segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Amigos extraordinários




O amigo extraordinário não sabe de cor as datas especiais, não requer cuidados, não exige atenção. Não precisa estar ao lado a vida inteira. O amigo extraordinário não vive de expectativas, não tem pressa para o próximo abraço, nunca pede explicações, não cobra um telefonema. O amigo extraordinário não discute a relação, não faz pacto de fidelidade, não combina horário, não torce para o mesmo time. Jamais torce o nariz.

Fazer amigos não é um bicho de sete cabeças. Eles estão por perto, não voam alto, não desaparecem. Mas amigo extraordinário é outra história. O amigo extraordinário cria asas, vai estudar fora, casa, muda de endereço e telefone, tem uma família pra cuidar, responsabilidades que naturalmente pesam ao longo dos anos. Frequenta novos círculos de relacionamento criados na faculdade, na pós-graduação, no clube, na igreja, no ambiente de trabalho. Tão completo é hoje esse amigo extraordinário - pensava eu com os meus botões – que ele é incapaz de olhar pelo retrovisor e enxergar o velho casarão da Rua do Passeio abarrotado de meninas e meninos sem plano de voo algum para o futuro, sem sobrenomes, becas ou jalecos; sem alianças, escrituras ou consórcios.

Mas não, ele não rompeu os laços com o passado. O amigo extraordinário é alguém que de fininho saiu da festa de formatura da escola – como quem foi ali na esquina comprar cigarros –, te reencontra trinta anos depois e o calor do abraço continua o mesmo, a mesma intensidade daquele afeto que jamais foi esquecido. O amigo extraordinário tem alma grande, acolhedora. Resignado, sabe esperar a vida lhe restituir amores guardados debaixo das cobertas de cada janeiro.

O tempo tem sido o nosso melhor amigo extraordinário, porque nos deu o privilégio de atravessar com lucidez e pés no chão um dos períodos mais fecundos da humanidade em matéria de evolução tecnológica e comportamento. Veja o que a vida fez com a nossa juventude! Furamos a fila e fizemos a travessia para o século 21 cheios de incertezas, mas altivos. Como fomos sortidos de solavancos tecnológicos, um atrás do outro! Da máquina datilográfica saltamos para o computador, e logo para a internet. Revolução que continuou com o telefone celular, a TV digital, o smartphone e a imensa teia de mídias sociais.  

E foi essa teia que remexeu o tempo e abriu o baú extraordinário da nossa amizade. Redescobrimos agora amigos extraordinários como se estivéssemos iniciando uma jornada nova, como se amanhã fosse o começo de mais um semestre letivo esplendoroso dentro dos nossos corações. Valeu, Adriana, pela culpa, pela coragem de abrir a primeira fresta, pela escavação desse tesouro, pela imensidão de entusiasmo e por essa vocação quase arqueológica de achar gente.

Muito obrigado, Ana Rosa, pela companhia diária dos teus jardins de Holanda e por essa brisa de otimismo que sai do Mar do Norte, atravessa o Atlântico e vem soprar na nossa praia. Vejo flores em você! Raquel, tua gargalhada sincera me interessa, é o nosso bálsamo. Riam mais vezes, Ana Lídia e Naíza, até que se esgotem todos os emotcons! Viramos dependentes químicos da alegria de vocês. Sweet Lilian, continue catando poesias e folhas de ipês pelo chão de Brasília, e não esqueça de oferecê-las aos amigos extraordinários nessas manhãs enfadonhas de segunda-feira. Rômulo, grande irmão, ouça “Sweet Virginia” qualquer dia desses nas tuas festas particulares, verossímeis, e não esquece de agradecer a Deus pelo vinho da sexta-feira. A tua imaginação refinada está na pressa escondida sob o sapato de couro apache.  

O que seria do vinho sem o farto queijo de Rosana? O que seria de nós sem essas orações de confiança na primeira hora da manhã? Vai, Enésio, estica o passo que a caminhada é longa. Curta a vida, Telma! Froz, uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar contemplando melhor a paisagem que invade a tua janela. Viva o bom humor, Layra! Vamos nos permitir a piada maledicente, o vídeo desconcertante, a foto constrangedora. Vamos brincar de roda com a lucidez parabólica de Josy e a alegria hiperbólica de Maria Felix. Dancemos com Ana Silvina, dona da pista e dama da fotografia sempre à espreita, bem resolvida e pronta pra o que der e vier.

Mais solidário com os seus amigos extraordinários que solitário em aeroportos intermináveis, Ney é o agnóstico que todo bom cristão quer ter por perto, o grande menino barbado apanhador de histórias do mundo. Não há caminho sem paixão e fé, Stanys, Angélica, Eliza e Maria Alzina. Nildete e George, trabalhem com moderação e não esqueçam as origens. Dário e Gilberto, não importa o tempo, não importa se no rio Tejo, nós vamos sempre lembrar das peripécias do Cândido. 

Ritinha, Ana Célia, Celimar, Adilson, Viramy, Carmem, Ana Célia, Silvia, Joertha e Cristina sempre estarão do lado esquerdo do peito. Talvez eu não fosse a mesma pessoa se não tivesse um dia a sorte de sentar no mesmo banco do colégio com Leila, Marta, Gina, Totó, Silvinha e Célia. Talvez eu nem me arriscasse agora nas palavras não houvesse frequentado as aulas de mestre Valdivino. Talvez eu tivesse feito aquele discurso de formatura em 1985 se entre nós já não existisse um orador nato. Quem sabe o desfecho não seria outro? Quem sabe? Adelman, Mauro, Hélida, Silvia Maciel, Liane e Niedja, vocês fazem parte dessa história.

