sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Chico Maranhão e a verdade tropical de "Gabriela"

Na noite do dia 14 de outubro de 1967 o grupo MPB4 subia ao palco do teatro da TV Record, em São Paulo, para interpretar o frevo "Gabriela”, do cantor e compositor Chico Maranhão, na terceira eliminatória do III Festival da Música Popular Brasileira. Na mesma noite de “Gabriela” concorriam “Domingo no parque” de Gilberto Gil; “Ventania” de Geraldo Vandré; “Capoeirada” de Erasmo Carlos; e “Alegria, alegria” de Caetano Veloso, entre outras canções que dali em diante entrariam para a história da MPB. Em 1997, Caetano publicou “Verdade tropical” (Companhia das Letras) e agora, 20 anos depois, lança uma edição comemorativa – revista e ampliada – da obra que traz um inventário da cena cultural brasileira a partir do tropicalismo, além de impressões do artista sobre o panorama cultural da segunda metade do século passado.

Mas o que há em comum entre a música de Chico Maranhão e o livro de Caetano? O cantor e compositor maranhense jamais pôs os pés na areia da tropicália. Era outra a praia de Chico. Qual o nexo, então? O baiano alcança “Gabriela” ao usar um capítulo de “Verdade tropical” para tecer considerações sobre o contexto do inflamado e polêmico “discurso” que fizera ao interpretar “É proibido proibir” em 1968.

Há 50 anos, a música de Chico Maranhão passou pela terceira eliminatória e acabou em sexto lugar na etapa final do festival da Record, deixando para trás canções de compositores do naipe de Dory Caymmi, Sidney Miller, Vinícius de Moraes e Francis Hime. Pela ordem de classificação, o maranhense perdeu para nomes do primeiro time da MPB: Edu Lobo e Capinam com “Ponteio”, em primeiro lugar; Gilberto Gil com “Domingo no parque”, em segundo; Chico Buarque com “Roda Viva”, em terceiro; Caetano Veloso com “Alegria, alegria”, em quarto; e Roberto Carlos e O Grupo com “Maria, carnaval e cinzas” (de Luís Carlos Paraná), em quinto. Desempenho extraordinário para um compositor desconhecido do grande público, aos vinte e poucos anos estreante em festivais, que assinava apenas como Maranhão.



O fato é que “Gabriela” caiu nas graças do público. Na finalíssima do dia 21 de outubro a plateia entoou o coro de “já ganhou!”, segundo relata Zuza Homem de Mello em “A era dos festivais, uma parábola” (Editora 34, 2003). O frevo na voz do MPB4 – o quarteto devidamente vestido em traje de gala – conquistou o público por quebrar a sisuda atmosfera de protestos que marcaria os festivais da época. Naquele período o Brasil submergia nas águas turvas do patrulhamento ideológico e da censura, subprodutos de uma ditadura militar que duraria duas décadas.

Para acompanhar os compassos e os versos ligeiros e simples – “Atravessei o mar/ A remo e a vela/ (...) Só pra te ver, Grabriela” –, segundo Zuza Homem de Mello, muitos levaram as tradicionais sombrinhas coloridas do frevo pernambucano, transformando o teatro da Record num grande baile de carnaval, com direito a confete e serpentina.

Parte da agitação na plateia fora protagonizada por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, muitos deles colegas da mesma turma de Chico Maranhão e Chico Buarque, que deixou os estudos no meio do caminho.

Embora confiante no engenho arrebatador de “Gabriela”, Chico Maranhão decidira não aparecer no teatro da TV Record para assistir à apresentação do MPB4 na noite da grande final. “Sabia que ia ser classificado. Achava, porém, que minha presença influenciaria a relação entre o intérprete e a plateia e podia afetar o resultado. Por isso, não fui. Escondi-me em algum lugar da cidade, por ali. Não lembro mais onde. Deixei o acontecimento se desenrolar, deu certo”, escreveu Chico em artigo publicado no jornal “O Estado do Maranhão” do dia 17 de setembro de 2011. O compositor conta que, apesar de “retraído”, tinha uma noção superficial daquilo que era mais aceitável na época. “Eram as vibrações das circunstâncias. Não tinha a devida noção da responsabilidade. Não tinha aquela coisa de concorrer”.

Entre os jurados do III Festival da Record estavam Júlio Medaglia, Roberto Corte Real, Carlos Manga, Roberto Freire, Carlos Vergueiro, Chico Anysio, Sérgio Cabral, o maranhense Ferreira Gullar e sua esposa Tereza Aragão e outros. Chico Maranhão recebeu como prêmio um cheque de 2 mil cruzeiros novos.


Contra o vento

Um ano depois do Festival da Record, “Gabriela” voltou à cena ao ser citada num dos trechos do controvertido discurso de Caetano Veloso durante a apresentação de sua música “É proibido proibir” no III Festival Internacional da Canção (FIC), no Teatro da Universidade Católica (Tuca) em São Paulo.

Debaixo de vaias de uma plateia em estado de euforia, “predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de esquerda”, na fase semifinal do FIC Caetano mal conseguiu concluir a apresentação de “É proibido proibir”, que, segundo ele, era somente uma marchinha ternária de sabor anarquista, provocadora, inspirada nas barricadas parisienses de maio de 1968.

Em “Verdade tropical” Caetano afirma que não queria participar do festival. Só aceitou depois de certa insistência da comissão organizadora. Inscreveu “É proibido proibir” como uma espécie de provocação, já que se dizia meio desencantado com o clima de festivais e sem uma música especialmente preparada para a ocasião. Gilberto Gil inscreveu “Questão de ordem” e foi desclassificado logo na fase eliminatória. Caetano seguiu para a semifinal.

Acompanhado pela irreverência dos Mutantes trajados em fantasias alienígenas, e após uma explosiva introdução da música, Caetano iniciou a performance na semifinal recitando trechos do sebastianismo presentes no poema “Mensagem”, de Fernando Pessoa. Diante do happening premeditado do artista, o público começou a virar as costas para o palco. E os Mutantes, como reação, passaram a se apresentar de costas para o público.



