domingo, 12 de dezembro de 2021

O jornaleiro

Já não há quase bancas de jornais em São Luís. Estão sumindo também os jornaleiros. São poucos agora nas ruas. Estão minguando os jornais, com suas edições franzinas e tiragens minúsculas. Quem haverá de vendê-los? Quem haverá de encontrá-los impressos na esquina? Os jornaleiros estão pagando o pato. 

Aos domingos encontro ainda o César Roberto sentado ali no seu ponto, na rotatória do Olho d’Água. Aos 43 anos, o solitário jornaleiro resiste ao tempo. Não sabe até quando. Sempre de bom humor, ele mantém o otimismo e se protege como pode nesses dias de calor intenso, no sol de quase dezembro. 

Albino, César usa filtro fator 70 para proteger a pele sensível. Há mulher e dois filhos em casa o aguardando todos os dias. O motorista apressado para e toca alto a buzina de sua Land Rover . É a senha. César corre e entrega mais um jornal pela janela do automóvel. 

Os leitores também estão desaparecendo das ruas, como o papel e a tinta. Depois de tudo, César entrega o meu exemplar do jornal e me pergunta quem vai ler tanta notícia amanhã. Saio calado, sem deixar qualquer resposta. César segue na sombra dos domingos.

O erro

A música My mistake, dos Pholhas, fez um sucesso estupendo no final dos anos 70/começo dos 80 e embalou as tertúlias frequentadas pelos meus irmãos mais velhos em Barra do Corda. Era o tempo da música lenta. Na pista, todo mundo agarradinho, indiferente ao que dizia a canção... Cresci ouvindo em casa essa espécie de “hino” de um romantismo puro, quase ingênuo, carregado de nostalgia. 

Só há pouco tempo, ao assistir à série “História secreta do pop brasileiro”, uma adaptação do livro Pavões misteriosos, de André Barcinski, me dei conta de que My mistake é, literalmente, uma tragédia. A letra da música fala de um cara que matou a esposa - porque ela andava saindo com outro – e foi parar na prisão.

Muitas bandas no Brasil, ou “conjuntos musicais” como os Pholhas, só gravavam em inglês, por imposição da indústria fonográfica que inundava o mercado de “enlatados” estrangeiros, especialmente norte-americanos. E o inglês da turma da música não era lá essas coisas. No caso dos Pholhas, aqui e ali eles compilavam frases chupadas aleatoriamente de livros e revistas em inglês e chegavam a uma canção. Foi o caso de My mistake, um espelho das letras do blues, que invariavelmente carregavam nas tragédias cotidianas. 

“Eu perdi a cabeça e atirei nela”, diz um dos trechos da música, e os casais lá dançando sob aquela luz negra, como se não houvesse amanhã... Esse “feminicídio” melódico/meloso fez história, engatou romances nas danceterias, rendeu aos Pholhas um cobiçado “disco de ouro” e abriu caminhos para uma breve carreira internacional. 

A foto de capa do álbum é um capítulo à parte, algo emblemático, com os quatro integrantes entonados em traje que indicaria, anos depois, um flerte da banda com o rock progressivo. 

My mistake não morreu. Só a mulher que saiu com outro.