Rosa, não esquece de abrir a porta e acender o globo faiscante do paraíso. As cores são nossas, a casa é tua! Solta o grito, Goreth, e alimenta os teus amigos com folia e ceviche de poesia! A carne é fraca, Marcelo! Chega mais perto, Rogério, nosso querubim sem cachos, o anjo do enquadramento. A vida é um grande risco e carece de fantasia. Patrícia, Luciano e Sergei, quebrem o silêncio e apertem os cintos, o piloto Seba sumiu! Chris, esse avião azul desgovernado um dia pode até cair, mas ainda vai fazer mil piruetas no ar.

Só uma coisa é certa: amigos extraordinários não caem do céu. Porque é lá, num canto qualquer do azul de cima, que eles vão se encontrar casualmente depois da prova final. Pra esse tumulto de afeto dentro da gente. Pra última resenha. E para o que mais vier. Viva o extraordinário sentido da existência! 

domingo, 7 de dezembro de 2014

Maio oito meia (9) - A tribo isolada dos párias

Estudante de Engenharia Mecânica da UEMA, onde também era vice-presidente do DCE, Raimundo Garrone decidiu um dia trocar as aulas de cálculo vetorial no Campus Paulo VI pelas experiências mimeográficas do curso de Comunicação Social da UFMA. Cabeludo, óculos ao estilo Lennon, roupa despojada, Garrone logo fora entronizado na gangorra do movimento estudantil da Universidade Federal do Maranhão – ora altissonante, ora pasmaceira – pelas mãos da elite da militância e, na primeira oportunidade, elegeu-se secretário de cultura do DCE.

O prédio do Pimentão da UFMA era em parte povoado por gente como Garrone, transgressora em questões como sexo e drogas e embalada por boas doses de rock, reggae e poesia. Ali ele estava em casa, vivendo uma ciranda diferente com outros personagens, como Ademar Danilo e Fernando Abreu. Antes de entrar para o curso de Comunicação, em 1985, Ademar frequentou as salas de aula de Direito e Filosofia, empunhou bandeira como presidente de diretório acadêmico (D.A.) e candidato a vice-presidente do DCE na chapa “Guarnicê”, liderada por Francisco Gonçalves. Fernando Abreu também iniciou Direito, foi do diretório acadêmico mas abriu mão de uma promissora carreira jurídica para se entregar à poesia e estudar jornalismo no curso de Comunicação.

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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Ferreira Gullar: “Não entro para a academia; não quero ser exceção nenhuma”



A entrevista abaixo com o poeta maranhense Ferreira Gullar, que hoje à noite toma posse na Academia Brasileira de Letras, foi publicada em dezembro de 1999 na revista Parla, editada pelas jornalistas Flávia Regina e Dadá Coelho. Gullar viera a São Luís para ser homenageado pelo governo do Maranhão como nome de avenida. A rápida passagem ficou marcada como a última visita do poeta à cidade retratada no antológico “Poema sujo”. Ora no saguão do antigo Hotel La Ravardiere [hoje Holliday Inn], ora caminhando no calçadão da Avenida Ferreira Gullar, fiz a entrevista acompanhado pelo inspiradíssimo bom humor – estratégico para quebrar a sisudez do poeta – de Dadá Coelho e pelo olhar atento e sensível do fotografo Márcio Vasconcelos.


Fotos: Márcio Vasconcelos
Produção: Dadá Coelho

Ferreira Gullar é o tipo do cara que, nos primeiros quinze minutos de conversa, você pensa em desistir da entrevista. Ele resiste a se entregar completamente à pauta, responde sem entusiasmo às primeiras perguntas e franze a testa. Mistura de charme de poeta feito e impertinência da idade, talvez. Mas se você insistir um pouco mais, vai perceber que uma hora e meia de bate-papo com o poeta não é o bastante. Gullar fala da infância, dos assombros da morte, da gramática como uma barreira nos primeiros anos de poesia, da música, de vaidades e academia de letras. “A quantidade de maravilhoso que existe no mundo é pouco. É preciso criar o maravilhoso [...]. Os artistas são fabricantes de maravilha”. Leia.

Quem é o Ferreira Gullar?
Eu me considero uma pessoa comum. Mas dizer que é comum parece que não é. Na verdade, sou uma pessoa comum, tenho a minha própria história. Cada pessoa tem a sua própria história. Essa cidade me revelou, ainda garoto, que o mundo é maravilhoso, que nascer aqui é maravilhoso. O que você sabe quando nasce? Nada. Você é um bicho que nasceu e olha a cidade, olha o céu, a manhã, a luz... Então eu vivia deslumbrado com a cidade, com o mundo, que o mundo era isso, era a cidade com os seus ventos, suas árvores, o verde e a luz, o verdadeiro paraíso. Quando descobri que as pessoas morriam fiquei espantado. É uma coisa meio chocante.