Ao longo da performance do cantor baiano, vestido em roupas de plástico, cabeleireira encrespada, e usando colares de fios elétricos com tomadas nas pontas, as vaias misturaram-se a insultos grosseiros e objetos atirados no palco. Em meio à gritaria, Caetano começou a disparar a sua metralhadora cheia de mágoas:

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre matar o velhote inimigo que morreu ontem? Vocês não estão entendendo nada, nada, nada! Absolutamente nada! Hoje não tem Fernando Pessoa”.

E assim continuou até desaguar em Chico Maranhão:

“O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira! O Maranhão [Chico Maranhão] apresentou esse ano uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar, por ser americana. Mas eu e o Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui pra acabar com isso. Eu quero dizer ao júri: me desclassifique! Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil!”.

A música de Chico Maranhão “com arranjo de charleston”, a que se referia Caetano Veloso, em 1968, era “Dança da rosa”, que chegara à etapa final do III Festival Internacional da Canção Popular, realizada no Maracanãzinho, no Rio. A vencedora foi “Sabiá”, de Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque. A música preferida do público, “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, ficou em segundo lugar. “Dança da rosa” foi interpretada na final pelo próprio Chico acompanhado do Quarteto 004 e a Traditional Jazz Band.

O alvo da acidez de Caetano em verdade não era Chico Maranhão. “Dança da rosa” – muito menos “Gabriela” – não era uma música com “inspiração americana”. Mas o tal arranjo de charleston virou pretexto para a fúria retumbante de Caetano, que reverberava ali o grito represado de outros artistas inconformados com a exacerbada xenofobia da militância de esquerda.

“Isso foi um equívoco de Caetano”, disse-me, por telefone, um lacônico Chico Maranhão, dando a entender que o assunto ainda vai render algumas páginas de um livro biográfico que ele rumina em São Paulo, onde reside atualmente.



Contaminados pelo pop

Até meados dos anos 1970, a novela ainda não exercia o poder absoluto no horário nobre da televisão brasileira. No lugar de novelas havia musicais, muitos musicais. A música, e não a teledramaturgia, era a menina dos olhos da TV, e rendia os melhores contratos comerciais. As grandes emissoras tinham contratos com os artistas mais populares e a eles eram dedicados os melhores horários na grade de programação.

A música impunha um peso tão revelador na vida das pessoas que havia até manifestações de rua – com cartazes e faixas - tomando partido em excêntricas contendas sobre influências estrangeiras no cancioneiro popular tradicional. Mas a pauta, aqui e ali, desafinava.

Em 17 de julho de 1967, três meses antes do aguardado festival de música da TV Record, houve passeata organizada por uma tal Frente Única da Música Popular Brasileira, incensada pela militância política estudantil, contra o uso da guitarra elétrica na MPB e, por tabela, contra o imperialismo ianque. Entre os manifestantes mais entusiasmados estavam Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues e Gilberto Gil.



Caetano Veloso, bem como Nara Leão, estava do outro lado dessa rua de amarguras e protestos. O tropicalismo já prenunciava fusões ilimitadas e insurgia-se contra reservas de mercado, tradição, demarcação de espaços musicais, patrulha e cultura colonial. “Alegria, alegria”, por exemplo, tinha um pé à frente dos festivais, a guitarra ousada dos garotos argentinos dos Beat Boys “contaminada pelo pop internacional” e “um toque crítico-amoroso sobre o mundo lá fora”.

No livro “Verdade tropical” Caetano tenta decodificar o berro deixado no ar em “É proibido proibir”, e volta a acertar as contas com arranjos de charleston e outras interferências externas na música brasileira, segundo ele “mal acabadas”. “Eles [os jurados] aprovavam de bom grado imitações toscas de procedimentos americanos ou internacionais já conhecidos, mas um produto bem-feito [a música “Questão de ordem”, de Gilberto Gil, por exemplo] criado num universo estilístico que eles não sabiam que tinha sido aprovado lá fora, não”.

Caetano, embora tenha sido vaiado também na fase eliminatória, conta que o discurso no meio da música, na semifinal, não foi algo de caso pensado, uma ideia ensaiada. Reagiu como um bicho acuado, com a voz oscilando entre um tom descontroladamente inseguro e uma confiança profética.

“O discurso que improvisei foi moldado pelo sentimento que me inspiravam as caras que eu via na plateia, sua raiva e sua tolice”. Logo que o discurso fora iniciado, a plateia que estava de costas começou a se virar para o palco. E acompanhou, espantada, o que Caetano dizia, reagindo com vaias ainda mais raivosas. Foi quando Caetano emendou a provocação: “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”.

Gilberto Gil, chamado por Caetano ao palco no meio da euforia quase messiânica – para que ficasse ali consignado o “grave erro do júri” pela desclassificação de “Questão de ordem” no festival – fora atingido na canela por um pedaço de madeira atirado pelo público. “Saímos do Tuca amedrontados. Na calçada em frente ainda havia pessoas gritando coisas. Fiquei angustiado”, revela Caetano, assumindo a paúra décadas depois. “Eu mesmo, no meu discurso, dera um tom de grandeza ao que fazíamos, e agora temia que tudo fosse demasiado grande”. E assim foi.


Uma noite em 67

Em 2010 veio a lume “Uma noite em 67”, documentário sobre o festival que revolucionou a música brasileira. O filme produzido por Renato Terra e Ricardo Calil tenta reconstruir a histórica noite de 21 de outubro de 1967 com depoimentos de organizadores do festival, jurados e artistas, bastidores das apresentações, episódios curiosos – como o violão quebrado por Sérgio Ricardo em pleno palco – e as principais músicas comentadas.



No tempo regulamentar do documentário lá estão cenas e histórias sobre “Ponteio”, “Domingo no parque”, “Roda Viva”, “Alegria, alegria” e “Maria, carnaval e cinzas”. “Gabriela” entrou apenas nas cenas extras do filme, e sem um depoimento de Chico Maranhão. E mais: no DVD a música traz a autoria de Francisco Fuzzeti, nome artístico que Chico jamais utilizou ao longo da carreira.

