelo tempo – ou pelos meus olhos descorados de tanto mirá-lo – houvesse enfim partido para outra costa. 

 

Vim de onde não havia mar. De dentro do Maranhão, meu mar eram dois rios, correntezas que ainda hoje atravessam o imaginário de menino. Só conheci o mar verdadeiro aos 12 anos e logo cedo aprendi a reverenciá-lo. A ilha que passei a habitar me deu de presente esse fascínio pelos mistérios de um oceano particular. O mar de São Luís passou a ser o meu lugar. 

 

Vindo de onde não havia mar, natural seria que eu não me envolvesse tanto, que me contentasse com qualquer mar. Mas um mar puxa outro. E vi que outros mares não eram como o mar de São Luís. E nunca vão ser, felizmente! Mas comecei a achar, ingenuamente, que havia um quê de ingratidão no mar que banhava as nossas praias. 

 

Mares exuberantes, desses que saem nas fotos de revista, enfeitavam praias de outras cidades brasileiras, coloriam litorais de outros países. O Nordeste sempre figurou na lista das mais belas praias do Brasil. Mas não a Ponta d’Areia, o Calhau, o Olho d’Água, o Araçagi. E nós aprendemos a cultuar a ideia de que temos praias feias, porque “a cor da água não ajuda”, como dizem alguns turistas, relativizando teorias sobre estética. 

 

Mas hoje o mar de São Luís amanheceu diferente. A cor barrenta da água, como se fora um rio amazônico, desapareceu com a impetuosidade do sol de outubro e deu lugar a um verde quase esmeralda. Difícil não notar a diferença. Desde o ano passado, um verde tímido vem ensaiando avançar sobre o Golfão Maranhense. E hoje esse verde altivo deu às nossas praias a beleza que nunca enxergamos.  

 

As praias, no entanto, continuam impróprias para o banho. E bares e restaurantes da orla ainda não contam com estrutura adequada. Mas o nosso mar já tem o verde. E algo mais que outras cidades litorâneas não têm: a Ilha do Medo, a Ilha do Cajual, o Boqueirão, Alcântara, o Cais da Sagração, o nosso pescado, os nossos catamarãs, as bianas, os nossos mestres artesãos navais...  

 

Talvez não seja ainda um verde definitivo, como no mar das Caraíbas. Talvez sejam as algas. Talvez sejam as águas dos rios que aqui desaguam. Talvez seja a falta de chuva. Talvez. Mas o mar de São Luís já não é mais o mesmo, depois de hoje. Porque até a brisa que sopra da baía de São Marcos agora ganhou uma nova cor.

sábado, 5 de setembro de 2020

A península dos carcarás

Há cerca de quatro meses um casal de carcará iniciou em São Luís, mais precisamente na janela de um apartamento no bairro da Ponta d’Areia (na área onde alguns renomearam de Península), uma jornada insólita que tem chamado a atenção de veículos de comunicação e biólogos de outras regiões do Brasil. O macho e a fêmea esmeram-se dia após dia na construção de um enorme ninho, que provavelmente servirá de local para incubação de ovos e abrigo de futura ninhada.

 A aventura vem sendo acompanhada de perto por Mariana Carvalho, a dona do apartamento, que se dedica a documentar em fotografias e vídeos a evolução do ninho e o comportamento das aves. Tudo começou como uma espécie de efeito natural da pandemia da Covid-19. Com as medidas de isolamento e o lockdown em São Luís, Mariana mudou com a família para a casa dos pais. E logo nas primeiras visitas ao apartamento desabitado, para recolher correspondências, começou a perceber a presença de alguns gravetos na janela de um dos quartos.   

 

Ao voltar de vez para o apartamento, no início de julho, Mariana viu que além de gravetos havia pregos, arames, fios elétricos e até sacos, todos já devidamente emaranhados formando um ninho gigante. E Mariana percebeu que havia também duas aves incomuns no prédio onde mora. Ao fotografá-las, e depois de pesquisar na internet, soube que estava hospedando em sua janela dois carcarás adultos.


 

Nos últimos dois meses o ninho só cresce. Mariana diz estar impressionada com o engenho das aves, com o zelo para erguer o ninho, com a riqueza do trançado. Em nenhum momento ela pensou em se desfazer daquela paisagem. A curiosidade pelos caprichos da natureza tem falado mais alto. 

 

É claro que a presença dos carcarás provocou uma mudança de hábitos em casa. Todas as janelas são mantidas fechadas e, para não espantar as aves com os movimentos dentro de casa, Mariana instalou uma película de fumê na vidraça onde está localizado o ninho. Assim, até a filha bebê pode assistir com segurança aos movimentos de “pássaros tão esquisitos”. 

 

Mariana fez do quarto um set de gravação das cenas de acasalamento dos carcarás. Tudo isso virou um quadro chamado “Diário de um ninho”, na página Terra da Gente, no portal eletrônico G1 de Campinas (SP).  


 

Eternizado na música de João do Vale, com a terrível fama de quem “pega, mata e come”, o carcará é uma ave de rapina da família dos falcões e dos gaviões, presente na região central e no sul da América do Sul, e pode medir de 60 a 70 centímetros de altura e até 1,20 metro de envergadura. 

 

Os novos inquilinos de Mariana chegam ao apartamento rotineiramente às cinco da manhã e por lá permanecem até as dez horas. Às vezes voltam à tarde – em determinada ocasião chegaram até a dormir no ninho. À janela no décimo andar costumam levar répteis, peixes e vísceras de outros animais para a refeição com vista para o mar.  