A morte ainda lhe causa espanto?
A morte é uma coisa constante na minha poesia. Não que eu viva pensando nisso, mas é para mim e todo mundo um problema fundamental, um problema essencial, é a tua finitude, ou seja, a festa vai acabar. Se o cara ficar pensando nisso, não vive. Não vivo pensando nisso naturalmente, mas de vez em quando, contra a minha vontade, a morte surge de um canto qualquer da cidade, ou na voz de alguém ou em algum momento. Essa lembrança, essa ideia... O livro “Muitas Vozes” trata muito disso e evidentemente quanto mais você vai vivendo, mais próximo você está do fim. Falo isso com um jeito meio mole, mas não encaro assim, não. Apesar de não desejar a morte, sei que é ela inevitável e encaro isso com naturalidade. Um dia vai acontecer. Eu até comento, às vezes, que eu desejo a morte, surpreendo-me desejando-a. É uma coisa estranha. Adoro viver, mas existe essa presença. No livro há, inclusive, estratagemas que invento para escapar, tentando me esconder do problema, que na verdade é um problema sem saída. Mas isso não é a minha preocupação constante. Fico preocupado é com o viver, como todo mundo.

Agora, em outro plano, como é o seu cotidiano?
Atualmente estava fazendo uma tradução das “Mil e uma noites” a pedido do editor e passava parte do dia trabalhando nisso. E sempre tenho alguma conferência ou palestra para fazer. Então vou escalonando o tipo de ocupação que tenho. Uma das coisas que faço é desenhar. Também vou ao supermercado, passeio pela praia. Como moro próximo à praia, de vez em quando largo o que estou fazendo e saio, vou passear na praia, no calçadão ou do lado de cá da avenida. Às vezes, encontro um mendigo que não me conhece, alguns veem na televisão minha cara, outros me cumprimentam, me saúdam. Tem uma espécie de colônia de mendigos na rua Ministro Vieira de Castro. Há uns cinco deitados ali o tempo todo. Eu passei uma vez lá e um deles levantou-se e disse: - Poeta Ferreira Gullar, esporadicamente, leio os seus livros!

O volume de trabalho não provoca ciúmes nas pessoas que estão a sua volta?
A Cláudia [a namorada Cláudia Ahinsa, poeta carioca] mora com a mãe dela e eu moro com o Paulo, meu filho, numa outra casa. Nós adotamos esse sistema de nos encontrarmos quase todo dia. Vou na casa dela ou ela vai na minha. Vamos ao cinema, saímos para jantar. É melhor que ficar permanentemente um grudado no outro. Isso só desgasta a relação. O Ziraldo, quando estava me entrevistando para a revista Palavra, perguntou: - E você e a Cláudia? Cadê a Cláudia? Eu disse: - A Cláudia não mora aqui, não. Mora com a mãe. E ele então falou: - Mas você conseguiu o ideal, cara?!

Muitos casais mais novos não admitem morar em casas separadas.
Mas é que eles estão for fora. Os casais mais novos em geral não entendem muito das coisas. Essa ideia é besteira, bobagem. Também fui jovem, era um babaca... O jovem em geral é babaca. O jovem tem muita vitalidade, muita coisa altamente positiva. Agora, entende pouco das coisas. A vida é que vai dando experiência. O jovem não sabe de nada, o jovem é radical, não entende muito das coisas. Eu também fui jovem, queria tocar fogo em tudo, queria ir pra luta armada...

O senhor quis tocar fogo em tudo?
Eu não. Os jovens queriam. Quando fui jovem era um pouco mais afoito, mas nunca fui de querer tocar fogo. Sempre fui um pouco desconfiado, a realidade é mais complexa do que se pensa. O que faz o cara ser radical é pensar que a realidade é simples. É pensar algo do tipo “vou derrotar a ditadura com luta armada!”.



A gramática foi uma barreira no começo?
Uma vez a professora passou para a minha turma da escola uma redação sobre o Dia do Trabalho. Fiz a redação, mas descobri um caminho diferente para escrevê-la. Como no Dia do Trabalho ninguém trabalha, descrevi os escritórios vazios, as lojas fechadas e então ficou uma coisa que, para a professora, pareceu muito original. Quando foi dar a nota, ela disse na turma que a melhor redação era a do Ribamar, que só não ganhou dez porque havia dois erros de gramática no texto. Fui ver quais eram os erros e comecei a estudar gramática, porque achava que para ser escritor eu tinha que saber gramática. Fiquei dois anos só lendo gramática, até hoje sei o nome dos autores. Acho meio maluco uma pessoa que, de repente, fica só lendo gramática.

O senhor quis ser músico no início da carreira?
Eu era adolescente e tinha que ter um ruma na vida. Como meu pai era comerciante, a alternativa seria seguir a profissão dele. Mas não queria, absolutamente. E quando disse isso, ele sugeriu que eu fizesse um concurso para o Banco do Brasil. Meu pai me levou na agência do Banco do Brasil, aqui em São Luís, onde trabalhava um primo meu. Cheguei lá e vi todo mundo batendo máquina, fiquei horrorizado. Eu falei: - O sol lá fora, uma manhã linda e esses caras aqui trancados? Eu não quero isso de jeito nenhum! Eu não vou fazer concurso. Aí eu pensava: o que eu iria ser na vida. Mais aí vi na revista Vamos Ler, que era vendida aqui numa banca da Praça João Lisboa, uma foto do Vinícius [Vinícius de Moraes], o poeta tocando violão. Eu disse: - Essa é que é a boa profissão, tocando violão, cantando e tal. Vou ficar trabalhando num banco? Lembro bem dessa foto do Vinicius, ele está jovem. Não é que eu quisesse ser compositor, isso não era a minha praia. Mas ser poeta. Eu não tinha ideia clara, mas queria ser poeta, escritor, só não queria entrar naquela de ficar trabalhando como um maluco. Isso eu tenho horror!