No artigo publicado em 2011 no jornal “O Estado do Maranhão”, o autor de “Gabriela” faz algumas ressalvas quanto ao conteúdo do filme. Chico Maranhão alega que a sua música foi o ponto de equilíbrio em meio às forças daquele tumulto ideológico tão temido, e que por isso mesmo merecia um tratamento diferente. “Por que não mencionar o seu autor?”, questiona ele.

Chico Maranhão admite ter gostado e se emocionado logo que assistiu ao filme. “Participei daquilo tudo tão intensamente como todos os outros”. E diz que sempre se achou parte do conjunto da história. Mas deixa escapar certa queixa: “Faço uma ressalva que entendo ser pertinente não porque diga respeito a uma música minha, mas porque diz respeito a uma música que teve grande repercussão e foi escolhida para os extras”.

O DVD, na opinião de Chico Maranhão, é lamentável do ponto de vista histórico, porque o filme está interpretando uma época. E cita o caso do MPB4, que depois do sucesso de “Gabriela” assinou um polpudo contrato com a TV Record. Ao autor, restou um puxão de orelha do então diretor Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, conhecido como “Cabrão”: “O senhor está fazendo o quê? Tocando violão, fazendo música, e não vem fazer a prova de Hidráulica...”.


Gabriela vai ao tribunal

“Gabriela” voltou ao noticiário em 2013 com uma decisão da 5a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Maranhão em favor de Chico Maranhão, contrariando recurso das gravadoras Universal Music e Microservice Tecnologia Digital da Amazônia. A decisão confirmou julgamento em primeira instância (de 2009) e garantiu a Chico a indenização de R$ 80 mil por danos morais.

Segundo alegações do cantor e compositor maranhense, houve erro na impressão das capas iniciais do CD “MPB4”, da coleção Novo Millennium, produzido em 2005. No disco, a autoria de “Gabriela” é creditada erroneamente a Tom Jobim. Na verdade, a música de Chico Maranhão foi confundida com “Tema de amor de Gabriela”, esta sim de autoria de Antônio Carlos Jobim.

De acordo com o processo, as gravadoras admitiram o equívoco e se comprometeram a corrigir o crédito nas prensagens seguintes. Mas os advogados de Chico Maranhão argumentaram que vários CDs já haviam sido vendidos com o nome de Tom Jobim associado a “Gabriela” em todo o território nacional.

A alegação das gravadoras - de “erro por similaridade de títulos” - não convenceu os desembargadores da Justiça maranhense.

Fotos: reprodução de internet.


sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Um desses sobreviventes



Em outubro de 1991, nos intervalos da oficina literária Anatomia do Conto, eu, Eduardo Júlio e Elício Pacífico batemos um longo papo com o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu na calçada de um desses bares da Praia Grande, no centro histórico de São Luís. Éramos jovens curiosos, aventureiros da esquina universitária, dispostos a esquadrinhar numa entrevista o abissal inventário do escritor irremediável.

Tamanha era a nossa intrepidez que estávamos ali os quatro, com a mesma estatura, a mesma ledice, a trocar livremente ideias na boca da noite, como velhos conhecidos numa mesa de pôquer. Sem apostas previsíveis, sem desconfiança na mexida das cartas.

Caio Fernando Abreu foi um escritor compulsivo e intenso. Deixou sua marca na literatura ao fazer opção por temas caros à juventude que tanto o inspirava: a dor, a solidão, a angústia, o sexo, o medo, a felicidade sorrateira, os amores tempestuosos, os tumultos internos, a morte à espreita. Trabalhou em jornais e revistas, escreveu crônicas, contos, peças e muitas cartas. Morou por uns tempos no sítio de Hilda Hilst no interior de São Paulo, passou uma temporada na Europa e venceu três edições do Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira. Faleceu em 25 de fevereiro de 1996.



Sobre viver a graça de ser cultuado no futuro por sua obra – como ocorre agora no ambiente improvável das redes sociais -, Caio Fernando Abreu apostava na indiferença. “Ser esquecido ou não ser esquecido, tanto faz. A posteridade é um tédio”, dizia.

A entrevista com Caio Fernando Abreu fora publicada na edição de fevereiro de 1992 na revista Impacto, dirigida por Raimundo Filho e à época editada por Geraldo Iensen. Em 20 de janeiro de 1996, um mês antes da morte do escritor, transcrevi a mesma entrevista no jornal O Estado do Maranhão.

Organizada por Telma Rêgo e Tereza Nascimento, a oficina Anatomia do Conto durou uma semana, numa das salas do mezanino do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho. Falamos de muitas coisas relacionadas à escrita, fizemos exercícios textuais, mergulhamos na leitura de obras de Machado de Assis, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles e Adélia Prado, e discutimos sobre a influência de certos autores, as armadilhas do estilo literário, o mercado editorial etc.

Participaram da oficina - além de Telma, Tereza, eu, Eduardo e Elício - Antônio Carlos Alvim, Antonio Almeida, Joaquim Haickel, Moisés Matias, Paulo Melo Souza, Marilda Mascarenhas, Luiz Inácio, Axel Brito, Raimundo Garrone, Jorge e Wilson Marques.

A viagem ao Maranhão serviu de alento a Caio Fernando Abreu, que já experimentava os primeiros problemas de saúde decorrentes da Aids. O escritor gaúcho ficou encantado por São Luís e se apaixonou definitivamente por Alcântara, onde passou três dias contemplando ruínas, devorando Noite sobre Alcântara e tentando encontrar-se com o passado na sombria rua da Amargura.



Antes mesmo de voltar a São Paulo, Caio Fernando Abreu escreveu a seguinte carta endereçada aos participantes da oficina Anatomia do Conto:

Ilha dos Amores,
1°. 11. 1991
Nos conhecemos há cinco dias, e eu tenho a sensação de que faz muito mais. Cinco anos. Cinco séculos.
Estar aqui – nesse tempo, e com vocês – foi exatamente o que eu precisava para ver melhor a luz do sol. Só contando a minha vida inteira (com todas as suas particularidades carentes) vocês compreenderiam a exatidão do que sinto. Na hora certa, com as pessoas certas.
Amei um por um. Caras e textos. Corpos e almas. Tenho certeza que ganhei muito mais do que vocês: fiquei mais largo.
Vastidão é tudo que persigo.
Volto menos esfarrapado, mais aquecido. Por dentro, por fora. O sol real, ah e o outro sol, mesmo suposto.
Que a gente não se perca (no sentido mais amplo).
Love love love – it’s all we need.
Caio F.