 

Não se sabe ao certo quanto tempo ainda vão levar para a conclusão do ninho. A situação inusitada é acompanhada virtualmente por curiosos e biólogos. A expectativa da família e dos amigos de Mariana é com a postura dos ovos e a cria de uma nova ninhada. Tudo pode acontecer nos próximos dois meses, a depender do grau de exigência das aves no acabamento do ninho.

sábado, 13 de junho de 2020

Fernando Pessoa e a mensagem ao mar



Único livro publicado em vida por Fernando Pessoa, um ano antes de sua morte, Mensagem é uma obra que, em mais de oito décadas, ganhou várias edições e ainda hoje suscita debates e diferentes interpretações de críticos e estudiosos que se dedicam à fortuna literária deixada pelo escritor português. Hoje, 13 de junho, dia do nascimento do poeta, mais uma vez Mensagem vem a lume pela extraordinária engenhosidade poética, e pelas características peculiares de livro épico com os pés no mundo, na modernidade.

Entre a poesia e o poeta existe um imenso mar. E há muito tempo pesquisadores aventuram-se na marcha inglória de compreender esse mar de hipóteses que vai muito além do Bojador, o limite entre homem e o mundo. Mas, entre compreender, impassível, e mergulhar nas águas salgadas de Pessoa, é melhor seguir viagem, ainda que apenas “fitando a proibida azul distância”.

Há 25 anos, a Academia Maranhense de Letras, numa iniciativa do seu então presidente Jomar Moraes, e com o apoio do empresário português Manoel Alves Ferreira, do Grupo Lusitana, empreendeu uma edição histórica da obra de Pessoa, por ocasião da passagem dos 60 anos de morte do poeta.

A Mensagem maranhense de 1995, com uma versão extra, limitada, impressa em capa dura – os cinquenta exemplares, devidamente numerados, não chegaram a ser vendidos – contém texto introdutório e notas assinados por Jomar Moraes, além de recheio iconográfico que ajuda a compor a biografia do poeta e a dinâmica da sua poesia, como a foto de uma tela do artista plástico Floriano Teixeira retratando a lenda do Rei Dom Sebastião.

Segundo o professor Ivo Castro, à época coordenador do Grupo de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição da Obra Completa de Fernando Pessoa, o livro impresso no Maranhão era, até aquele período de sua publicação, a “melhor e mais completa” edição de Mensagem. Isso porque, segundo apurou o escritor e acadêmico Sebastião Moreira Duarte, a edição maranhense fez um criterioso cotejo da edição com os poemas originais datilografados e corrigidos à mão por Fernando Pessoa. Os originais, reproduzidos em páginas do livro da Academia Maranhense de Letras, foram trazidos a São Luís por Ivo Castro, que também fez a revisão final da obra.



O primeiro poema de Mensagem foi escrito em 1913, quando Pessoa tinha 25 anos: “Cheio de Deus, não temo o que virá,/ Pois, venha o que vier, nunca será/ Maior do que a minha alma”. Mas o livro, cujo título inicial era Portugal, só foi publicado em 1934, quando o autor, incentivado por amigos a participar do Prêmio Antero de Quental, do Secretariado Nacional de Informação, o SNI do governo português, reuniu às pressas alguns dos poemas escritos naqueles últimos vinte anos.

O concurso tinha como objetivo premiar em cinco mil escudos o melhor livro de poesia com estampa nacionalista. Portugal vivia, em 1934, o Estado Novo e estava sob o comando de António de Oliveira Salazar, que reproduzia no país o modelo do fascismo italiano de Mussolini.

O regulamento do concurso exigia um livro com o mínimo 100 páginas. Os 44 poemas de Mensagem, somados a algumas folhas em branco enxertadas de última hora no livro, não chegavam às 100 páginas e o conjunto da obra não era exatamente a exaltação patriótica almejada pela comissão julgadora do certame. Nem mesmo por António Ferro, presidente do júri e amigo de Pessoa.

O Prêmio Antero de Quental foi conferido ao missionário franciscano Vasco Reis pelo livro Romaria, de forte carga ufanista e religiosa, como o próprio título sugere. A Fernando Pessoa coube uma condecoração de segunda categoria, como poesia solta, um prêmio de consolação arranjado por António Ferro, também no valor de cinco mil escudos.

O escritor Sebastião Moreira Duarte aponta em pesquisa que há um elo entre Vasco Reis e um nome maranhense. O vencedor do Prêmio Antero de Quental foi seminarista no Colégio Seráfico de Montariol, em Braga, Portugal, por onde também passou o poeta Bandeira Tribuzi, entre os 10 e os 18 anos de idade. Além de contemporâneos, ambos teriam publicado juntos poemas na revista Alvorada Missionária.


Muitas vozes na Mensagem de Pessoa

Mensagem é uma obra aberta, um labirinto cheio de pistas, mas em determinadas passagens a leitura pede conhecimento mínimo da história de Portugal. Os 44 poemas estão divididos em três partes: Brasão, que aborda as origens de Portugal e estende-se até princípios da expansão marítima; Mar Português, que alcança o apogeu das conquistas marítimas de Portugal; e O Encoberto, que esboça a mística do sebastianismo.

Mas no meio de tudo está a lírica de Fernando Pessoa, capaz de dialogar com o imaginário de qualquer leitor, a exemplo de versos como estes: “Vale a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena” (o mais famoso deles); “Os Deuses vendem quando dão”; “A vida é breve, a alma é vasta:/ Ter é tardar”; “Triste de quem é feliz!”.

A ordem de apresentação dos poemas no livro não segue a cronologia da escrita. Como são poesias compostas em diferentes épocas, ao longo de quase 21 anos, Pessoa deu a elas uma certa unidade de compreensão, com base em personagens e passagens da história. Mensagem começa onde Os Lusíadas, a epopeia de Luís Vaz de Camões, provavelmente termina.