A poesia tem muito isso do jovem que vislumbra aquela coisa boa da vida?
Acho que é isso. É um lado de encantamento e também uma coisa com relação à infância, porque no fundo a infância será sempre a idade de ouro, a idade maravilhosa em que você não trabalha, está descobrindo o mundo, a vida tem mais alegrias do que obrigações. Depois de adulto você tem que enfrentar os problemas. No fundo, o poeta, é um cara que não quer trabalhar, não quer assumir que é adulto. Ele quer preservar a criança, quer o encanto, preservar na vida – e ainda que seja na literatura – aquele lado maravilhoso que descobre no começo da vida.

A poesia, como em qualquer manifestação artística, tem o perfume da vaidade? Qual é o seu nível de vaidade?
Vaidoso todo mundo é, não existe pessoa sem vaidade. Os virginianos se caracterizam pela modéstia. A vaidade implica um pouco de burrice, pretensão. Há pessoas muito inteligentes que são extremamente vaidosas. Mas a pessoa mais inteligente que conheci foi o Darci Ribeiro e nunca vi ninguém mais vaidoso que ele. A vaidade é uma bobagem, uma coisa sem cabimento. As pessoas são iguais. O fato de você se tornar conhecido, de você realizar uma coisa bem, é algo que te dá satisfação. Tenho muito prazer, muita alegria de poder fazer a minha poesia, uma coisa que eu acho que eu faço com alguma qualidade, que as pessoas gostam. Agora isso não me faz superior a ninguém.

O senhor cuida da aparência?
Meu cabelo é comprido porque tenho preguiça de cortar, de ir ao barbeiro. Meu cabelo, quando eu cortava normal, como se cortava na época, ficava todo espetado e eu ficava irritado. Se cortar curto fica um troço que nem um porco espinho. Então fui deixando ele crescer e percebi quanto maior ele ficava, mais fácil de pentear era. Agora quero cortar, mas as amigas e a namorada não deixam. Se eu cortar o cabelo a Cláudia me larga. Esses dias está um pouco maior do que eu costumo usar.

Alguns compositores musicaram poemas seus. Mas como foi sua participação em “Borbulhas de amor”?
É, eu traduzi a pedido do Fagner.

O que o senhor achou do resultado?
A tradução ficou legal...

Então era a melodia que não prestava?
Não, não é isso...

E essa história de “dentro de ti um peixe?”
Não, aquilo eu liberei porque...

Era pior?
Eu liberei porque aquilo ali era brabo...Era pior. Agora é interessante o sucesso que aquela música fez.

A música [“Borbulhas de amor”] lhe diz alguma coisa?
A mim, não. Não me diz coisa alguma.

Como é que o senhor entrou nessa história?
O Fagner é meu irmão. Ele me ligou e disse: - Ô, parceiro tenho uma música aí que eu acho que vai fazer sucesso... Eu faço, profissionalmente. Ele me pede, eu faço. Então melhorei, a música era bem mais grossa, mas não podia tirar o negócio do peixe porque tirava o próprio sentindo da música. Mas aquilo é uma coisa de música popular, que não tem importância. É pro pessoal cantar mesmo, não é obra literária. E tenho uma opinião melhor que você sobra a música. Não acho que seja a coisa mais idiota. Acho que tem um certo mau gosto, que é esse negocio do peixe, mas é uma coisa erótica e que o pessoal adorou quando a versão saiu. Com uma semana estava no primeiro lugar. E não ganhei quase nada com aquilo porque Fagner, maluco, mandou traduzir sem autorização do autor. E o cara pediu de volta os direitos autorais. Resultado: uma cagada da braba. Ainda saí no prejuízo.

Há quem não goste de música, como o poeta João Cabral de Melo Neto, que fazia questão de assumir essa posição. É possível alguém rejeitar um música, independentemente do gênero?
Uma vez João Cabral me disse que preferia Ritchie a Beethoven. É claro que na gozação. Mas ele realmente não gostava de música. É porque João era muito intranquilo interiormente, muito inseguro. E ele tinha a necessidade de controlar a emoção. Tanto que a poesia dele é rigidamente estruturada por essa necessidade de controle da confusão interior. Ao contrario do que se pensa, a vida interior do João era de um tumulto muito grande, daí a necessidade de ter a ordem fora para controlar aquilo. A música é uma coisa invasora, a música não se controla, é uma coisa que arrebata, exatamente o que ele não queria. Para ele, a coisa pior era a emoção. Ficar emocionado era a pior coisa para o João.

Chico Buarque musicou o poema “Morte e vida Severina”. O que ele achou?
É, João me disse: – Não gosto daquilo. E completou: - Fui apresentado para esse Chico Buarque e falei assim: - Eu gosto muito do seu pai. Ele me contou isso.