Abaixo, a íntegra da entrevista com um escritor sereno e ao mesmo tempo assombrado com o destino de sua geração, da qual ele dizia ser uma espécie de sobrevivente:

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, 43 anos, esteve em São Luís no mês de outubro para ministrar o curso Anatomia do Conto, organizado por Telma Rêgo e Tereza Nascimento e voltado para jovens universitários e amantes da literatura. Considerando por Lygia Fagundes Telles como o escritor das entranhas da paixão, Caio é autor de importantes livros da nova literatura brasileira, como Morangos mofados, Os Dragões não conhecem o paraíso e Triângulo das águas. Nesta entrevista ele nos fala de literatura, a experiência lisérgica dos anos 1960, a juventude atual e o universo criativo que funde tempo, memória e poesia.

Como foi o seu primeiro contato com a literatura?

Foi muito cedo. Minha mãe era professora, minha avó, também. Quando entrei para a escola, aos 6 anos, já sabia ler um pouco. A primeira coisa que fiz foi escrever uma historinha, antes mesmo de ler um livro. Além disso, eu desenhava, fazia histórias em quadrinhos e de lá pra cá não parei mais.

O que você lia na infância?

Disparado, lia Monteiro Lobato. Era minha grande paixão: lia, relia sem parar. Depois meu pai me deu uma coleção de aniversário de As mil e uma noites, que eu lia muito. Lia tudo o que caía nas mãos, mas de literatura mesmo só Monteiro Lobato e As mil e uma noites. Só um pouco depois é que fui conhecer a obra de Erico Veríssimo. Mas lia escondido, porque os meus pais consideravam [os livros de Veríssimo] muito fortes.

Essa leitura da infância tem algum reflexo no seu trabalho?

Acho que sim, com Monteiro Lobato, por meio dos livros que falam em mitologia grega, como Os doze trabalhos de Hércules e O Minotauro. Influenciou no que escrevo, no sentido de uma visão de mundo meio mítica, uma necessidade de sonho, de fantasia muito grande que certamente vem da infância.



Trace um panorama da sua geração.

É um pouco difícil [falar da minha geração], pois acho um tema complexo e bastante extenso. Mas sempre afirmo que sou de uma geração com uma memória política muito trágica. É uma geração que estava começando a compreender o mundo, quando o presidente Getúlio Vargas se suicidou. Essa é a minha memória mais antiga. Então, politicamente, nós transitamos do suicídio de Getúlio até esse desastre lamentável chamado Fernando Collor, passando pelo golpe militar de 1964 e, um pouco antes, pela construção de Brasília. Portanto é uma geração que sempre foi ameaçada: crise, inflação, violência, repressão. A gente não teve sossego até hoje. O Brasil é uma nação que vai dar certo e não dá, tudo regride, isto politicamente. Por outro lado, existencialmente, acho que a gente teve a sorte de passar pelo final dos anos 1960 e inicio dos 1970, que foi um período muito lindo, com a explosão hippie, a liberação sexual, a experiência lisérgica e todo aquele universo de paz e amor. Então no meio da sombra toda houve esse momento de luz que me alimenta até hoje. Fico muito gratificado quando vejo pessoas da minha geração felizes, livres, sorrindo, pois muitos morreram de overdose, muitos enlouqueceram, outros morreram de Aids. Mas os que sobreviveram – e acho que sou um desses sobreviventes – estão muito bem, muito fortes. Isso me faz um bem enorme. Uma pessoa que me faz muito bem encontrar e ver seu trabalho criativo é o Antônio Bivar - ou a Alice Ruiz, que é minha amiga. São pessoas muito bonitas, muito felizes.

Naqueles anos havia uma conexão literária entre vocês?

Não exatamente, pois uma das características da minha geração foi sempre viajar muito. Sempre fui muito viajante. Qualquer oportunidade de viajar não recuso porque faz parte do meu trabalho de escritor conhecer o maior número de lugares e de pessoas. O Bivar também é um viajante. Essas pessoas sempre foram muito espalhadas. Com o Bivar, trabalhei na revista A-Z. Então na época a gente tinha um contato maior, mas não era um contato literário. Com Alice Ruiz e Paulo Leminski, quando eu ia a Curitiba ficava na casa deles, mas era um contato humano. Na verdade, nunca fiz parte de grupos. No sentido literário, sempre fui muito solitário.

O consumismo exacerbado tende a deixar a juventude atual imbecilizada?

Imbecilizada não acho, de jeito nenhum. Os jovens que participam do meu curso de contos são exemplos suficientes de que isso não ocorre. Ao mesmo tempo, acho que a juventude sofreu muito com o regime militar, que proibiu muitas coisas, e quando vocês entraram para a escola a história do Brasil estava muito censurada, as pessoas não sabiam direito o que havia ocorrido. A televisão também atrapalhou um pouco, acho até que tem coisas boas nela, mas ela rouba um tempo precioso de leitura. Quando eu era criança e adolescente, como não havia televisão a gente lia muito à noite e ia muito ao cinema. Porém, o que de mais grave a juventude atual herdou está relacionado ao vírus da Aids. Lembro que na época da revolução hippie havia o sexo grupal, todo mundo transando com todo mundo. Isso seria impossível hoje em dia. Então acho que a juventude atual ficou impedida de ter prazer, porque a ideia do sexo ficou diretamente ligada à ideia de morte, ou seja, Eros e Tanatos juntos. Trepar atualmente é um risco de vida, algo que exige muitos cuidados. Isso bloqueia a expressão de afeto, da espontaneidade. Cria medo nas pessoas. Cria defesas. Enfim, sinto numa boa parte da juventude uma enorme ansiedade de informação.



Como você define o seu trabalho?