Há quem veja, nas entrelinhas, um diálogo entre as obras de Camões e Pessoa, embora em Mensagem não haja sequer uma menção a Os Lusíadas ou a Camões. Para o crítico literário Harold Bloom, Fernando Pessoa aprendeu a conviver com a “angústia da influência” de Luís de Camões. Ainda em 1912, Pessoa falava, em artigo sobre a nova poética portuguesa, de “uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso”, capaz de gerar um supra Camões. Na avaliação dos estudiosos, Pessoa falava de si ao profetizar a chegada de um novo “Grande Poeta” em Portugal.

Apesar de fazer referências explícitas ao passado glorioso, a poesia de Fernando Pessoa em Mensagem tem na sua essência obsessão por aquilo que ainda viria a acontecer, servindo-se, para tanto, de múltiplos recursos enigmáticos, adivinhações, presságios.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
(Mar português)

Embora premiado em plena era do salazarismo – a tendência fascista mais duradoura da Europa –, os poemas de Mensagem são uma espécie de antítese ao discurso de Salazar, reconhecidamente descritivo, racional e enfadonho. A retórica de Salazar pregava um povo anestesiado no silêncio. Para ele, e em geral para o fascismo, o importante era o todo, e não o indivíduo. Com base nos feitos grandiosos do passado, seria Salazar “um predestinado a salvar o povo português”.

Com Mensagem, Fernando Pessoa embaralha passado, presente e futuro, com sua profusão de vozes – algo tão comum em suas dezenas de heterônimos – dentro de cada poema. Durante algum tempo, o fascismo de Salazar “apoderou-se” do livro de Pessoa, o que rendeu à obra do poeta um distanciamento longo e deliberado por parte do público e da crítica.

Só com o fim do salazarismo, e após a Revolução dos Cravos, já na década de 1970, Pessoa passou a ser cultuado como um poeta transgressor, de viés libertário, não vinculado a qualquer regime político, mas à sua pena somente, ao bom teatro do fingimento.

Mensagem não reflete, portanto, um nacionalismo cego, exacerbado. Há nele um país que enxerga o passado glorioso, mas que está ainda, como no último poema do livro, o enigmático Nevoeiro, preso em um presente turvo. O verso final é uma convocação otimista para o triunfo futuro: “É a hora!”. Mensagem é uma permanente procura do homem pela sua origem, pela sua alma.


O sebastianismo à espreita

O lado visionário e místico de Pessoa, a inquietação da personalidade, a complexidade e as contradições estão associados ao sebastianismo que, como dizem, é um pedaço indissociável da alma portuguesa. Sebastião, “O Desejado”, viveu no século XVI, assumiu o reinado de Portugal e Algarves aos 14 anos e desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir contra os mouros.

Desde então, surgiu a lenda de que Dom Sebastião, como um messias redentor, voltaria das Ilhas Afortunadas numa manhã de nevoeiro para instalar no mundo o Quinto Império, um poder divino que emanaria de Portugal, profecia difundida pelo sapateiro Gonçalo Bandarra e também popularizada pelo padre António Vieira, a quem Pessoa chama em Mensagem de “Imperador da língua portuguesa”.

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar.
(O Quinto Império)

É por meio da imagem do sebastianismo que Fernando Pessoa reconstrói a lenda de Bandarra e Vieira para acender a chama, entre os portugueses, da identidade nacional, perdida ao longo de anos de declínio e ostracismo. Pessoa faz uma releitura da lenda para moldar aquilo que define de sebastianismo racional: “Mas a chama, que a vida em nós criou/ Se ainda há vida ainda não é finda”.

A lenda do Rei Dom Sebastião atravessou o Atlântico e veio ilustrar a imaginação popular e a literatura nos trópicos. O sebastianismo está presente em obras dos maranhenses Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi, Manoel Caetano Bandeira de Mello e Josué Montello, dentre outros.

Da costa africana para o litoral norte do Brasil. Sob as dunas da Ilha dos Lençóis, no município maranhense de Cururupu, dizem que habita o Rei Dom Sebastião. Segundo a crença popular, nas noites de São João “O Encoberto” surge em forma de um touro negro correndo assustadoramente pela praia.

“O encantamento do rei terminará no dia em que alguém que testemunhe a aparição se revista da necessária coragem para fazer na testa estrelada do touro uma incisão de que jorre sangue (...). O maremoto ocasionado por tal acontecimento fará submergir, na fúria das águas revoltas, a ilha de São Luís do Maranhão”, relata Jomar Moraes no livro O rei-touro e outras lendas maranhenses – trecho também citado na nota introdutória da edição maranhense de Mensagem.

Ou seja, na crendice que chegou ao Maranhão, bem como a outras paragens, a imagem do Rei Dom Sebastião não está associada a esperança ou redenção. No caso da Ilha dos Lençóis, onde existe até um pequeno memorial dedicado ao regente português, o símbolo do rei-touro remete a mistério, medo e tragédia: “Que guarda o Rei desterrado/ Em sua vida encantada?”.


O baú musical do poeta

Em 1985, na passagem dos 50 anos de morte de Fernando Pessoa, um cineasta e músico baiano, igualmente visionário, iniciou uma jornada que duraria 30 anos até o lançamento de um “baú” contendo três CDs e dois DVDs com gravações musicais dos 44 poemas de Mensagem. André Luiz Oliveira, há anos radicado em Brasília, fez história ao reunir no projeto grandes nomes da música brasileira, portuguesa e cabo-verdiana, em interpretações arrebatadoras.

André Luiz conta que foi “abduzido” pela poesia de Fernando Pessoa ainda na adolescência, nos anos 1960, e também quando passou uma temporada em Lisboa, onde conviveu com artistas e chegou a tocar na noite, na década de 1970. “Com o tempo, esse contato com a poesia de Pessoa virou admiração e as coisas foram acontecendo por uma questão de necessidade, ou talvez magia”. Segundo André Luiz, essa admiração transformou-se em encantamento. “Com o tempo, fui alimentando uma paixão enorme pela vida e obra do poeta, atordoado por saber que ele falava tão profundamente de mim mesmo”.