As experimentações estão inundando as artes. Como o senhor avalia as instalações?
Alguma instalações são interessantes, mas isso é uma arte de segunda categoria. A arte efêmera é uma besteira. A arte tem que permanecer, a arte sempre foi isso desde que nasceu. Efêmero é tudo, não precisa fazer arte, caralho! A arte efêmera não é necessária. O que eu quero ver é fazer a arte permanecer, é fazer a Monalisa, que tem cinco séculos. É fazer o poema que fica, a quinta sinfonia, a nona, que as pessoas ouvem, os anos passam e o cara continua apaixonado. Isso que é o difícil de fazer. E enriquece o mundo, porque o homem é parte da natureza e a outra parte dele é cultura. Ele é imaginação, ele é invenção dele mesmo. Então, ele inventou a música, o teatro, o cinema, as artes plásticas para fazer a vida melhor. Para criar o maravilhoso. Porque a quantidade de maravilhoso que existe no mundo é pouco. É preciso criar o maravilhoso. Então, com a sinfonia, você cria uma coisa maravilhosa. Não é búzio que você achou na rua, na beira do rio. Não se acha o maravilhoso a toda hora. A arte cria. Os artistas são fabricantes de maravilha.

O senhor sempre criticou as academias, mas foi homenageado agora pela Academia Maranhense de Letras. Como é essa relação?
É esquisito, porque não sou acadêmico e jamais vou entrar para Academia nenhuma. O Sarney outro dia me ligou: - Gullar, você tem que entrar porque você é o grande poeta. Eu disse que não vou entrar para a Academia de jeito nenhum, sou teimoso e chato, não entro. Sinceramente, não tenho nada contra a Academia, mas não sou acadêmico. A Academia é uma institucionalização, ela tem a função de preservar... Agora, o cara entra pra Academia, depois vai ser enterrado num mausoléu – os imortais ficam enterrados num mausoléu, são exceção. Eu quero ser enterrado como todo mundo, não quero exceção nenhuma, o meu barato é ser igual às pessoas, o barato é ser igual e fazer poesia. Se eu puder fazer uma poesia maravilhosa e ser o moleque periquito, isso é que é o barato. Agora, se sou um príncipe encantado e faço poesia, é uma merda! A poesia é feita por gente comum, é nossa, pertence a todos nós. Não sou escola de samba, caralho!

E o poeta ficou impregnado na cidade, agora em forma de avenida?
Aquela avenida [Avenida Ferreira Gullar, em São Luís] pra mim é uma coisa inacreditável, porque posso imaginar que estou eternizado – eternizado é um pouco forte. Mas agora estou na cidade, pertenço à cidade, sou parte da cidade, virei avenida, virei pedra, virei nome. É maravilhoso porque sou desta cidade, sou filho desta cidade, me identifico com ela. Eu disse para Roseana [então governadora Roseana Sarney] que nenhum presente mais maravilhoso poderiam ter me dado. Não há outra maneira de você permanecer a não ser essa, de você ser alguma parte da cidade. É uma grande alegria, embora seja estranho porque ao mesmo tempo ando de chinelo pela Rua Duvivier, [no bairro de Copacabana] no Rio, e fico pensando: - Sou avenida lá em São Luís e estou andando aqui nessa rua de chinelo? É uma coisa meio estranha, mas a vida é assim mesmo.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O samba prêt-à-porter da preta


O samba de Patativa é uma costura de meias palavras embaladas pela simplicidade, uma colcha rara de expressões que exalam ao mesmo tempo provocação, timidez e luxúria. Um desalinho valioso, quase esquecido, cultivado em rodas de amigos nos becos das feiras de uma São Luís igualmente fora da linha, fora do tempo. Um samba pronto pra quem quer levar a alma lavada adiante. Porém um samba guardado.

É desse prêt-à-porter de estoque raro, alcançado em boa hora pela maestria de Luiz Junior e o talento de Zeca Baleiro - e mais um time de músicos bambas -, que surge o primeiro disco de Maria do Socorro Silva, a maranhense Patativa. Aos 76 anos, a dama do verso lascivo já havia entregue à sorte o seu inventário de mais de 200 composições que durante longo período repousaram numa gaveta de penteadeira da velha Madre Deus, o mais boêmio dos bairros da capital maranhense.

Agora, o registro em disco revela ao Brasil uma sambista da boa gema, expoente da melhor batucada, como foram também seus conterrâneos Antônio Vieira, Lopes Bogéa e Cristóvão Alô Brasil. Sem espelho, autêntica, desigual. Patativa entoa na roda, sem pudor, aquele tipo de samba carregado de alegria, embolado no calor das quatro paredes, na saliência venturosa da mulher ainda menina.

Nascida em Pedreiras, a mesma cidade de João do Vale, a transgressora involuntária com galho de arruda pendurado na orelha pede passagem pra mostrar ao mundo que urubu não come folha. O samba de Patativa é desses caprichosos linhos que colorem a cultura popular.

(texto de apresentação do CD)

domingo, 15 de junho de 2014

Maio oito meia (8) - O circo, o fim da farra e a Copa de 1986

Enquanto alguns davam os primeiros passos no curso de Comunicação da Universidade Federal do Maranhão, outros, como o estudante Jorge Thadeu, fechavam o ciclo acadêmico e desembarcavam de vez no mercado de trabalho. Antes de receber o diploma ao final do curso na condição de orador de uma turma que tinha Mara Fernandes, Rayol Filho e Roberto Fernandes entre os formandos – o jornalista Antônio Carlos Lima e a professora Nilde Sandes como patrono e paraninfa, respectivamente -, Jorge Thadeu viveria em junho daquele ano uma experiência inusitada. Ele, Gerude e Ronald Pinheiro estavam no meio da trupe de 200 artistas do Circo Voador escalada para deitar e rolar na lendária Copa do México de 1986.