sábado, 23 de outubro de 2021

De perto ninguém era normal



Numa outra situação começaria o texto tentando encontrar alguma senda pra dizer sem meias palavras que o jornal acabou e a vida emula a arte ainda que essa história toda abra uma cratera de desencanto em relação ao futuro mas pra começo de conversa o jornalismo não chegou ao fim como um convescote sob a chuva e a última edição impressa de um jornal como este não significará o triunfo das fake news amanhã de manhã porque o jornalismo vai persistir apesar de tudo se você quer saber a verdade e digo isso pra falar do meu tempo de chegada ao jornal O Estado do Maranhão em 1995 o ano das tenebrosas transições quando mal tínhamos saído da máquina datilográfica e do videocassete e do telex e do fax para entrar na era do Windows 95 e da web e do telefone móvel e da música digital e ali já se falava timidamente do começo do fim mas eu estava chegando a convite de Zeca Pinheiro pra dar continuidade ao trabalho iniciado por ele e Francília Cutrim no Galera um caderno especial dos fins de semana voltado para o publico juvenil e eu relutei a princípio mas acabei aceitando o desafio por entender que faria algo diferente das experiências anteriores e na intenção sorrateira de galvanizar o frágil repertório que trazia da faculdade e então desembarquei naquela sala de redação que conhecia de visitas frequentes e do convívio com jornalistas veteranos e venturosos mas havia também um receio imenso de criar um texto para um leitor quase inalcançável e eu ali nos primeiros dias de Galera tentando encontrar palavras que chegassem mais certeiras nos corações e mentes de gente tão cheia de desconfiança e espinhas no rosto e um baita desafio de escrever como quem conversa com esse público e fui me agarrar à leitura feita anos antes de uma edição dos quarenta anos de O apanhador no campo de centeio do J.D. Salinger e como quem procura uma agulha no palheiro de uma loja de tecidos da rua Grande meti na cabeça que os leitores desse nosso tabloide talvez tivessem a mesma rebeldia do misantropo Holden Caulfield e aquilo foi me servindo de bússola e catavento até mergulhar de vez no moinho das digressões de que fala o narrador porque ora na rua como repórter caçando histórias ora sentado de frente para o Compaq 486 no fundo éramos todos Holden com suas aflições e a incapacidade de enxergar um tal amadurecimento batendo à porta além do olhar severo sobre uma sociedade fajuta e falida e as relações familiares e o modelo autoritário e arcaico de educação e os amores escapando pelos poros e a desesperança pulsando na artéria e quem sabe todo esse olhar ácido sobre as coisas e as pessoas hora dessas se desmancharia em afeto ainda que às escondidas por uma irmã caçula feito a Phoebe e seu cabelo meio ruivo e coisa e tal e tudo isso eram epifanias que embalariam meus quase quatro anos de jornal O Estado do Maranhão escrevendo sobre o sexo dos anjos e pajelanças na escola e aborto e inimigos imaginários e a filosofia de cantina e o blefe da cantada e a política e a astrologia barata e o amor e a desilusão da tribo e mais um turbilhão de pautas pensadas e dispensadas todas elas à beira do desregramento do jornalismo e no balaio frenético da subversão do lead e era nessa espiral de amadorismo e paixão que sem culpa eu e Francília Cutrim e parceiros como Nílson Amorim e a galera da Daphne e Bruno Paschkes e Dadá Coelho e Rogério Pixote e Márcio Vasconcelos e Edwin Jinkings e Pedro Sobrinho e Otávio Rodrigues e Sandro Fortes e Flávia Regina e Eduardo Júlio e Wendell Silveira e Ribeiro Jr. e Natália Macedo e Talvany Lukatto e Gil Maranhão e Paulo Washington e Viviane Martins e Beth Bittencourt e Lívia Feitosa e Virgínia Diniz e Gilberto Mineiro e Lenita de Sá e Robson Júnior metíamos poesia na bagunça do dia e música e fotografia e literatura selvagem na matéria-prima de Guttemberg na inglória jornada de dessacralizar a notícia e claro que aqui e ali esbarrávamos em formalismos e tropeços e críticas naturais pelo caminho e os anos correram desembestados e os meninos e meninas que nos liam cresceram e abriram mão dos pelos no corpo e hoje estão por aí em seus quartos conectados nas redes sociais e talvez nem leiam mais revistas e jornais impressos porque não lhes dizem nada que já não desconfiem saber pelos grupos de Whatsapp e pra quê ler jornal se afinal de contas segundo eles tudo está guardado na nuvem e nuvens ficam ali bem perto de Deus e à direita de Bill Gates que por incontida deselegância ainda não programou um tabloide que da prateleira de uma banca de revistas da praça João Lisboa acenda suas luzes com timeline e feed e stories e Tiktok e uma manchete anunciando que a morte do papel é só a morte de uma árvore que ainda não foi plantada mas que envelhece como o smartphone do ano passado e O apanhador do campo de centeio que agora chega aos setenta anos qual um menino nu folheando a página do jornal feita de tempo pra viver outra realidade menos morta o que a essa altura me faz crer que se eu não houvesse lido o nosso amigo Salinger ou passado pela sala de redação de O Estado do Maranhão talvez eu tivesse perdido a chance de em ocasiões como agora engolir vírgulas ou de tumultuar a linguagem ou de me permitir num sábado cometer digressões para nunca mais e vejo que só assim com o nó na garganta de quem nunca se desapegou das inconfidências do menino Holden sou impelido a colocar um ponto final nesse texto que nem gotas interrompendo o piquenique do olhar. 

(texto originalmente publicado hoje na última edição impressa do jornal O Estado do Maranhão; foto de Márcio Vasconcelos, que ilustrou uma das edições do Galera, com performance de César Boaes e Erivelton Viana)

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A fortuna da palavra

 

No final de 2019, o jornalista e escritor JM Cunha Santos me convidou para escrever o prefácio do seu segundo romance, Os Herdeiros do Sol – A Convenção do Sol, que, segundo ele, seria publicado “em breve”. Logo veio a pandemia da Covid-19 e os planos de publicação do romance foram adiados. 