O primeiro espanto de André Luiz com a obra de Pessoa ocorreu pela TV, ao assistir a Caetano Veloso interpretando a provocadora É proibido proibir no Festival Internacional da Canção, em 1968. “Aquilo era um hino convocatório para nós, que vivíamos aquele momento de virada de costumes, brigando contra a ditadura militar, querendo mudar o mundo”. Em determinado trecho da música, entre solos estridentes de guitarra, Caetano vociferava Pessoa:

Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo que esteja a alma imersa
em sonhos que são Deus. (…)
(D. Sebastião)

Os versos ecoaram por algum tempo. Então, em 1985 o baiano resolveu transformar em melodia os poemas de Mensagem. E diz que as músicas surgiram em sua cabeça quase que subitamente, “algo sem explicação”. Compôs 12 faixas, de uma assentada, e convidou para interpretá-las nomes como Caetano Veloso (Padrão), Gilberto Gil (Prece), Zé Ramalho, Belchior, Moraes Moreira, Ney Matogrosso, Elizeth Cardoso, Gal Costa e Elba Ramalho. Ou seja, um time de primeira grandeza da MPB associado a interpretações da fadista Glória de Lourdes e do próprio André Luiz. E tudo isso com arranjos de Francis Hime.

Com o patrocínio da Gradiente, e as músicas já devidamente gravadas, no início de 1986 André Luiz procurou o governo federal para apresentar o projeto, que previa ainda a gravação de um videoclipe para cada música e a prensagem de um LP. No restaurante Beirute, em Brasília, conheceu o publicitário maranhense Fábio Gomes, que era adjunto da secretaria executiva do recém criado Ministério da Cultura. André apresentou o projeto a Fábio, que ficou impactado com o que ouviu.

Sarney estava com viagem programada em maio de 1986 para Portugal, onde receberia o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. E pediu à equipe do Ministério da Cultura que providenciasse um presente protocolar a ser entregue na visita ao presidente português Mário Soares. Fábio Gomes sugeriu a Sarney que levasse um vídeo com os poemas de Fernando Pessoa cantados por artistas brasileiros.

Com o sinal verde de Sarney, André Luiz e Fábio Gomes tiveram pouco mais de um mês para a gravação de videoclipes com cada um dos intérpretes. Montaram uma equipe de quatro diretores publicitários, entre os melhores do Brasil, para o registro dos clipes em diferentes cenários.

Gil cantou Prece na catedral de Brasília; Gal Costa interpretou Nevoeiro nos jardins da Embaixada de Portugal; Elba Ramalho gravou O Infante na Restinga da Marambaia; e André Luiz Oliveira usou o litoral baiano para dar vida a Mar salgado, só para citar alguns. O poeta e crítico Mário Chamie escreveu o texto do vídeo – com base nos poemas de Pessoa, intercalando as músicas – que foi narrado pelo ator Raul Cortez.

Foi com o resultado de toda essa produção que Sarney desembarcou em Lisboa, três meses depois de ter lançado no Brasil o Plano Cruzado. O vídeo, entregue a Mário Soares com o título de “Mensagem a Portugal”, causou tanto impacto que foi exibido em horário nobre pela emissora RTP durante toda a semana da visita de Sarney.

Ainda no segundo semestre de 1986 o LP foi lançado pela gravadora Eldorado, com as 12 faixas e 30 mil cópias encomendadas pela Gradiente para distribuição a instituições acadêmicas, imprensa, parceiros e clientes.

Em 2003, André Luiz Oliveira lançou o disco Mensagem 2, dessa vez em CD e DVD, com outros poemas do livro de Pessoa, arranjos de Leandro Braga e a inclusão de novos intérpretes, como Milton Nascimento (D. Tareja), Daniela Mercury (Os Colombos) e Cida Moreira (Ocidente). O maranhense Zeca Baleiro participa da segunda edição do projeto interpretando Ulisses.

Em 2012, o cineasta e músico baiano iniciou as gravações do disco Mensagem 3, em São Paulo, Salvador e Lisboa, fechando o ciclo musical dos 44 poemas do livro de Fernando Pessoa. No terceiro CD, outra participação maranhense. A dupla Criolina (com Alê Muniz e Luciana Simões), convidada pelo produtor Deco Gedeon, interpreta Antemanhã. O disco conta ainda com Carlinhos Brown, Cláudia Leitte, Rubi, Zélia Duncan e outros.

Em 2015, 30 anos depois do início da jornada, André Luiz lançou uma caixa em madeira, simulando o formato do baú de escritos de Fernando Pessoa e seus heterônimos, com as três edições musicais de Mensagem em CD; dois DVDs com clipes, entrevistas, depoimentos e making of do projeto; uma edição do livro com os poemas; e um caderno de imagens colhidas por André Luiz ao longo dos anos de pesquisa sobre a vida e a obra do poeta.



“A minha ideia era fazer alguma coisa que chegasse próximo do tamanho que é Fernando Pessoa”, disse André Luiz Oliveira, que hoje, às 18h, faz no Youtube e no Facebook uma homenagem ao aniversário do poeta, com música e recital de poesias. “Pessoa é uma paixão que não cessa. É uma relação que se mantém viva na minha alma”.