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terça-feira, 13 de maio de 2014

A cidade era feita de poesia



Há muito de São Luís na poesia de José Chagas. Mas há muito mais de Chagas impregnado na cidade que o recebeu de janelas e portas abertas. O poeta tingiu ruas, becos e mirantes com sua pena ao mesmo tempo generosa e ácida, e coloriu o imaginário de leitores com uma obra densa e definitiva. Impossível avistar o topo da maré-memória do poeta sem o livre-navegar na prosa quase cantada.

José Chagas, poeta e amigo, nos deixa hoje caídos num imenso fosso de saudade.

Abaixo, transcrevo fragmentos do livro “Chagas em pessoa” (Edições FUNC, 2006), de minha autoria e do jornalista Manoel Santos Neto.



Sandália de couro, manga de camisa e uma calça de tergal cinza. Os óculos não escondem o olhar profundo, fugidio. Nem o cabelo grisalho reflete a cumplicidade entre o ombro ligeiramente encurvado e um cheiro de alfazema de quem mal se refez da sesta. Com o irmão Izídio e a sobrinha Deusana, José Francisco das Chagas mora numa casa simples.

Da janela do mirante, ele derrama sobre a rua a terna melodia do instrumento. Na biblioteca, em meio ao cheiro de mofo de livros espalhados na estante e outros tantos amontoados sobre a mesa de pau d’arco, percebe-se a intimidade de Chagas com a literatura sem fronteiras. Lê Susan Sontag com a mesma disciplina com que devora Saramago.

Ocupa-se do ofício da leitura e da escrita, como se as duas fossem uma coisa só. Sem o capricho da inspiração. E sem horário de expediente. Chagas nasceu canhoto e ainda cedo, na escola, foi obrigado a escrever a seco com a mão direita. “Continuei a fazer tudo na vida com a mão esquerda, exceto escrever. Chego a desconfiar que não só graficamente, mas até mentalmente escrevo de maneira torta”.

Chagas ilhou-se na literatura dentro da própria casa, desde ainda menino na Paraíba. Na travessia das léguas tiranas do Nordeste, a família do poeta continua em busca da chuva. À procura do colégio dos ventos que o tempo não apagou. Chagas cultiva o arroz do sonho. Os amigos ficaram na lembrança do arrozal. Antônio Jovino, Sólon, Zé Alencar, Socorro e Lina fincaram pé em Santana dos Garrotes. João de Maria Anselmo, vizinho, Chagas o perdeu de vista no caminho. “Mas, pobre, seja agora ele o que for/ Faço-lhe este soneto onde adivinho/ Que mais do que eu João é merecedor”.

São histórias que vão surgindo ao sabor da prosa e da poesia. De cada passagem de sua vida, Chagas tira um verso da manga e o recita com prazer. É quase uma liturgia. É nesse caminho que o poeta vai durando e dourando a vida.
Nada faz o poeta subir ao olimpo das vaidades. Mantém com inteligência uma simplicidade que faz dele um personagem incomum.

Dali da Estrada da Vitória o poeta vai nos conduzindo ao passado, até chegar em algum lugar da cidade onde ele enfim se reconhece. A rua da Palma é o começo de tudo. A primeira morada. A rua é para ele tão familiar como a própria palma da mão. Do meio da rua ele aponta para o tempo cravado no casarão de número 117. Uma quarta-feira de 1948. Da rua da Palma vai cruzando a pé o centro histórico. Não há beco que não revele um capítulo de glória e desencanto.

Ruas da Manga, Regente Bráulio, da Estrela e 14 de Julho. Em cada uma delas há um pedaço vivo de Chagas. Depois da pausa para uma água de coco na praça da Praia Grande, o poeta nos leva ao Desterro. Ali senta-se num banco da praça em frente à igreja e, com o pôr do sol à espreita, lê compulsivamente poemas do livro Os azulejos do tempo.

Nascido no ano de 1924, em Piancó (área hoje pertencente ao município de Santana dos Garrotes), na Paraíba, numa família de lavradores, Chagas é o mais antigo cronista vivo de São Luís, mas prefere se definir como “um violeiro sem viola”. Ele revela que é viciado em escrever: “O tempo inteiro eu vivo fazendo versos. Eu sempre faço versos. Eu tenho até mais facilidade de fazer versos do que de escrever em prosa”.

A lavra mais densa na obra de José Chagas é o primoroso retrato que, ao longo de sua carreira literária, ele construiu da cidade de São Luís. O fascínio que a cidade dos azulejos passou a exercer sobre o poeta levou-o a compor um sem-número de crônicas e poemas, celebrando ruas, telhados, pontes, moças, ondas, marés, silêncios, sobradões e bem-te-vis da velha capital maranhense. Hoje, aposentado, o poeta leva uma vida mansa, rodeado de livros.

O primeiro contato de Chagas foi com a literatura de cordel, a que mais próxima estava do pai dele. Sobre a influência definitiva de seu Francisco Firmo na poesia de Chagas há uma explicação em soneto: “Devo a meu pai a alegria de saber/ que ele levou escondido de mim/ o meu primeiro soneto/ para mostrar ao padre da freguesia / que era escritor e poeta./ A opinião do vigário não me impressionou (aliás bem pouco favorável)/ mas o gesto do meu pai me deu a certeza/ de que um poeta na família não fazia mal/ e seria bem recebido/ ainda que fosse um poeta pequeno/ porque também nossa família/ não tinha desses luxos”.