 

Hoje, lamentavelmente, recebemos a notícia da partida do amigo Cunha Santos, um grande talento no malabarismo das palavras com quem tive a sorte de trabalhar em alguns projetos (pela Clara Editora publiquei o primeiro romance dele, A comunidade rubra) e de dividir muitas horas de prosa & poesia. Fica uma grande lacuna no jornalismo, na literatura, nos becos de São Luís e nos bares. E ficou este prefácio sem a luz do livro: 


*****

 

JM Cunha Santos bebeu nas fontes de Thomas More e Erasmo de Rotterdam para tecer A comunidade rubra(Clara Editora, 2012), seu romance anterior que se impõe, da primeira à última página, como escape à perversão política e à degenerescência humana. O autor agora, neste Os Herdeiros do Sol – A Convenção do Sol, aponta a sua lanterna para a escassez de luz que ronda o baldio da juventude.


O novo romance de JM Cunha Santos é intenso, carregado de metáforas, de linguagem certeira e instigante, como convém a um livro dirigido ao público jovem. Mas cabe, de saída, um alerta: não é uma obra exclusivamente para o olhar juvenil, porque toca também, sem alarde, em temas caros do tecido político e social de um recanto qualquer da galáxia chamado Porto da Aldeia, ali nos arredores do Sol.


O texto cortante alcança personagens atormentados com uma fartura de ingredientes que mistura dor, solidão, desventura, sexo sujo, drogas e um mix de pancadão que embala a cólera dos dias. A Convenção do Sol é quase uma lavagem de roupa suja entre príncipes, fadas, ninfas, poetas, maltrapilhos e outras divindades que, aqui e ali, auscultam o estampido da desesperança.    


Há uma sensação permanente de desassossego entre os candidatos a herdeiros do Sol. A embolada onírica de JM Cunha Santos sugere a cura de todas as mazelas pelas páginas do Livro Azul. Sim, onde existe desassossego há poesia. E, à margem azul do livro, “poetas se apaixonam a cada dia por amores diferentes e sofrem, e tentam transformar dor em beleza”.   


JM Cunha Santos, jornalista e poeta, domina a pena da ficção com a habilidade de um ourives sem ouro. É cuidadoso na narrativa e às vezes parece infiltrar-se nas zonas mais soturnas da trama, como na cracolândia estelar, por onde desfilam zumbis invisíveis, prisioneiros de um mundo sem grades que quase nunca amanhece.    


O romance Os Herdeiros do Sol – A Convenção do Solnão é o prelúdio do fim do mundo, mas talvez um grito de alerta sufocado pelo som de harpas e a fúria da poesia ligeira, camuflada na composição de personagens abaladiços. Na ficção de JM Cunha Santos “ser feliz não é difícil”, mas é preciso “nadar no suor do Sol” para escapar das ciladas da amargura. 


Quando o romance é também poesia, é possível saltar sem paraquedas na escuridão da trama. O livro diz muito, sem a pretensão de ser pleno. Sem panfleto. Sem bandeira. Porque a palavra, como desconfia o autor, é aquilo de que a poesia menos precisa. 


Quem sabe na prosa a palavra seja o próprio o Sol. Ou, conforme a leitura, no mínimo a herdeira dele.

 

 

sábado, 16 de outubro de 2021

As cidades substituídas

Detalhe das cores da rua Portugal, no centro histórico de São Luís, um dos cartões postais da cidade


Félix Alberto Lima

Salgado Maranhão

 

Algumas cidades são extraordinárias pelo que guardam nas entranhas, nas quebradas, nos quarteirões antigos, nos pontos mais boêmios. O misterioso sumo da beleza das cidades está no centro delas, esse cep quase universal, magnético, que aglomera, que reúne coisas e gente. Por mais que haja vida pulsando nos arredores, é no centro que está a alma das cidades. 

 

Ainda que a brisa bafeje as varandas dos condomínios litorâneos e toda a sua modernidade –  e que, cada vez mais, movimentos migratórios empurrem o homem para a periferia – no centro das cidades moram a poesia, as raízes, a ancestralidade de um povo. Reside lá a importância do tecido histórico de qualquer comunidade. É por onde tudo começa. 

