segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Vertigens da democracia



Já havia uma quase certeza de que Democracia em vertigem não levaria, na noite de ontem, o Oscar de melhor documentário. Não importam o nível dos concorrentes, a qualidade técnica da produção brasileira ou os recortes maniqueístas acerca da obra de Petra Costa. Você pode até não concordar com o olhar subjetivo da diretora sobre a realidade política no Brasil da última década, mas o filme cumpriu um importante papel: lançou luz sobre a fragilidade da democracia na era da comunicação digital.

O mundo tem assistido a um espetáculo de pirotecnia do algoritmo nos últimos dez anos. As redes sociais arrastam multidões para as ruas, orquestram protestos, manifestações, derrubam governos, forjam mitos e criam outras narrativas para a história e, estranhamente, até para a ciência. O algoritmo, agora pai da política, avança vorazmente sobre a democracia.

O documentário de Petra Costa, ainda que para alguns seja apenas uma miragem, “um filme de ficção”, prenuncia um cenário que vem chamando a atenção de pesquisadores de universidades norte-americanas e britânicas. Há pouco mais de uma semana, a Universidade de Cambridge divulgou pesquisa aterradora que constata aumento da insatisfação popular em relação à democracia como sistema político. A pesquisa ouviu mais de quatro milhões de pessoas em 154 países.

A insatisfação com a democracia remete, segundo os dados da pesquisa, a uma série de fatores, como a crise financeira iniciada em 2008, variados escândalos de corrupção, situação de migrantes e refugiados e o advento da propaganda do ódio e intolerância – amplificada, na voz de líderes populistas, por esse modelo de autocomunicação de massa, cujo fiador é o algoritmo.

Essa erosão democrática vem de longe, mas a pesquisa surpreende porque põe agora na berlinda, na conta de alto grau de insatisfação, duas das democracias consideradas mais sólidas do mundo. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, mais da metade de homens e mulheres, entre eles muitos jovens, já olham a democracia de esguelha.

A propagação de fake News e o uso de mídias sociais como instrumentos de manipulação do público, em vários países – inclusive no país da Petra Costa –, ajudam a criar a desconfiança na democracia como sistema de governo capaz de promover o bem comum.

Os algoritmos – usados hoje à exaustão para medir e ditar modelos de consumo e comportamento político-cultural – desaguam no revisionismo histórico como ferramenta para conjecturar o tempo presente e na formação de releituras sobre pensamentos filosófico-científicos já sedimentados. Dessa combinação de algoritmos medram sentimentos de racismo e a xenofobia. Medram desconfianças que vão além da própria democracia. Desconfiança na humanidade.

Democracia nada tem a ver com esquerda. Não é de partido algum. Democracia é democracia. O documentário brasileiro perdeu a estatueta. Mas a democracia não pode se perder por aí. Não pode a democracia virar vertigem.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

A feira das Luzias



Todas as terças e sábados Luzia está ali numa das calçadas do Campo de Santa Clara a vender o passado. Com o chapéu encobrindo parte dos cabelos avermelhados, de casaco e cachecol florido, um cobertor sobre as pernas e os olhos miúdos de esperança, ela ouve o mundo passar pela rua. Luzia é uma das muitas personagens da Feira da Ladra, uma tradição que há séculos resiste em Lisboa.

Pelos mais de quinhentos pontos de venda, como o da Luzia, passam muitos portugueses, espanhóis, italianos, franceses, alemães, chineses, russos e brasileiros. Luzia, que mais parece uma sessentona andina que uma feirante lisboeta, vende utensílios domésticos usados, como porcelanas, tapetes, cinzeiros, espelhos, cadeiras e alguns móveis e obras de arte, enquanto dona Teresa, a senhora de casaco vermelho, faz no telemóvel as contas do apurado do dia.



Sobre o nome da feira florescem lendas. Tudo começou ainda no século XII e, de lá para cá, o mercado mudou algumas vezes de endereço e identidade. Os taxistas da região falam de uma cigana que no passado roubava objetos das casas e os vendia na feira. Há quem diga que o nome Feira da Ladra deriva de “lada”, que num português mais arcaico significa aquilo que está à margem do rio. A feira, segundo pesquisadores, teria passado uns tempos ao “lado” do Tejo.

A explicação mais ouvida entre os comerciantes da área é a de que esse grande mercado a céu aberto de Lisboa foi inspirado nas feiras da Paris medieval, denominadas Saint-Ladre, nome que deriva de Saint-Lazare. Há, ainda, uma versão moura para o nome. Mas, como em toda feira, o freguês é quem escolhe a lenda mais verossímil.

Vende-se de tudo na Feira da Ladra, até artigos invisíveis. De peça de avião a caixa de absorvente vintage. De aparelhos de telefone a selos raros e moedas antigas. De livros, revistas e enciclopédias de diferentes épocas a azulejos de fachadas improváveis. De discos de vinil a uma cabeça empalhada de touro. De casacos de pele a chifre de alce da Escandinávia.