E que, certamente, transcendeu para a alma de muitos amantes da obra do poeta português. A Mensagem musical de André Luiz é algo feérico, digno da poesia de Pessoa: “(...) É o som presente desse mar futuro,/ É a voz da terra ansiando pelo mar”.

terça-feira, 5 de maio de 2020

No dia da língua portuguesa



A língua portuguesa é bem mais que um elemento de comunicação comum entre povos espalhados por quatro dos cinco continentes do planeta. É, atualmente, a quinta língua mais falada do mundo. São mais de 280 milhões de pessoas que falam português em diferentes regiões, e o idioma ainda é o que apresenta um dos maiores potenciais de crescimento.

Mas a língua portuguesa não pode ser traduzida em números ou confundida com estatura ou estatística. Hoje, Dia Mundial da Língua Portuguesa, celebramos a importância histórica do nosso idioma, motivo de orgulho para muitos povos. Além das razões naturais de pertencimento e similaridades culturais, a língua une e reverbera certo laço sonoro com a literatura, dos trovadores do passado aos grandes escritores contemporâneos.

De Camões a Saramago, de Padre Antônio Vieira a Miguel Torga, de Fernando Pessoa a Antônio Lobo Antunes, além de vasta lista de escritores brasileiros, angolanos e moçambicanos, há um extenso inventário na literatura que excede em inteligência e elegância. O português virou quase um sinônimo da boa poesia.

Com as grandes navegações, de motivação meramente comercial, Portugal conseguiu expandir seus domínios e levou às terras conquistadas o seu idioma. Assim ocorreu com o Brasil, na América do Sul, e Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, na África, que adotaram o português como língua oficial. No mesmo projeto colonizador de Portugal, a língua portuguesa também chegou a Macau, Timor-Leste e Goa, na Ásia.

Os povos que falam a língua portuguesa são sabedores do quão importante é a ação de valorizar, preservar e difundir esse patrimônio comum, que pode ser determinante no estreitamento das relações entre estados que comungam do mesmo idioma e, por consequência, de uma identidade cultural.

Foi em São Luís, em novembro de 1989, que se deu o salto inaugural para a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), por iniciativa do ex-presidente José Sarney e do então embaixador do Brasil em Portugal, José Aparecido de Oliveira. Aqui, onde os ilhéus levam a fama – ou já levaram, em outras épocas – de falar o melhor português do País, ocorreu o primeiro encontro de chefes de Estado e de Governo do Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.

No encontro de São Luís foi criado o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), órgão responsável pela promoção e difusão do idioma entre esses países e que daria origem, sete anos depois, à instalação oficial da CPLP.

O Brasil, país com a maior população falante da língua portuguesa no mundo, deu importantes passos na primeira década do século XXI para fortalecer preceitos do multilateralismo via CPLP. Mas, lamentavelmente, esse ímpeto arrefeceu devido ao cenário político atual no país, de tendência conservadora e populista. No âmbito institucional, o multilateralismo é tratado com desdém e a língua portuguesa volta e meia tem sido pisoteada em praça pública por agentes do governo.

Como língua mais falada do hemisfério sul, o português deve chegar ao ano de 2050 com cerca de 400 milhões de falantes no mundo. Devido à importância política, geográfica e econômica do Brasil, o português brasileiro é hoje o mais estudado, falado e escrito no mundo.

Entretanto, no momento em que a língua portuguesa expande-se e rompe o alegado isolamento cultural em relação ao hemisfério norte, o Brasil fecha portas e despreza essa fortuna intelectual que pavimenta caminhos inclusive para o crescimento econômico.

O Brasil dá as costas para a África, região que por longo período também padeceu de ocupação desordenada e foi pilhada na exploração prolongada de seus recursos naturais, o que retardou demasiadamente o seu processo de industrialização e desenvolvimento. Em verdade, o Brasil dá as costas a muitos irmãos de língua portuguesa enquanto submete-se, às vezes de forma vexatória, ao humor populista de Donald Trump.

Mas a língua portuguesa está acima dos países, e muito além da indiferença.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Um poeta insular



Jotabê Medeiros*

Editora 7Letras lança “Filarmônica para fones de ouvido”, impressionante livro de poemas do maranhense Félix Alberto Lima

Do Norte chegam notícias de mais um poeta fabuloso que já foi centro avante sem camisa no time de sua aldeia e invejou meninos carvoeiros de calção puído. O nome dele é Félix Alberto Lima, tem 52 anos, é maranhense como Ferreira Gullar e Nauro Machado, mas sua poesia é feita de imagens lindamente desconcertantes (quase penhascos, paredes de carmenère, penumbra de dicionários), crônicas de ruas sem placas e estilhaços visuais do noticiário distraído (em alepo em meio ao silêncio dos escombros”).

É possível reencontrar em sua poesia tanto o sabor de Lawrence Ferlinghetti (onde corriam rios sagrados junto às cidades costeiras) quanto de Walt Whitman (regurgitou folhas de relva aos quinze e uns quebrados) ou de Paulo Leminski (Sofrer vai ser minha última obra).

Félix fez do livro “Filarmônica para fones de ouvido” (editora 7 Letras) uma das melhores boas-novas da poesia brasileira desde a vitória do cearense Mailson Furtado no Prêmio Jabuti de 2019 com o livro artesanal À Cidade. Em 2015, Félix já havia publicado, pela mesma editora, “O que me importa agora tanto”, que não chegou até os Sudestes ou não foi procurado devidamente.

Esse novo livro traz uma poesia de ritmo, coreográfica, de cadência irresistível. É absolutamente maranhense, mas incontestavelmente do mundo, alcança todas as falas e todas as locações de um jeito instantâneo. Negras batendo caixas para o Divino nas ladeiras de Alcântara estão a um pulinho da noite fumegante do Covent Garden, em Londres.