 

Mesmo nas cidades grandes, onde há mais de um centro, a pedra fundamental das povoações está nos chamados centros históricos, os conjuntos urbanos inaugurais, alguns deles seculares, que vêm sendo devorados ao longo do tempo pela evolução industrial.  Automóveis tomaram ruas que foram planejadas para o uso de bondes, o asfalto encobriu o chão que um dia foi de paralelepípedo.

 

Alguns desses centros históricos foram perdendo vida no compasso do tempo. Parcialmente abandonados, sem investimentos em tecnologia e acessibilidade, tombaram, viraram ruínas. As repartições públicas e as grandes empresas mudaram dos centros para endereços modernos, com melhor estrutura.  

 

No Brasil, prédios de imenso valor histórico foram deliberadamente esquecidos por proprietários insensíveis. Alguns donos de imóveis tombados pela Unesco, em São Luís, no Maranhão, chegaram ao ponto de deixar que casarões de traços coloniais desabassem, pela ação do tempo e, principalmente, das chuvas, para transformá-los em estacionamento de veículos. 

 

Mas quando os centros históricos pareciam sucumbir, esvaecendo na paisagem das cidades, eis que o mundo começa a se reinventar no retrofit. Não é uma novidade. Na Europa da última década, algumas cidades foram tomadas por projetos de restauração de imóveis históricos em ruína. 

 

Lisboa é o caso mais emblemático de experiências bem-sucedidas de retrofit. Os sobrados, com seus traços arquitetônicos antigos e extraordinariamente belos, ganharam vida. Além de delicada recuperação das fachadas, internamente os prédios foram repaginados com todo o aparato da tecnologia. 


O centro de LIsboa ganhou vida, atraiu visitantes e movimentou a economia após projetos de retrofit

Com investimentos em itens hoje essenciais que a engenharia e a arquitetura do passado não previram, como sustentabilidade, climatização, acessibilidade e projetos elétricos e hidráulicos mais seguros, dá-se a convivência harmoniosa entre o antigo e o novo. 

 

Numa parceria entre governo e iniciativa privada, casarões antes abandonados dão lugar a instituições bancárias, restaurantes, cafés, escritórios, lojas de grifes e apartamentos para moradias, muitos deles a serviço do turista via aplicativos como Airbnb. Prédios em ruína, após obras do retrofit, transformam-se em importantes polos de atividade econômica.

 

E não é só Lisboa. Há Porto, Évora e outras cidades europeias que se reencontraram no retrofit. Mas Lisboa conseguiu reerguer-se ante a crise econômica global iniciada em 2008, graças aos grandes investimentos no seu centro histórico. O turismo pulsa na capital portuguesa, hoje talvez a cidade mais atraente para os visitantes europeus, pelo clima, pela gente, pela conservação, pela segurança. Pela reinvenção. 

 

No Brasil, o retrofit ainda é quase uma miragem. Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís são exemplos de capitais cujo modelo arquitetônico dos centros tem forte influência da colonização portuguesa. Com o tempo, perderam muito de suas características, pedaços de sua história. 

 

São Luís é uma rara joia arquitetônica brasileira tombada como Patrimônio da Humanidade em 1997. Daquilo que se observa nas ruas, quase nada ainda aprendemos com o exemplo dos europeus que, redescobrindo a essência de suas velhas cidades, transformaram-nas (das menores às maiores) em polos de crescente interesse do turismo internacional.


Casarões de São Luís com escoras para evitar o desabamento

Em recente visita à capital maranhense, o poeta angolano Lopito Feijó encantou o mundo lusófono com belas referências e postagens sobre São Luís. Das fotos que divulgou, muitos dos seguidores do poeta nas redes sociais acreditaram tratar-se de Lisboa ou de outra cidade portuguesa – vale lembrar que, até o século XIX, São Luís era chamada de ‘Pequena Lisboa’ pelos viajantes que nela aportavam.

 

Acreditamos ainda caminhar para o futuro. Mas, ao invés de “modernos”, estamos nos tornando kitsch. Entregamos ao descaso nossa melhor referência, o significado mais caro à cultura material. E, como diz o ditado, aonde não tem gente os bichos tomam conta.

 

Claro que as soluções não são improváveis. No Brasil há pelo menos quatro exemplos bem-sucedidos de zelo arquitetônico, de restauração exitosa: Parati, Ouro Preto, Tiradentes e Olinda. Prova viva de que nem tudo está perdido! Por meio dessas cidades, podemos olhar com critério e urgência outros casos que exigem preocupação no País. A erosão do tempo não nos dá outra opção. Não temos para onde levar os escombros do tesouro que recusamos.

