domingo, 9 de fevereiro de 2020

A feira das Luzias



Todas as terças e sábados Luzia está ali numa das calçadas do Campo de Santa Clara a vender o passado. Com o chapéu encobrindo parte dos cabelos avermelhados, de casaco e cachecol florido, um cobertor sobre as pernas e os olhos miúdos de esperança, ela ouve o mundo passar pela rua. Luzia é uma das muitas personagens da Feira da Ladra, uma tradição que há séculos resiste em Lisboa.

Pelos mais de quinhentos pontos de venda, como o da Luzia, passam muitos portugueses, espanhóis, italianos, franceses, alemães, chineses, russos e brasileiros. Luzia, que mais parece uma sessentona andina que uma feirante lisboeta, vende utensílios domésticos usados, como porcelanas, tapetes, cinzeiros, espelhos, cadeiras e alguns móveis e obras de arte, enquanto dona Teresa, a senhora de casaco vermelho, faz no telemóvel as contas do apurado do dia.



Sobre o nome da feira florescem lendas. Tudo começou ainda no século XII e, de lá para cá, o mercado mudou algumas vezes de endereço e identidade. Os taxistas da região falam de uma cigana que no passado roubava objetos das casas e os vendia na feira. Há quem diga que o nome Feira da Ladra deriva de “lada”, que num português mais arcaico significa aquilo que está à margem do rio. A feira, segundo pesquisadores, teria passado uns tempos ao “lado” do Tejo.

A explicação mais ouvida entre os comerciantes da área é a de que esse grande mercado a céu aberto de Lisboa foi inspirado nas feiras da Paris medieval, denominadas Saint-Ladre, nome que deriva de Saint-Lazare. Há, ainda, uma versão moura para o nome. Mas, como em toda feira, o freguês é quem escolhe a lenda mais verossímil.

Vende-se de tudo na Feira da Ladra, até artigos invisíveis. De peça de avião a caixa de absorvente vintage. De aparelhos de telefone a selos raros e moedas antigas. De livros, revistas e enciclopédias de diferentes épocas a azulejos de fachadas improváveis. De discos de vinil a uma cabeça empalhada de touro. De casacos de pele a chifre de alce da Escandinávia.

Ao lado da Feira da Ladra está o Panteão Nacional, na Igreja de Santa Engrácia, de onde se ouve baixinho a voz melancólica de Amália Rodrigues, os sussurros de Almeida Garrett e os versos de Guerra Junqueiro que ecoam das catacumbas ali existentes.



Há varandas com o fino de comidas e doces portugueses. Há música e gente desconfiada falando alto. Enquanto o euro passa de mão em mão na calçada das Luzias, seu Eduardo Martinho, o simpático livreiro que gosta de ouvir as declamações dramáticas de João Villaret, oferece-me uma edição brasileira comemorativa dos quatrocentos anos de Os Lusíadas.

Assim foi ontem na feira das Luzias!

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