Foi na árdua tarefa de cavar a terra e o sonho que Chagas ficou no meio do caminho dos estudos. Mas não guarda arrependimentos. A vida, segundo ele, tem sido um eterno aprendizado. Fez com paciência a travessia da lavoura verde para a lavoura azul. E a lavoura azul estava a muitas léguas da Paraíba.

SONETO 13

MUITO CEDO plantei o arroz real,
e o arroz do sonho era o que mais crescia;
também ao capinar o milharal,
mais me ocupava em minha fantasia,
pois da lavra não vinha por igual
o que eu da terra e da ilusão colhida,
e a esperança do verde, por sinal,
murchava no verão, como a alegria;
só o plantio da alma é que era tal
que quanto menos chuva mais floria,
e isso era bom, porquanto é natural
nem só de pão a boca ser vazia,
e se pouco era o pão e pouco o sal,
muito era o doce bem da poesia.

Quando desembarcou em São Luís, José Chagas “espiritualmente já era um pouco maranhense”, porque quando estudava em João Pessoa, a influência cultural do Maranhão, por lá e por outros cantos do Brasil, era muito forte. Os livros didáticos da época continham textos de autores maranhenses, como Gonçalves Dias, Coelho Neto, Humberto de Campos, Viriato Corrêa, Raimundo Correia, João Lisboa, Aluísio e Arthur Azevedo e tantos outros. “Eu já conhecia tanto a literatura maranhense, de um certo modo, que quando cheguei a São Luís e comecei a me entrosar com a intelectualidade da terra, passei a descobrir que eu tinha lido mais autores maranhenses do que os próprios intelectuais daqui”.

Ainda hoje, além de “brincar com as palavras”, Chagas gosta de dedicar-se aos seus prazeres simples: percorrer as ruas de São Luís, observando as pessoas e detendo-se a contemplar casarões; ir a bancas de revistas e às reuniões da Academia Maranhense de Letras, onde desde o ano de 1975 ocupa a Cadeira nº 28. Aliás, no seu discurso de posse na Academia, Chagas disse que, ao chegar a São Luís, já trazia um caderno com poesias feitas na Paraíba. “Como nordestino que vem puxando uma cachorra, pois vim puxando a cachorra, que era a minha poesia”.

Juntou-se, num primeiro momento, à velha guarda da poesia maranhense. Ao lado de nomes consagrados da época, como Corrêa de Araújo, Fernando Viana, Assis Garrido, Manuel Sobrinho, Raul de Freitas e Clodoaldo Cardoso, Chagas foi espalhando pela cidade o seu arroz do sonho. O poeta também juntou-se à nova safra daqueles anos inaugurais. Bandeira Tribuzi, que havia chegado de Portugal, trazia a bordo o farol incandescente da Europa para uma província ainda refratária ao Modernismo. Ao lado de Tribuzi estavam Lago Burnett, Ferreira Gullar, José Sarney, Macedo Neto, Manuel Lopes, Carlos Madeira e muitos outros.

Em todo o percurso de sua vida literária, José Chagas nunca deixou de se reportar às dificuldades do povo nordestino, que ano após ano enfrenta a seca e a aridez do sertão. Retratando esses dramas, ele compôs inúmeros poemas que refletem a força telúrica que sempre serviu para inspirar sua obra. Salta aos olhos, logo no seu primeiro livro – Canção da expectativa -, a preocupação com o flagelo da fome. “Não vou dizer que passei realmente fome. Sou homem da terra da fome, vi a fome de perto e a ameaça dela em torno da nossa família”.

No livro autobiográfico Colégio do Vento, Chagas apresenta 40 sonetos retratando suas raízes e o cenário da terra natal, com os lugares, pessoas e bichos com os quais conviveu na paisagem de seu torrão paraibano. Mas o “fascínio louco” que São Luís passou a exercer sobre o poeta levou-o a compor um vastíssimo conjunto de crônicas e poemas, celebrando a simplicidade e complexidade da velha capital maranhense.

Graças à cumplicidade de um amigo fraterno, Antônio Justa, o jovem José Chagas acabou sendo funcionário da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Depois, exerceu diversos cargos em comissão na administração pública.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Felizes anos velhos

Texto originalmente publicado no jornal O Estado do Maranhão, no dia 25 de abril de 1998



"Tchau, mãe. Se cuida, tá? Thaís e Ana, vocês são belas mulheres; Cassy, continue tocando, que você chega lá. Virgínia, pena você não ter me amado como eu te amei. Veroca, Eliana, Nalu e Big, juízo, hein? Gorda, você é um cara incrível. Ricardo, meu irmãozinho, o cara que mais me conhece. Nana, querida, não fique com raiva de mim, eu tentei gostar de você, mas não dava, eu tava muito chato. Marcinha, gracinha, você é uma fofa. Fabião, vá à luta, meu chapa, Mariúsa, mãezinha, valeu a força que você me deu. Gureti, vê se fica menos briguenta. Maurão, seu veado, não beba tanto. Bundão, querido, cuida bem delas, tá? Zequinha, seu louco, largue um pouco os livros, bata mais punheta. Celso, lindo, você é duca. Nélson e Olaf, cuidem bem da chácara. Betão, Rubão, Max, lembrem de minhas posições. Laurinha, fofa, emagreça um pouquinho. Milu, você tá me devendo uma transa, hein? Tchau, pessoal, feliz ano novo pra vocês".