Acho que o meu trabalho está cada vez mais voltado para a ecologia do humano. A ecologia não se resume só à preservação do meio ambiente, à não poluição dos rios, dos mares, à derrubada de árvores. Isso é importantíssimo, claro, mas mais importante também é a preservação de certos valores da alma humana, a emoção, a capacidade de amar, a capacidade de sonhar. Acredito que meu trabalho está todo voltado para isso, que também é característico da minha geração, mas é maior, pois é uma preocupação de toda a raça humana com o futuro da humanidade. A gente não sabe o que vai acontecer no país e no planeta daqui a um ano, daqui a dez anos. O futuro é um buraco negro. Então tenho tentado escrever sobre a necessidade do sonho para que nós possamos nos manter vivos, basicamente isso.

Em um de seus livros, você conta que passa o dia inteiro lendo poesia, tentando encontrar uma saída do planeta, o mais urgente possível. Você já encontrou essa saída?

Não, não encontrei. Talvez a única forma de sair do planeta seja a viagem astral ou a viagem espacial [risos]. Como não sou astronauta e não domino a viagem astral, ainda não encontrei essa saída. Mas existe a saída, pela capacidade do sonho, da invenção.

Em tempos de crise econômica, como agora, as editoras estão investindo em novos autores?

Sinto muito ter que responder não. Realmente não estão investindo, por falta de crédito a uma nova geração que está surgindo e que é muito boa, que pode falar dos tempos contemporâneos. Sempre conto uma história que é bastante expressiva sobre esse problema. Na Bienal do Livro de São Paulo veio um rapaz da França encarregado por editoras francesas de descobrir autores brasileiros na faixa dos 20 a 30 anos para serem traduzidos no mercado editorial francês. Fiquei pensando, e não tinha. Telefonei para algumas pessoas, mas ninguém sabia. Fora Marcelo Rubens Paiva, que acho que já está com mais de 30 anos, não tinha mais ninguém. Não está havendo renovação por falta de crédito. Isso é muito grave.

Essa nova geração de novos escritores existe?

Existe, e tenho comprovado isso nessas oficinas de criação literária que tenho feito em São Paulo, Curitiba e aqui em São Luís. Sempre aparecem contistas e escritores na faixa dos 20 muito interessantes.

O poeta Paulo Leminski dizia que uma das principais barreiras da literatura brasileira é a própria língua portuguesa. Como você vê isso?

Não sei se a língua portuguesa atrapalha tanto quanto o fato de vivermos num país de terceiro mundo em galope acelerado pro quarto mundo, porque o processo de empobrecimento do Brasil está assustador. Então isso, sim, cria dificuldades. As pessoas têm um certo talento aos 20 anos, porém precisam trabalhar em banco ou fazer uma faculdade, se tornar engenheiro, professor ou jornalista, obter uma profissão que permita ter uma renda no final do mês, porque não é possível viver de literatura. Então, vamos sendo roubados por isso, pois os escritores começam a inventar tempo disponível nos feriados, à noite, e acho isso terrível. Quanto à língua portuguesa, considero uma língua linda, muito rica, mas certamente complicada, pois, se você escreve em espanhol, pode ser lido em toda a América Latina. Se você escreve em português, fica limitado ao Brasil, não chega aos outros países. Até mesmo em Portugal os livros brasileiros que são editados lá passam por modificação.

A juventude brasileira da década passada [anos 1980] leu muito Marcelo Rubens Paiva e agora está lendo Paulo Coelho. Há uma polêmica sobre esses dois autores, principalmente por parte da crítica. Como você vê esses dois autores?

Tenho a honra, a alegria de ser muito amigo de Paulo Coelho. Ele é uma grande pessoa. Acho que se você pensar que durante muito tempo ele foi grande amigo e letrista do Raul Seixas e depois da Rita Lee, isso já limpa a barra dele. Quanto ao Marcelo [Marcelo Rubens Paiva], fiz a revisão do primeiro livro dele, Feliz ano velho. Acho que não importa se os dois são grandes literatos ou não. O que importa é que o Marcelo é uma pessoa maravilhosa, gosto muito dele, pois conseguiu concentrar a vivência de uma geração inteira num livro, e continua escrevendo, estudando. Ele é muito esforçado, sério. Além do que ler Paulo Coelho e Marcelo Rubens Paiva é muito mais saudável que ler Sidney Sheldon, Harold Robbins, enfim, esses enlatados americanos que não têm nada a ver com a nossa realidade, com a nossa alma.

Qual a dica aos iniciantes para um bom trabalho literário?

Olha, o principal é não desistir. A gente só escreve escrevendo. Procurar ler muito e ter todo tipo de experiência, pois só assim vai poder se refletir no trabalho, espelhar na literatura, a vida.

Como você avalia o curso Anatomia do Conto em São Luís?

Fiquei muito feliz de ter encontrado um grupo tão cheio de talento. Acho que tive a oportunidade de detectar alguns bons poetas e alguns contistas promissores, com o perdão da palavra.

Uma ideia pra concluir a nossa conversa.

Uma ideia pra terminar? Ah, sempre lembro de uma frase da Leila Diniz que diz assim: “Viva, ame e não tenha medo”.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O retrovisor de Zeca Baleiro



No dia 28 de dezembro de 1989, o cantor e compositor Zeca Baleiro publicou longo texto no caderno de cultura do jornal “O Estado do Maranhão” – como poucas vezes ousou fazer na imprensa local, ainda que remanescente de uma breve jornada como estudante do curso de Jornalismo da UFMA - sobre empreitadas artísticas de nomes e nuvens que pairavam sob o céu de uma ilha sem pontes. No inventário que faz sobre a São Luís de 1989, Zeca Baleiro destila, da epígrafe ao epílogo, o seu desencanto com a falta de inventividade nas artes, mas aponta seu trombone também para algumas “estrelas" que reluzem em meio ao "eclipse total”.