 

Estado e município, sozinhos, não dispõem de meios para arcar com a recuperação desse acervo monumental. Mas têm a obrigação de promover políticas públicas de parceria com entes privados para salvar parte significativa da nossa história. E é o que começamos a enxergar agora pelas ruas do centro de São Luís, com algumas dezenas de casarões abraçados por tapumes coloridos que anunciam uma nova aurora. 

 

Não se trata aqui de mero culto ao antigo, mas de respeito à memória dos nossos antepassados, à cultura em pedra e cal, de reverência a essa anima mundiancestral. 

 

Que os ventos alísios do retrofit cheguem mais rapidamente a nossas cidades históricas. E que as famílias voltem a fazer do centro da cidade esse endereço fértil de utilidade pública, gentileza e afeto. Antes que seja tarde. 

 

 

São Luís e a primazia do retrofit


Félix Alberto Lima

 

São Luís foi palco de uma das primeiras obras de retrofitno Brasil, antes mesmo das intervenções de restauro arquitetônico financiadas pelo governo federal e incluídas no Projeto Reviver, no bairro da Praia Grande, em fins da década de 1980.  A recuperação do Solar São Luís – ou Palácio de Porcelana –, na esquina das ruas do Egito e Nazareth e Odylo, no centro histórico da capital maranhense, é um divisor de águas em iniciativas arquitetônicas que visam resguardar a harmonia entre o antigo e o novo.    

 

Fachada atual do Solar São Luís, na rua do Egito: azulejos descorados e marcas de abandono

O Solar São Luís, construído em 1866, fora projetado à semelhança dos sobradões existentes em Lisboa, com requintes de detalhes que exigiam a importação de matéria-prima portuguesa e mão de obra especializada. Planejado para ser a maior fachada de azulejo colonial da América Latina, o Solar São Luís abrigou, por longos anos, lojas, restaurantes, oficinas, escritórios de advocacia, hotel e livraria. 

 

Por suas características arquitetônicas peculiares e fachada colonial exuberante, o prédio virou referência e ponto de encontro mais tradicional de São Luís durante décadas. Pelo Café Serra, a Livraria Moderna e o Hotel Serra Negra circulavam homens de negócios, intelectuais, estudantes e clientes em geral.

 

No dia 3 de agosto de 1969, um grande incêndio – iniciado num dos cômodos do Hotel Serra Negra, no terceiro pavimento – destruiu toda a parte interna do Solar São Luís, imóvel à época de propriedade da família Moreira Lima. Restaram apenas os paredões externos, a fachada de azulejos, a silhueta dos arcos, soleiras e sacadas em pedras. 


Detalhe do que sobrou do Solar São Luís após o incêndio de 1969

Em 1975, a Caixa Econômica Federal adquiriu o prédio em ruínas e iniciou um demorado processo de restauração, com projeto assinado pelos arquitetos cariocas Dora e Pedro Alcântara. Ambos trabalharam, entre os fins da década de 1950 até os anos 1980, em obras como o Edifício João Goulart, restaurações do Palácio Cristo Rei e da Igreja de São Matias e projeto de expansão turística em Alcântara.

 

O prédio só foi reinaugurado pela Caixa em 1982. A reforma contemplou intervenções na estrutura interna, que ganhou nova edificação, de padrão arquitetônico moderno, e novos projetos hidráulico e elétrico. A fachada original foi totalmente preservada, com a recuperação de algumas extensões de azulejaria de estilo colonial português.   

 

O edifício restaurado passou a contar com subsolo, pavimento térreo e dois pavimentos superiores, além de sótão no desvão do telhado. As esquadrias das fachadas foram recompostas de modo similar ao original, em madeira com venezianas e bandeira de vidro. 


Vista interna do solar , nos anos 1990, quando o prédio era ocupado pela Caixa

Durante os anos 1980 e 1990, o Solar São Luís abrigou a superintendência da Caixa no Maranhão e serviu de galeria para importantes exposições de artes plásticas em seu Conjunto Cultural. 

 

Nos últimos 15 anos, porém, a superintendência da Caixa mudou de endereço e o Solar São Luís começou a ser esvaziado, apresentando sinais de falta de conservação e manutenção, como o descascamento das paredes internas, presença de manchas de umidade, sujeira aparente e comprometimento da estrutura. A extensa fachada de azulejaria colonial é o elemento do conjunto arquitetônico que mais sofre com a falta de cuidados. 

 

O que se constata, diante do abandono em que se encontra o velho casarão – cujas paredes internas esboçam em letra caixa o poema “O sobrado é belo/ Mas sua beleza/ Sem vidas humanas/ Só lhe dá tristeza”, uma espécie de clamor de Odylo Costa, filho –, é que parte importante da história de São Luís, apesar de tombada, está tombando com o tempo. 