Foi assim que fui apresentado ao livro Feliz Ano Velho, de um cara chamado Marcelo Rubens Paiva. Cândido, um grande amigo dos tempos de escola, mal tinha começado a ler a obra, andava eufórico e fez questão de me mostrar esse trecho no meio de uma sonolenta aula de matemática. Ele sabia que aquilo iria mexer com minha curiosidade. E mexeu mesmo, tipo um soco! "Cara, é a maior viagem. Olha só a linguagem...", me disse ele, com ar de devoção. Foi assim! No outro dia corri até a livraria JC, no Edifício Caiçara, e comprei o livro. E terminamos a leitura quase ao mesmo tempo.

O ano era 1984. Feliz Ano Velho havia sido lançado em 1982 e caiu em nossas mãos no segundo ano científico, em meio às turbulências dos 15 ou 16 anos de idade. Devorei o livro em pouquíssimo tempo, reli, fiz umas anotações ao lado de cada trecho que achava interessante e passei adiante. As coisas ali no Dom Bosco – pelo menos entre os amigos de sala de aula e corredor – aconteciam mais ou menos desse jeito: se rolava algo legal, todo mundo experimentava. Assim, acho que o meu exemplar de Feliz Ano Velho foi lido por Leila, Gina, Célia, Ana, George, Cláudia, Maria. Talvez Marta, Ana Rosa, Sílvia, Gil... Já não lembro bem.

Lembro apenas que até hoje o livro não chegou de volta às minhas mãos. Pude vê-lo certa vez escondido dentro de uma apostila de Botânica de alguém da turma 203. Notei que aos meus rascunhos juntaram-se vários delírios daquela geração. Infinitas confissões, distrações, abobrinhas, desencantos.

No dia a dia da escola líamos Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Mulato, O Guarani, Éramos seis, A Pata da Gazela... Era batata: cairiam questões nas provas bimestrais de literatura e o mestre Valdivino não hesitaria em pedir uma resenha de cada livro. Muitas vezes limitávamos a ler as resenhas que ali surgiam já prontinhas, o que não exigia muito esforço. Não que os livros de Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio de Azevedo (e outros tantos medalhões da literatura) fossem desinteressantes. Pelo contrário. Hoje, relendo alguns desses clássicos, fica a certeza de que estávamos muito bem servidos. Mas havia o fato da imposição. E isso, às vezes, mexia como uma espoleta na alma de adolescentes inconformados a pretexto de tudo.

Pela contramão, numa espécie de mercado negro do nosso conhecimento pueril, Feliz Ano Velho surgia como um alento. Espontâneo. Não haveria provas ou arguição. Ninguém te pediria uma resenha ou análise de cinco linhas num almaço sequer. E se exigissem, as páginas rabiscadas e comentadas exibiam a cumplicidade de cada leitor com a história de Marcelo Rubens Paiva.

O livro expunha o nosso dialeto. A história? Um jovem buscando superar com doses de humor e lirismo alguns traumas que marcaram sua vida, como o desaparecimento do pai (o deputado Rubens Paiva), em janeiro de 1971, e o acidente que o deixou paraplégico aos 20 anos de idade, em dezembro de 1980. A trama é enriquecida pelo carisma do narrador que, ao tocar em determinados assuntos, transforma tabus da época em banalidade. Sexo sem frescura ou meias palavras, os primeiros tragos e a música como fundamento. Prato cheio para cativar leitores de todas as tendências, dos mais exigentes aos eventuais – como nós que, sentados no pátio da escola, líamos desarmados.

Havia um tempo em que livros eram compartilhados como se fossem sorvetes de tapioca, na porta da lanchonete Stop, na Rua do Passeio. O tempo em que li Feliz Ano Velho. Tempo em que Stairway to heaven do Led Zeppelin embalava os nossos sonhos. A buzina do Chacrinha, os filmes Bete Balanço e Menino do Rio, Flávio Cavalcante, o Thriller de Michael Jackson, a explosão do rock nacional, entre outras coisas, formavam o cenário do romantismo adolescente.

Feliz Ano Velho esteve por diversas vezes na lista dos livros mais vendidos, ganhou prêmios importantes, como o Jabuti e Moinho Santisfa, e chegou a ser traduzido para vários idiomas. Foi adaptado, ainda na década de 1980, para teatro e cinema. Ao completar 15 anos, no final de 1997, "Feliz Ano Velho" ganhou uma edição especial, ilustrada com fotos de personagens do livro e de alguns momentos que marcaram a carreira do autor.

Cândido, o cara que me apresentou a Marcelo Rubens Paiva, nasceu em 1968 (tinha de ser 1968!) e era uma dessas cabeças iluminadas que a gente tem o prazer de chamar de amigo. Conheci, através dele, um pouco do que estava acontecendo lá fora, o valor da amizade e aprendi a amar os Beatles, Adelino Nascimento, a estética do Cinema Novo e os Rolling Stones. Em 1993, pouco tempo depois de concluir o curso de Medicina, Cândido foi morar com os anjos e deixou uma baita saudade.