Há algumas passagens curiosas no texto. Mas recolho uma, em especial, que faz candidamente uma referência ao grupo Madrearte, lembrado por Zeca em 1989 por “levar arte a praças e ruas da Madre de Deus”. Em 1990, durante a programação cultural do Seminário da Amazônia, no Núcleo de Esportes da UFMA, Zeca teve o seu show interrompido algumas vezes por vaias de integrantes do mesmo grupo Madrearte. Irritado com os insultos da trupe da Madre Deus, que faria uma apresentação em seguida, Zeca Baleiro quebrou o violão no palco e saiu de cena soltando cobras e lagartos pra cima de seus detratores.

Anos depois, em depoimento ao livro “Almanaque Guarnicê” (Clara Editora/Edições Guarnicê, 2003), Zeca admitiu que aquele foi o show mais rock’n roll que fez na vida. Sobre as vaias, o artista diz que na época foi acometido de “uma quase cólera”. Zeca apresentou-se acompanhado da banda Leonardo da Vince I, comandada pelo guitarrista Maninho. “Era de fato um show bem pauleira, longo, eu reconheço”. No show, o artista plástico Paulo César fez as vezes de mestre de cerimônia, uma espécie de Chacrinha pornô segurando um grande pênis de espuma. “Foi hilário. A intenção era mesmo provocar os caretas, só que não imaginei que despertaria tanta revolta”, disse ele ao “Almanaque Guarnicê. “Esse grupo da Madre Deus, aspirante a Boi Barrica, se achou no direito de invadir o palco antes do show acabar. Fiquei puto, fiz um discurso inflamado e, num acesso de fúria, quebrei o violão em pleno palco, à vista de todos. Depois soube do argumento dos invasores. Segundo eles, o meu show não era de música maranhense, mas de rock”.

“Fazer arte é ter vontade. A vontade sem movimento é só vontade.”

“Nem toda revolução é leviana. Nem todo artista se dispõe à luta armada.”

“Arte é a porta do inferno.”

“Só há como perspectiva o caos.”

“A velha São Luís parece não ter se contagiado tanto pela febre da criação.”




Eis o texto na íntegra:

O espectro da arte sem expectativa

“A mais odiosa das traições é praticada
pelo artista que se passa para o bando dos anjos”
Aldous Huxley

Zeca Baleiro

A arte é a boca no trombone.

Quem não tiver trombone que use outro instrumento. Só não é possível paralisar a vontade. Fazer arte é ter vontade. A vontade sem movimento é só vontade. E a arte precisa do gesto. Inquieto, luminoso, revolucionário. Nem toda revolução é leviana. Nem todo artista se dispõe à luta armada. Arte é a porta do inferno. E viva o diabo.

... E antes que algum aventureiro lance mão, aqui vai uma geral (da arquibancada, nunca da cadeira cativa!) do ano artístico de 89, com olho crítico e boca no trombone.
Arte é subversão.

Não me deixam mentir incontáveis magos, que, com sua arte, deslocaram a espinha dorsal de seu tempo, colocando pulgas na orelha do mundo. Assim foi com Van Gogh e suas tintas incendiadas, Rimbaud e sua poesia bandida, Schonberg e seu atonalismo diabólico, só para falar nos mais malditos.

E nós, até quando vamos continuar usando a música pra cantar nossas pobres aspirações pequeno-burguesas?; a dança, pra ensinar piruetas clássicas pra filhota da mamãe fresca, preocupada com a cor gasta da sapatilha francesa?; a poesia, pra massagear o nosso ego de “poetas” narcisos?; o teatro, para enaltecer o brilho da nobre arte de representar? Até quando vamos ter que aturar coisas tão belas quanto patéticas e encher a boca pra dizer que isso é a arte ou que somos artistas?

Não me iludo achando que ainda há tempo & espaço para que pintem movimentos ou ideias ou produtos geniais, verdadeiramente novos, originais. Só há como perspectiva o caos. E a arte que há por fazer consiste na reconstituição desse caos. Arte das cinzas. Dos legados de todas as épocas, estilos e formas. Todos os engenhos. “Nada parado, nada seguro/nada infinito ou puro”, profetizava o compositor Ednardo no início dos anos 70, já anunciando um tempo de fusões e experimentos que viria atropelar ele próprio. Navegar é preciso. Mas com lucidez. Do contrário, tanto difícil quanto refazer o caos será saber de algum cais onde chegar.

A velha São Luís parece não ter se contagiado tanto pela febre da criação, passando ao largo de toda a história cultivando uma histeria estética que sempre satisfez. De fórmulas gastas e cheias de êxito, a cidade está cheia. Só não se vê rebeldia, experimentação, arte ou paixão. Tudo é vão. Todos vão.

Som fora de tom

A música é, sem dúvida, a arte de comunicação mais rápida e rasteira. No bar, no teatro ou no rádio, há vez e voz pra tudo. Por isso mesmo, amargamos essa decadência sem nenhuma elegância. Mas vez por outra pintam estrelas no meio do eclipse total. Nesse meio, duas delas acenderam o escuro da nossa música. Rita Ribeiro, com o seu show “Cunhã”, apresentado em maio, e Rosa Reis, com sua “Cantareira”, em abril, ambos belíssimos.

Rita, uma espécie de brincante cósmica espacial/passista do futuro, interpretou de Bob Dylan a Godão, de Villa-Lobos a Assis Valente, abrindo as portas de sua babel à inventividade, tudo com uma personalidade de fazer inveja. Já Rosa, essa fez e faz o milagre de deixar a música com gosto de terra, de mato, cerrado, jeito de bicho criado solto no quintal. Foi assim que ela cantou, com beleza, pérolas de Mochel, Josias Sobrinho, Joãozinho Ribeiro e Chico Maranhão. Vale lembrar ainda a participação da banda Manguezal na segunda cantareira de Rosa, uma nova leitura feita em novembro do mesmo show apresentado em abril. A banda, formada por professores da Escola de Música e ex-integrantes da banda de rock Nirvana, mostrou que veio com todo oxigênio, pra ficar.

O grupo Fogo de Mão bem que tentou, mas não conseguiu dar continuidade ao seu projeto “Couro e Madeira” – um show só de percussão, festa de atabaques, agogôs e maracás.