 

 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O último dos poetas de uma boemia esquecida


José Maria Nascimento chega aos 81 anos hoje (18.09) como o último remanescente maranhense de uma poesia forjada por décadas nos becos soturnos da boemia, sob o éter que encobre as ruas estreitas do Centro de São Luís. Poesia, como vida, de altos e baixos. Poesia como meio de vida, quando vida e poesia são quase uma coisa só, e se confundem. Mimetizam.

Autodidata, mal frequentou o ensino básico e logo cedo se jogou no mundo para começar a desaprender nos livros emprestados, nos puteiros e nos bares. Foi “desaprendendo as coisas”, como que ruminando involuntariamente as invenções de Manoel de Barros – e cada vez mais se agarrando no acaso das palavras - que ele virou poeta. Aos 17 anos, publicou os primeiros versos na imprensa. 

Para se sentir verdadeiramente um poeta, imaginava ele, precisava andar com poetas, conviver com a poesia no seu nascedouro, em estado bruto. Começou então a frequentar a roda de intelectuais no Bar do Castro. Foi beber na fonte. E se entregou, como um poeta maldito que se achava, aos primeiros tragos. Um dia, fora alertado por Erasmo Dias: – Sai desse meio, aqui só tem cachaceiro. Vai estudar! Mas era tarde. Ele já era o próprio meio. 

Aos 20 anos, José Maria Nascimento sofreu o golpe da morte do pai, João Pereira, um homem simples, vigia de matadouro, que ansiava um futuro menos dolente para o filho e a família. Construiu das sobras, e de alguma dor, a sua obra, que flutua entre o lirismo – o olhar onírico sobre a cidade que o pariu –, o berro social e a desesperança. É de 1960 o seu primeiro livro, Harmonia do conflito

Foram 15 livros publicados em 60 anos de poesia, alguns deles premiados em concursos literários da prefeitura de São Luís e do governo estadual. Ao longo de todo esse tempo de escritura há momentos de delicadeza e profundo desapego (‘Vai por mim que a vida é uma valsa’) e, como diz o próprio poeta, há dias de lírios jogados à sarjeta (‘... A vida ainda flameja e explode/ Por debaixo dos círculos da esperança).

Não foi uma caminhada fácil. O autodidata, obviamente, não tinha tanta intimidade assim com a língua portuguesa e, por inúmeras vezes, no início da jornada, recorreu a amigos como José Chagas e ao irmão Jorge Nascimento na revisão de seus poemas, nos apontamentos, nas boas dicas de leitura. 

Nos anos 1960, José Maria Nascimento foi viver a sua temporada hippie no Recife e de lá embrenhou-se pelas estradas do Nordeste. Andou sobre o tempo. Experimentou amores novos nas madrugadas, por muitas vezes ele impregnado na fumaça do relento. “Até que um dia acabou o dinheiro. E com isso acabou também o encanto dessa experiência hippie”, conta. 

De volta a São Luís, engatou uma jornada boêmia de longos anos com o seu companheiro de copo e de cruz, o poeta Nauro Machado. Juntos, eles foram a paraísos impuros, purgatórios e inferninhos nos quarteirões da cidade velha. Eram os andarilhos trôpegos da Praia Grande e Desterro: ‘Tenho inverno e verão em mim ocultos/ Iluminando os vales de outro mundo”. 

Foram anos de alcoolismo e desregramento que renderam a José Maria Nascimento, dentre outras chagas, uma tuberculose. O poeta viu a morte de perto. Mas persistiu – ‘O inferno e o céu estão presentes/ Na solidão do verso que me habita’. Só em 1992 tomou a decisão de parar de beber. Quando parou, foi chamado de traidor por Nauro. “A bebida só me trouxe prejuízo. Mas ainda ali, entorpecido, tentei fazer do sofrimento o lirismo para a minha poesia”, comenta. 

Há 25 anos José Maria Nascimento vem se dedicando à fotografia. Com os seus cabelos prateados, o olhar atento de poeta, passos firmes, sai por aí de câmera em punho a decifrar a alma da cidade. Da rua do Ribeirão, número 85, onde mora há 40 anos, ele compõe o seu destino, a sua história. ‘Recrio-me nos abismos do espaço’. 