Alguns dos seus poemas parecem revisitar outros, e não necessariamente poemas com páginas, mas a poesia cantada. O verso ‘Como nós os velhos vamos costurando nesgas de esperança’ lembra Cazuza e a sua canção “Só as mães são felizes” (‘Reparou como os velhos vão perdendo a esperança/ Com seus bichos de estimação e plantas?). Mas é menos e.e. cummings do que João Cabral. Há, principalmente, uma reverência às coisas, ao inerme, ao despercebido, e às marcas de uma formação insular, circundada por uma cidade antiga. ‘Começarei pelo grão das coisas, diz o mote do poema Cartografia dos Mares de Dentro, assinalando a geografia que destaca a ‘igreja e a cadeia pública/ fé e castigo lado a lado’.

A epígrafe cita o poeta catarinense Cruz e Souza (1861-1898), único negro entre literatos mestiços do seu tempo, como anotou o crítico Antonio Candido: “... E nas zonas de tudo, na candura de tudo, extremo, passa certo mistério mudo”. É desse mistério mudo que se alimenta a poesia de Félix Lima, certamente uma das grandes revelações da poesia brasileira deste final de década.


*Texto publicado na revista “Carta Capital”, de 7 de agosto de 2019.

terça-feira, 24 de março de 2020

Saudade de como a gente era



Hoje acordei com um nó na garganta. Aos poucos a manhã de terça-feira foi me tomando de saudade. Saudade de nada tão longe assim. Saudade de quando a vida lá fora era tão bruta e maravilhosa, e no meio da pressa ninguém se dava conta. Saudade de ver o mundo de perto, e não apenas pela fresta da janela como agora. Saudade de janeiro e fevereiro. Saudade de outubro e novembro. Saudade do Natal, das confraternizações enfadonhas carregadas de ternura e açúcar. Saudade até de agosto. Saudades de ontem mesmo.

Saudade de quando a gente se esbarrava no meio do expediente com um sorriso nos olhos. Saudade de quando a gente apertava as mãos sem desconfiança, sem aquele pensamento instantâneo no álcool em gel ou numa pia com água e sabão. Saudade de sermos nós mesmos, sem essa mania de higiene que nunca fomos. Sem essa desconfiança no outro. Sem máscara! Saudade do olho no olho.

Saudade de quando éramos um mundo cheio de problemas, de crises financeiras aqui e acolá, de opiniões divergentes sobre política, credo e economia, mas um mundo onde podíamos circular livremente, sem o toque de recolher, sem o som alto da sirene das ambulâncias chamando a atenção dos bairros para o confinamento. Saudade de um mundo sem a morte à espreita na esquina.

Saudade de levantar da cama cheio de planos – e não de despertar no meio de um pesadelo que mais parece uma dessas séries de TV cuja primeira temporada tem como clímax o pavor, o desespero. Vivemos um confinamento cerebral, um isolamento social que mexe com as emoções e nos joga mais ainda no labirinto das telas dos smartphones em busca de respostas e janelas de afeto que nunca se abrirão.

Hoje acordei com saudade de ir ao cinema no domingo, de ir á barbearia no sábado pela manhã, de assistir ao futebol com a galera na quarta-feira. Saudade de tomar uma cerveja com os amigos no bar, falar alto, rir de qualquer bobagem, abraçar forte um desconhecido na hora do gol.

Saudade das soluções milagrosas do Vick Vaporub e do Biotônico Fontoura. Saudade do aconchego em praça pública. De ir à banca de jornal, de correr no parque. Saudade daquele medo banal, de fantasmas e assombrações. Saudade de, na azáfama do dia, encontrar o mar e com ele trocar impressões sobre o homem e o tempo. Não temos mais o mar no percurso diário. Perdemos a brisa e o azul do céu. Perdemos a bravura. Somos poltrões encastelados na incerteza.

Saudade de ir à casa dos pais e avós e com eles ficar até o fim da vida, de colocar a cabeça no colo para aquele longo cafuné que só as mãos de uma mãe sabem empreender. Saudade de ouvi-los falar de suas saudades, sem pressa. Saudade de rezar um Pai Nosso de mãos dadas na igreja sentindo aquela energia que vem não se sabe de onde.

Saudade das minhas mãos como elas eram, quando em tudo podiam tocar, livres, desimpedidas, em pleno gozo de desobediência civil na antessala dos bons hábitos. Saudade dessas reuniões que nunca chegam ao fim, na repartição, nas assembleias de condomínio. Saudade de pisar na calçada, de visitar o quintal. Só isso. Saudade de atravessar a fronteira da minha rua. Hoje acordei com saudade de quando a gente se via. Saudade de como a gente era ontem. E não sabia.

sexta-feira, 6 de março de 2020

A terra plana em transe



Era uma vez uma imensa aldeia verdejante habitada por gente simples que, apesar da diversidade sociocultural, viveu por longo tempo em harmonia, sob a fronde da Amazônia. Viveu a realidade nos seus altos e baixos, mas uma realidade bem vivida, pé no chão, até um dia quedar-se anestesiada.

Metade da população da aldeia [ou era quase isso] não sentia mais dor, não se compadecia, não se incomodava, não enxergava escândalo em nada – somente no passado! Metade da população não tinha mais aquele mínimo sentimento de vergonha. Nem vergonha própria nem vergonha alheia.

Quando assistiam a algo grotesco, ofensivo, passavam a achar o ridículo absolutamente trivial. Ou usavam um argumento raso: o ridículo no passado era ainda muito mais ridículo, ora bolas! Compartilhavam entre eles a ideia de que “o ridículo de hoje” tinha uma razão quase bíblica, uma causa nobre. E com o ridículo cotidiano acostumaram-se. O esdrúxulo virou banal na velha aldeia. Os aldeões [ou quase metade deles] aninharam-se na barbárie como que entorpecidos em pajelanças algorítmicas.

Cavalgando panegíricos, abriram mão da história, da ciência e da arte a pretexto de uma tal faxina moral e ética, inadiável, iniciada por um homem que, voluntariamente, se filiava ao inferno enquanto imaginava julgar “a própria besta”.