Ao lado da Feira da Ladra está o Panteão Nacional, na Igreja de Santa Engrácia, de onde se ouve baixinho a voz melancólica de Amália Rodrigues, os sussurros de Almeida Garrett e os versos de Guerra Junqueiro que ecoam das catacumbas ali existentes.



Há varandas com o fino de comidas e doces portugueses. Há música e gente desconfiada falando alto. Enquanto o euro passa de mão em mão na calçada das Luzias, seu Eduardo Martinho, o simpático livreiro que gosta de ouvir as declamações dramáticas de João Villaret, oferece-me uma edição brasileira comemorativa dos quatrocentos anos de Os Lusíadas.

Assim foi ontem na feira das Luzias!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O padre e a revolta dos cordiais



Em outros tempos, o Padre Antônio Vieira teria o dia de seu nascimento [6 de fevereiro] festejado pela quase unanimidade dos portugueses. Mas não hoje. A imagem do aclamado orador, filósofo, diplomata e missionário jesuíta, como essa escultura em frente à Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, nos últimos anos virou alvo de arranhões e manifestações públicas.

Há quatro dias, em longo artigo publicado no jornal “Público”, as historiadoras Inês Barreiros e Patrícia Marcos, o professor Pedro Pereira e o arqueólogo Rui Coelho desfiaram um rosário de ataques à cultura da hegemonia lusotropical – segundo eles, na consciência de muitos, Portugal ainda hoje padece de um complexo de império – e ao missionário da Companhia de Jesus, que chegou ao Brasil ainda criança, viveu no Maranhão entre 1653 e 1661 e por lá cometeu alguns de seus sermões mais célebres.

A estátua de Vieira ao lado de três curumins, encomendada pela Câmara Municipal de Lisboa e esculpida pelo artista Marco Fidalgo ao custo de quase 100 mil euros, foi inaugurada em 2017 e reproduz a narrativa até então consensual sobre a trajetória do jesuíta: de um homem à frente do seu tempo, humanista e em permanente luta contra a escravização de índios por colonos portugueses no Brasil.

Tão logo inaugurada, a escultura foi atacada por pichadores e o Largo Trindade Coelho, onde encontra-se instalada, virou palco de manifestantes anticolonialistas que classificavam o Padre Antônio Vieira como “escravagista seletivo”. De acordo com o panfleto do grupo, mais de 6 milhões de africanos foram escravizados com apoio da Igreja Católica; a colonização portuguesa, em fins do século XVI, já havia dizimado 90% da população indígena; a evangelização jesuíta foi a maior responsável pelo etnocídio ameríndio; e que, portanto, Vieira, expressão maior da Companhia de Jesus, não seria digno de tal homenagem num momento em que portugueses semeiam planos para redenção da história.



A manifestação dos anticolonialistas foi barrada por um grupo de extrema-direita, que sobre o chão estendeu faixa com a frase “Portugueses primeiro!”, uma alusão tosca ao american first de Trump e ao nacionalismo míope para onde, tristemente, descamba a democracia liberal.

Mas, de volta ao argumento da hegemonia lusotropical [seguindo os rastros de Gilberto Freyre], o artigo dos pesquisadores portugueses expõe, assim como já ocorreu em outras publicações do universo acadêmico, uma ferida mal curada dos efeitos internos da colonização. Alguns batem-se contra a “narrativa mitológica” de uma “civilização benigna” patrocinada pelo império colonial português. E o pregador jesuíta, não obstante a erudição e o legado literário, é a representação materializada em bronze de uma grande fantasia da história.

A escultura, segundo os estudiosos, tenta fincar no presente a ideia de que a Igreja, nomeadamente a Companhia de Jesus, e aqui por meio do Padre Antônio Vieira de mãos dadas com a inocência dos curumins, foi legítima defensora dos índios quando da colonização portuguesa no Brasil. “Que a igreja atual se reveja na pose de um padre junto a crianças submissas é algo que preocupa”, alertam eles.

As invectivas dos pesquisadores deixam uma nuvem de polêmica no ar. Afirmam, sem meias palavras, que Vieira nada mais foi que um eloquente defensor da escravização dos africanos e que, mesmo hasteando bandeiras de liberdade aos indígenas, ajudou a impor a estes as armaduras da catequese cristã [crianças índias afastadas do convívio dos pais índios, selvagens] à moda do etnocentrismo europeu.

Apesar da polêmica de agora, Padre Antônio Vieira é reconhecido como um dos homens mais notáveis de Portugal, mestre da língua portuguesa e autor de uma das mais importantes obras do barroco luso-brasileiro que inclui sermões, cartas, discursos e poemas. Entre os textos de Vieira ainda hoje estudados e admirados estão o Sermão da Quinta Dominga da Quaresma e Sermão de Santo Antônio aos Peixes, escritos em São Luís; e Sermão da Sexagésima, escrito em Lisboa.

Nessa escalada de rebelião cultural tardia, em nenhum momento a qualidade da obra do Padre Antônio Vieira é posta em dúvida. A revolta dos homens cordiais de Lisboa mira, pelo menos por enquanto, apenas o anacronismo da homenagem a um importante ator desse imperialismo tão caro aos portugueses. O que já não é pouco!