José Maria Nascimento divide o tempo ainda no acabamento de um livro inédito de poemas, que ele pretende inscrever num desses concursos literários. Sobre reconhecimento, essa palavra cheia de armadilhas, ele não cria grandes expectativas. Nem se considera um injustiçado. “Eu colhi o que plantei”, diz, como quem conhece a trama do chão onde pisa. Só sabe ele que “mora nas manhãs” dessa cidade antiga que, num dia como hoje de setembro do ano passado, esqueceu dos seus 80 anos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Faruk e a maconha


Primeiro chegou o Bob, há 10 anos, um bebê ainda. Maria Clara, uma criança na época, o viu em Brasília, pequenino, olhos de puro dengo, pelo dourado, e nos convenceu a trazê-lo pra morar com a gente em São Luís. Todos crescemos com ele. Virou um lorde, bonachão, hoje com as marcas da idade no corpo. De movimentos mais lentos, dorminhoco e cheio de manias, toma doses diárias de Euthyrox, o remédio que mantém sob controle o hipotireoidismo.    

 

Cinco anos depois veio o Faruk, um rapaz cheio de energia, inquieto, mas visivelmente desorientado, que sequer entendia quando o chamávamos pelo nome. Não era pra menos. Um tanto abaixo do peso, o comportamento extravagante... Resultado: na casa onde morava, a família desistiu dele. E lá estava Maria Clara a nos convencer a adotá-lo. Nós o recebemos e logo aprendemos a conviver com estripulias tão incomuns, com a alegria que não cessava – e que não sabíamos de onde vinha, afinal Faruk fora rejeitado nos seus primeiros dez meses de vida.

 

Bob e Faruk são cães da raça golden retriever. Chegaram e se espalharam em nossas vidas. Maria Clara tinha 11 anos quando assumiu a “tutela” do Bob: na atenção, no carinho, na alimentação, na saúde. E assim foi também com o Faruk. Com os dois cães ela conversa e mantém uma inexorável conexão de afeto.

 

O histórico de rejeição de Faruk fez com que Maria Clara dedicasse uma atenção especial a ele, redobrando cuidados. Apesar de toda aquela energia, o cão era frágil emocionalmente. Quando o acolhemos, por exemplo, Faruk não sabia o que era um carinho. Foi um aprendizado – para ele e para nós. E, ao chegar em casa, ainda teve que lidar com as crises de ciúme de Bob, que logo passaram. 

 

Em alguns meses, Faruk recuperou o peso e ganhou força, muita força. Uma das brincadeiras favoritas dele era me desafiar num cabo de guerra com qualquer pano de chão que encontrasse pela frente. Na maioria das vezes, conseguia me arrastar por metros.

 

Mas ele tinha o hábito de engolir coisas estranhas. Caroços de manga, meias, brinquedos e pequenas pedras faziam parte desse exótico cardápio do cão. Certa vez ele engoliu um seixo imenso e começou a apresentar complicações sérias, como a obstrução no estômago, que desencadeou crises de gastrite e pancreatite agudas. Só não foi a óbito porque o levamos às pressas a uma dessas clínicas que atendem na madrugada. Logo pela manhã ele estava na mesa de cirurgia, para a retirada do seixo. Passou semanas em recuperação. E sobreviveu. 

 

Nesse interregno, Maria Clara cresceu e entrou pra faculdade de medicina veterinária. Era o sonho dela, desde sempre, mas que ganhou forma ali no convívio diário com Faruk e Bob. Maktub!, eu pensava alto.

 

As desarrumações na vida de Faruk, porém, só estavam começando. Em meio aos exames para a intervenção cirúrgica, descobriu-se que ele havia desenvolvido a cinomose, doença viral altamente contagiosa que leva o cão a um processo degenerativo rápido e, quase sempre, à morte. 

 

Quase ao mesmo tempo, Faruk fora diagnosticado também com leishmaniose (também conhecida como calazar), outra grave enfermidade que, na maioria dos casos, deteriora a saúde do cão, deixando-o com chances mínimas de sobrevivência. Um cenário desolador. 

 

Faruk começou a definhar. Perdeu peso bruscamente e iniciou um processo de atrofia muscular que lhe tirou boa parte dos movimentos. Eram dores e espasmos cada vez mais fortes. Mal conseguia andar. Ficamos assustados com os diagnósticos. Mas jamais cogitamos em sacrificá-lo. Mesmo abalada, Maria Clara tomou a frente do tratamento (com o apoio da mãe, Adriana), levando-o a consultas, estudando as doenças e discutindo alternativas com veterinários e professores do curso.


Faruk perdeu muito peso e parte dos movimentos 

Mas era só uma questão de tempo, imaginávamos. Nas entrelinhas das conversas com veterinários, Faruk estava desenganado.  