Era uma vez uma imensa aldeia onde metade da população [ou quase isso], raivosa, perdia a noção do respeito. Eram tempos de escassez do amor próprio. Mulheres aldeãs aplaudiam a misoginia em praça pública. Trabalhadores assalariados celebravam a alta no mercado de ações. E empregadas domésticas, admoestadas pelo tesoureiro da aldeia, comemoravam a escalada do dólar e “o fim da festa” na Disney.

Como num filme de horror, a aldeia não se via doente, e Di Caprio era só um incendiário da Amazônia frustrando planos da terra plana em pleno século XXI. Ninguém sairia tão cedo daquele estado de torpor. De arma em punho, e sob os gritos dos generais, metade da população não tolerava mais índios, jornalistas, florestas, universidades, livros, artistas e o Papa.

Sem escrúpulo, sem culpa, metade da população [ou quase isso] só pensava em disparos nas redes sociais, em inimigos imaginários do progresso, numa nova economia redentora, em desafetos digitais... Era tanto tema em pauta na cabeça daqueles jovens que até o sexo fora proibido por decreto.

Era uma vez a gente. Era uma vez uma aldeia que, de súbito, perdeu a imensa alegria e a malícia até assistir, inerte, ao triunfo da milícia.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Vertigens da democracia



Já havia uma quase certeza de que Democracia em vertigem não levaria, na noite de ontem, o Oscar de melhor documentário. Não importam o nível dos concorrentes, a qualidade técnica da produção brasileira ou os recortes maniqueístas acerca da obra de Petra Costa. Você pode até não concordar com o olhar subjetivo da diretora sobre a realidade política no Brasil da última década, mas o filme cumpriu um importante papel: lançou luz sobre a fragilidade da democracia na era da comunicação digital.

O mundo tem assistido a um espetáculo de pirotecnia do algoritmo nos últimos dez anos. As redes sociais arrastam multidões para as ruas, orquestram protestos, manifestações, derrubam governos, forjam mitos e criam outras narrativas para a história e, estranhamente, até para a ciência. O algoritmo, agora pai da política, avança vorazmente sobre a democracia.

O documentário de Petra Costa, ainda que para alguns seja apenas uma miragem, “um filme de ficção”, prenuncia um cenário que vem chamando a atenção de pesquisadores de universidades norte-americanas e britânicas. Há pouco mais de uma semana, a Universidade de Cambridge divulgou pesquisa aterradora que constata aumento da insatisfação popular em relação à democracia como sistema político. A pesquisa ouviu mais de quatro milhões de pessoas em 154 países.

A insatisfação com a democracia remete, segundo os dados da pesquisa, a uma série de fatores, como a crise financeira iniciada em 2008, variados escândalos de corrupção, situação de migrantes e refugiados e o advento da propaganda do ódio e intolerância – amplificada, na voz de líderes populistas, por esse modelo de autocomunicação de massa, cujo fiador é o algoritmo.

Essa erosão democrática vem de longe, mas a pesquisa surpreende porque põe agora na berlinda, na conta de alto grau de insatisfação, duas das democracias consideradas mais sólidas do mundo. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, mais da metade de homens e mulheres, entre eles muitos jovens, já olham a democracia de esguelha.

A propagação de fake News e o uso de mídias sociais como instrumentos de manipulação do público, em vários países – inclusive no país da Petra Costa –, ajudam a criar a desconfiança na democracia como sistema de governo capaz de promover o bem comum.

Os algoritmos – usados hoje à exaustão para medir e ditar modelos de consumo e comportamento político-cultural – desaguam no revisionismo histórico como ferramenta para conjecturar o tempo presente e na formação de releituras sobre pensamentos filosófico-científicos já sedimentados. Dessa combinação de algoritmos medram sentimentos de racismo e a xenofobia. Medram desconfianças que vão além da própria democracia. Desconfiança na humanidade.

Democracia nada tem a ver com esquerda. Não é de partido algum. Democracia é democracia. O documentário brasileiro perdeu a estatueta. Mas a democracia não pode se perder por aí. Não pode a democracia virar vertigem.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

A feira das Luzias



Todas as terças e sábados Luzia está ali numa das calçadas do Campo de Santa Clara a vender o passado. Com o chapéu encobrindo parte dos cabelos avermelhados, de casaco e cachecol florido, um cobertor sobre as pernas e os olhos miúdos de esperança, ela ouve o mundo passar pela rua. Luzia é uma das muitas personagens da Feira da Ladra, uma tradição que há séculos resiste em Lisboa.

Pelos mais de quinhentos pontos de venda, como o da Luzia, passam muitos portugueses, espanhóis, italianos, franceses, alemães, chineses, russos e brasileiros. Luzia, que mais parece uma sessentona andina que uma feirante lisboeta, vende utensílios domésticos usados, como porcelanas, tapetes, cinzeiros, espelhos, cadeiras e alguns móveis e obras de arte, enquanto dona Teresa, a senhora de casaco vermelho, faz no telemóvel as contas do apurado do dia.



Sobre o nome da feira florescem lendas. Tudo começou ainda no século XII e, de lá para cá, o mercado mudou algumas vezes de endereço e identidade. Os taxistas da região falam de uma cigana que no passado roubava objetos das casas e os vendia na feira. Há quem diga que o nome Feira da Ladra deriva de “lada”, que num português mais arcaico significa aquilo que está à margem do rio. A feira, segundo pesquisadores, teria passado uns tempos ao “lado” do Tejo.