O teatro de quatro

O teatro, esse, coitado, anda caduco. Exceto algumas iniciativas isoladas, não se viu nada de novo. Como um passageiro que perde o trem no meio do caminho, nosso teatro parece atropelado pelas mudanças substanciais desses anos loucos e não consegue achar novas soluções, embora saiba que as usadas já estão velhas e em desuso.

Por conta dessa crise, nenhum grande lampejo de criatividade. Na falta dela, usou-se um recurso mais eficaz, embora menos iluminado: a superprodução, como foi o caso do luxo fosco de “A Arca de Noé”, de Aldo Leite, em montagem do grupo Mutirão.

Destaque para a boa iniciativa de remontar Brecht em “Os Fuzis da Senhora Carrar”, de Reinaldo Faray e grupo, e o humor fino, quase ousado, do grupo Ganzola, sob a direção de Lio Ribeiro, em “A Revolta dos Perus”, comédia musical de Carlos Queiroz Talles.

Quem não dança, dança

Um número razoável de espetáculos de dança. A Academia Espaço Dança exorcizou os seus fantasmas com o seu “Espectros”. Um outro espetáculo, de nome singelo, o “Panã-Panã” da Academia Studium Arte Ballet, mostrou a sua leveza de borboleta. “Embarcações” e “Valsa para um Homem Feliz” foram criações da Academia Oficina do Corpo, este último inspirado (íssimo!) na peosia de Maiakovsky.

Ao pé das letras

No meio do ano, um grupo de artistas, jornalistas e pessoas preocupadas com os destinos de nossa arte se reuniu pra começar a fazer o que de mais importante se fez na vida (ai, que tédio!) literária de São Luís em 89: a revista Umdegrau – uma revista na margem d’arte – que já nasceu sob o signo da luta inglória. Primeiro, porque provocou polêmica sobre arte e cultura num lugar onde não há troca (quem produz arte mal se interessa em saber o que o vizinho, que também produz, anda fazendo), e depois porque paira sobre ela o risco de não ter continuidade por (adivinhem!) falta de apoio das empresas locais. Seria assim como plantar flores do campo num deserto.

Há ainda duas outras iniciativas: a coletânea “Poetas da Ponte”, organizada pela AME (Associação Maranhense de Escritores), onde se vê mais boa vontade que poetas e poesia, e o suplemento “Sacada Cultural”, do Jornal Pequeno.

As artes fazem plásticas

No terreno baldio das artes plásticas, notaram-se algumas experiências corajosas. Poucas e boas. Geraldo Reis foi morar no Portinho, pra pintar com mais verdade seus barcos e suas gentes e como forma de denunciar o que foi feito do Desterro (berre pelo aterro, pelo Desterro...), e expôs a sua “Paisagem”, na Galeria Matias Marcier. Já a Princesa Blues desenterrou suas raízes, folhas, tralhas e montou “Mensagem”, belíssimo trabalho com peças curiosas, apesar do nome careta. Francisco Joaquim dos Santos pôs nas ruas seus pastéis recheados de bom gosto, e dois artistas novos mostraram, em duas estreias, que vão conseguindo delinear caminhos próprios. Franco expôs suas pinturas em aquarela e Telma Lopes botou a boca no mundo pela preservação do verde com a sua “Ecologia Colorida”.

De foto e de direito

Poucos trabalhos expostos. Valeu a irreverência de Luís Pires, fotógrafo atento que capturou momentos hilários, patéticos da vida da cidade, com inteligência, picardia e olho no futuro. Luís andou mostrando seus clicks e flashes em feiras, exposições e clicks e flashes em praças, ou simplesmente onde houvesse duas ou mais pessoas reunidas em nome da arte. Quem não viu, não verá.

De noite e de dia

Nas ondas do rádio, nenhuma nova onda. Mas ainda se viu algumas boas ideias, como as do produtor da FM Mirante, Pedro Sobrinho, responsável por dois dos nossos melhores programas, a Segunda Instrumental e o Vento Nordeste, nos quais abriu-se um bom espaço para os músicos locais mostrarem o que pensam, o que cantam e o que tocam. Há ainda os bons especiais realizados pela equipe de produção da Universidade FM. No mais, nada de mais.

Projetos culturais

Houve quem buscasse alternativas para sua arte. Foi assim com um grupo de músicos e compositores, que, junto à comissão de cultura do Partido dos Trabalhadores, inauguraram a Sala Zé Hemetério e o projeto Viola de Bolso, que consistia na apresentação quinzenal de pequenos espetáculos musicais. O projeto se estendeu de fevereiro a março, quando acabou por falta de recursos.

Na mesma sala, outro projeto foi desenvolvido com sucesso. Foi a “Leitura de Poesia”, que o grupo Poeme-se tem apresentado desde o começo do ano. Por lá, passaram poetas como Leminski, Safo, John Cage e Augusto dos Anjos.

O grupo Madrearte também armou o seu “Canto de Rua”, com a proposta de levar a arte para as praças e ruas da Madre de Deus.

Costurando pra fora

A arte também foi respirar outros ares por outros lugares. A Academia Studium Arte Ballet foi a um Festival de Dança de Santa Catarina, levando o espetáculo “Terspsicore”. O Vox Feminae arrebanhou o quarto lugar no XVI Festival Internacional de Dança de Porto Alegre, e o Coral de São João foi a Córdoba participar de outro festival de corais, onde ganhou o primeiro lugar na classificação final.

Será arte?

Outros acontecimentos artístico-culturais (?) marcaram o ano letal de 89. A choperia Excalibur abriu espaço para shows que se revezam, mas não renovam. Por lá têm passado nomes como Gabriel Melônio, Cláudio Pinheiro, Marco Duailibe, Roberto Brandão e Inácio Pinheiro, em espetáculos com público e endereço certos, que enchem, com alegria de xópin center, o sábado de seus frequentadores, e, com certeza, os bolsos de seu proprietário. Aleluia!

O Teatro Praia Grande abriu as portas para a XIII FEMACO - Festival Maranhense de Coros -, que repetiu a chatice dos anos anteriores. O público que lotou as dependências do teatro se mostrou deliciado com dezenas de coros de caras tediosas cantando “a mão que toca um violão” ou “oh minha cidade deixa-me viver”, etecetera, etecetera, etecetera. Fora isso, só a ridícula rivalidade estimulada nos bastidores, entre a novidade de Vox Feminae, um coro só de vozes femininas ligado à Escola de Música, e a caretice do Coral de São João, que detém todos os louros da glória do canto coral em São Luís.

A jornada de Cinema e Vídeo mostrou mais uma versão cheia de êxito sem inquietação, apesar da pequena polêmica gerada em torno da não afluência do público aos cinemas e auditórios onde a Jornada acontecia. Com as atenções mais voltadas para o elenco de atores globais no júri que para a qualidade dos vídeos e filmes apresentados, foi possível registrar uma participação até numerosa de cineastas locais. Entre os premiados, trabalhos de Isa Albuquerque, Paulo Acrísio, Kitt Figueiredo, Júlia Emília e (vejam só!) José Raimundo Rodrigues, que realizou um documentário sobre a vida da militante comunista Maria Aragão (santo oportunismo, Batman!).

Rolou ainda o IV Festival Universitário de Música Popular, que surgiu com a proposta de mexer com a velha fórmula dos festivais, e não só não conseguiu como quase não aconteceu, mesmo com um velho festival de modelo ultrapassado. Pelo menos, valeu arrastar um público razoável para as terras improdutivas do campus do Bacanga, em torno de um fato cultural.

E por fim, um concurso de poesia batizado de Concurso Ferreira Gullar, que teve a premiação cancelada por (rir ou chorar, milk-shakespeare?) falta de qualidade.

Aquele velho disco de Festival de Fé, depois de uma novela cheia de surpresas e lavação de roupas sujas, parece que vai ter o seu final feliz, após a mobilização dos intérpretes e compositores junto à Secretária de Cultura, que afirma ter mudado de política (hic!), agora sob o comando de Américo Azevedo Neto.

Outros três discos esperam a sua hora no prelo. A Companhia Barrica, sob a batuta de Zé Pereira Godão, foi a São Paulo gravar a segunda bolacha do Boizinho Barrica, que deve ser lançado no período das festas juninas. Jorge Thadeu gravou o seu primeiro disco, como Tutuca, que gravou o seu “Beijo de Luz”. Até janeiro devem estar sendo lançados esses dois trabalhos, realizados no Estúdio Transamérica, no Rio, ambos com produção musical de Zé Américo (soy loco por...).

terça-feira, 23 de maio de 2017

A solidão de Macondo



Depois de léguas de páginas em viagem por Macondo, a remota e misteriosa aldeia do clã Buendía, nenhum viajante/leitor voltará o mesmo. Macondo nasceu em A revoada, mas foi com Cem anos de solidão, na primeira edição de maio de 1967, que a cidade imaginária passou a arrastar séquitos de visitantes curiosos, incréus e aturdidos.

Cinquenta anos depois, a capital do realismo mágico de Gabriel García Márquez continua viva, embora erma e enigmática, desafiando o sossego e a memória de quem se arrisca a decifrá-la. Daí porque, de lá, ainda que em ligeira espiada, ninguém retorna impunemente. Foi o que ocorreu comigo e, certamente, com milhões de outros leitores mundo afora.

O labirinto de Cem anos de solidão tem como portão de entrada o rito de colonização da América Latina, numa época em que “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome”. A solidão de Macondo e seus personagens é uma espécie de metáfora do isolamento e do provincianismo político dos países latino-americanos, características legadas pela esperteza de “gente estrangeira”.

Do casamento de José Arcardio com Úrsula seguem-se sete gerações de muitas histórias entrelaçadas pelo viés político e enriquecidas por um componente mítico peculiar do autor – numa melancólica Macondo “choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias”. Foi esse imaginário fantástico que deu asas a Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão – noutras dezenas de livros também - e o projetou ao Nobel de Literatura. Ao longo de anos, o escritor colombiano desembainhou discursos contra a desarrumação descomunal da América Latina e os expôs com suprema elegância na sua literatura. Ressentia-se ele da equivocada leitura que a Europa, em especial, fazia sobre a história e a cultura da América Latina.

O desconhecimento europeu deliberado, segundo García Márquez, reduziu por séculos o “tamanho cultural” das nações e do povo latino-americanos. “A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários”, disse ele em Estocolmo, em 1982, ao receber da Academia Sueca o Nobel de Literatura. E acrescentou: “Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva se tratasse de nos ver em seu próprio passado”.

No livro Eu não vim fazer um discurso (Record, 2011), coletânea de pronunciamentos de Gabriel García Márquez em diferentes lugares e situações, desde sua estreia como orador ainda estudante em Zipaquirá (Colômbia), há um rosário de argumentos que reforçam as convicções de um escritor assumidamente de esquerda, com os pés no chão e a imaginação em permanente euforia.

O povo latino-americano soube catalisar agruras e transformá-las em fábulas, segundo a essência do discurso de García Márquez. O nó da solidão na América Latina, dizia, está na distância entre o duro assombro da escassez cotidiana e a fantasia em estado bruto: “Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável”.

A aventura quimérica presente na obra de García Márquez, com suas histórias encobertas por nuvens de amor e cólera, é pródiga na marcha pela redenção da América Latina, essa irremediável Macondo dos esquecidos, fina estirpe dos solitários. É nesse exercício de leitura errante pelas aldeias do escritor colombiano que encontramos em meio à prosa crua, provocadora, a poesia inverossímil que escorre pelo caule de um conversador empedernido. “Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia”.

Os espíritos, intumescidos no realismo mágico do escritor, morto em 2014 aos 87 anos, vagueiam distraídos “num café com gosto de janela, num pão com gosto de esquina, numa cereja com gosto de beijo”. Depois da primeira leitura, lá pelos meus 17 anos, por algumas vezes ainda voltei a folhear Macondo na esperança de encontrar esperança num pé de página. Quem sabe lá na frente, num inventário de escrituras polidas, como em Cem anos de solidão, a América Latina enxergará, enfim, esse caprichoso futuro escondido “no fundo dos cântaros”.