A explicação mais ouvida entre os comerciantes da área é a de que esse grande mercado a céu aberto de Lisboa foi inspirado nas feiras da Paris medieval, denominadas Saint-Ladre, nome que deriva de Saint-Lazare. Há, ainda, uma versão moura para o nome. Mas, como em toda feira, o freguês é quem escolhe a lenda mais verossímil.

Vende-se de tudo na Feira da Ladra, até artigos invisíveis. De peça de avião a caixa de absorvente vintage. De aparelhos de telefone a selos raros e moedas antigas. De livros, revistas e enciclopédias de diferentes épocas a azulejos de fachadas improváveis. De discos de vinil a uma cabeça empalhada de touro. De casacos de pele a chifre de alce da Escandinávia.

Ao lado da Feira da Ladra está o Panteão Nacional, na Igreja de Santa Engrácia, de onde se ouve baixinho a voz melancólica de Amália Rodrigues, os sussurros de Almeida Garrett e os versos de Guerra Junqueiro que ecoam das catacumbas ali existentes.



Há varandas com o fino de comidas e doces portugueses. Há música e gente desconfiada falando alto. Enquanto o euro passa de mão em mão na calçada das Luzias, seu Eduardo Martinho, o simpático livreiro que gosta de ouvir as declamações dramáticas de João Villaret, oferece-me uma edição brasileira comemorativa dos quatrocentos anos de Os Lusíadas.

Assim foi ontem na feira das Luzias!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O padre e a revolta dos cordiais



Em outros tempos, o Padre Antônio Vieira teria o dia de seu nascimento [6 de fevereiro] festejado pela quase unanimidade dos portugueses. Mas não hoje. A imagem do aclamado orador, filósofo, diplomata e missionário jesuíta, como essa escultura em frente à Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, nos últimos anos virou alvo de arranhões e manifestações públicas.

Há quatro dias, em longo artigo publicado no jornal “Público”, as historiadoras Inês Barreiros e Patrícia Marcos, o professor Pedro Pereira e o arqueólogo Rui Coelho desfiaram um rosário de ataques à cultura da hegemonia lusotropical – segundo eles, na consciência de muitos, Portugal ainda hoje padece de um complexo de império – e ao missionário da Companhia de Jesus, que chegou ao Brasil ainda criança, viveu no Maranhão entre 1653 e 1661 e por lá cometeu alguns de seus sermões mais célebres.

A estátua de Vieira ao lado de três curumins, encomendada pela Câmara Municipal de Lisboa e esculpida pelo artista Marco Fidalgo ao custo de quase 100 mil euros, foi inaugurada em 2017 e reproduz a narrativa até então consensual sobre a trajetória do jesuíta: de um homem à frente do seu tempo, humanista e em permanente luta contra a escravização de índios por colonos portugueses no Brasil.

Tão logo inaugurada, a escultura foi atacada por pichadores e o Largo Trindade Coelho, onde encontra-se instalada, virou palco de manifestantes anticolonialistas que classificavam o Padre Antônio Vieira como “escravagista seletivo”. De acordo com o panfleto do grupo, mais de 6 milhões de africanos foram escravizados com apoio da Igreja Católica; a colonização portuguesa, em fins do século XVI, já havia dizimado 90% da população indígena; a evangelização jesuíta foi a maior responsável pelo etnocídio ameríndio; e que, portanto, Vieira, expressão maior da Companhia de Jesus, não seria digno de tal homenagem num momento em que portugueses semeiam planos para redenção da história.



A manifestação dos anticolonialistas foi barrada por um grupo de extrema-direita, que sobre o chão estendeu faixa com a frase “Portugueses primeiro!”, uma alusão tosca ao american first de Trump e ao nacionalismo míope para onde, tristemente, descamba a democracia liberal.

Mas, de volta ao argumento da hegemonia lusotropical [seguindo os rastros de Gilberto Freyre], o artigo dos pesquisadores portugueses expõe, assim como já ocorreu em outras publicações do universo acadêmico, uma ferida mal curada dos efeitos internos da colonização. Alguns batem-se contra a “narrativa mitológica” de uma “civilização benigna” patrocinada pelo império colonial português. E o pregador jesuíta, não obstante a erudição e o legado literário, é a representação materializada em bronze de uma grande fantasia da história.

A escultura, segundo os estudiosos, tenta fincar no presente a ideia de que a Igreja, nomeadamente a Companhia de Jesus, e aqui por meio do Padre Antônio Vieira de mãos dadas com a inocência dos curumins, foi legítima defensora dos índios quando da colonização portuguesa no Brasil. “Que a igreja atual se reveja na pose de um padre junto a crianças submissas é algo que preocupa”, alertam eles.

As invectivas dos pesquisadores deixam uma nuvem de polêmica no ar. Afirmam, sem meias palavras, que Vieira nada mais foi que um eloquente defensor da escravização dos africanos e que, mesmo hasteando bandeiras de liberdade aos indígenas, ajudou a impor a estes as armaduras da catequese cristã [crianças índias afastadas do convívio dos pais índios, selvagens] à moda do etnocentrismo europeu.

Apesar da polêmica de agora, Padre Antônio Vieira é reconhecido como um dos homens mais notáveis de Portugal, mestre da língua portuguesa e autor de uma das mais importantes obras do barroco luso-brasileiro que inclui sermões, cartas, discursos e poemas. Entre os textos de Vieira ainda hoje estudados e admirados estão o Sermão da Quinta Dominga da Quaresma e Sermão de Santo Antônio aos Peixes, escritos em São Luís; e Sermão da Sexagésima, escrito em Lisboa.

Nessa escalada de rebelião cultural tardia, em nenhum momento a qualidade da obra do Padre Antônio Vieira é posta em dúvida. A revolta dos homens cordiais de Lisboa mira, pelo menos por enquanto, apenas o anacronismo da homenagem a um importante ator desse imperialismo tão caro aos portugueses. O que já não é pouco!