 

Chegou um momento em que Faruk, completamente debilitado, estava tomando 12 medicamentos ao mesmo tempo. E ainda assim os espasmos só aumentavam. 

 

Maria Clara já havia recorrido a todos os tratamentos convencionais possíveis no campo da medicina veterinária. Até que um dia decidiu procurar o avô, Ubirajara Ramos, que lançara em 2014 Tá todo o mundo enganado (Recife, Editora Babecco), livro que reúne dez anos de pesquisa sobre o uso medicinal da maconha e também aborda a política internacional de guerra às drogas.


Os espasmos de Faruk eram cada vez mais frequentes

Ubirajara recomendou que Maria Clara assistisse a alguns documentários sobre o tema e intermediou o contato com uma amiga dele que fazia o uso regular do óleo da cannabis sativa no tratamento de um filho com epilepsia. 

 

“Anjo” – como passamos a chamar a amiga de Ubirajara –, depois de muita luta como mãe desesperada, e de algumas batalhas judiciais, recebeu há alguns anos autorização da Anvisa para plantar maconha em casa e dela extrair o óleo, em quantidade suficiente para suprir o tratamento do filho. 

 

Após um longo período de pesquisa, “Anjo” passou a conhecer as propriedades medicinais da maconha e, a partir delas, começou a desenvolver o óleo, que já era utilizado em diferentes países no tratamento de doenças psiquiátricas ou neurodegenerativas, como a epilepsia, o Alzheimer, a esclerose múltipla, o mal de Parkinson e a esquizofrenia.    

 

O óleo do “Anjo”, como ela deixa bem claro, é apenas para consumo doméstico, de uso terapêutico no filho. Mas, depois da recomendação do meu sogro Ubirajara e dos apelos de Adriana e Maria Clara, ela resolveu ceder. Por que não a experiência de salvar a vida do Faruk? O “Anjo” topou o desafio, mesmo sem jamais ter aplicado uma gota de óleo da cannabis em um cão.  

 

“Anjo” quis saber tudo sobre a saúde do nosso cão e, de uma ilha distante, onde vive, prontificou-se a nos ajudar. Fomos ao encontro dela no porto, onde recebemos o primeiro frasco com o óleo da maconha e mais orientações sobre o tratamento. O óleo do Faruk, ela nos alerta, tem uma combinação específica de canabinoides. “Cada caso é um caso”.

 

E assim iniciamos o tratamento. Em princípio, duas gotas do óleo por dia. Depois cinco gotas. E apenas uma pequena evolução. As primeiras reações de Faruk só vieram quando aumentamos para dez gotas do canabidiol (o CBD) aplicadas durante a noite, quase dois meses depois do início do tratamento. No meio do caminho, os medicamentos tradicionais foram ficando pra trás. 

 

Antes sem apetite, muito magro e quase sem movimento, Faruk começou, com muita dificuldade, a ensaiar os primeiros passos. Até que um dia pela manhã, eu sentado numa cadeira da varanda lendo o jornal, percebo que algo roçava minha perna. Baixei o jornal e vi Faruk com um pano de chão na boca me convocando para um cabo de guerra. Eu me emocionei. Todos ficamos comovidos com a cena. Aquele cão inquieto de outrora nos dizia, ainda meio cambaleante, torto, que estava de volta ao jogo.

 

E de fato voltou ao jogo. Oito meses depois do início do tratamento com o canabidiol, Faruk recuperou os movimentos, reduziu drasticamente os espasmos, ganhou massa muscular e voltou a ser aquele cão traquinas de antigamente. Hoje, ainda apresenta alguns poucos espasmos – à noite, principalmente –, mas não faz uso de qualquer medicamento convencional. Nunca mais deixou de tomar as gotas de CBD antes de dormir. Nunca mais perdeu o vínculo com essa ilha dos arcanjos. 




Eu, Faruk, Bob e Maria Clara

É ágil e exuberante na forma de se postar. E parece estar sempre ligado nos 220 volts. Corre, pula, rodopia, atropela o Bob com suas quatrocentas patas que parecem molas... Esse é o Faruk. A origem do nome é árabe. Faruk significa aquele que irradia alegria e felicidade. Assim é ele. Significa também aquele que sabe distinguir o certo do errado. Ah, mas isso o Faruk não é mesmo, vamos combinar! Se nos descuidarmos, rapidinho ele devora qualquer pedra que achar pelo caminho. 


Ubirajara Ramos e o Faruk algum tempo após o início do tratamento

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

Karapiru vai à procura dos seus


 

Numa viagem pelo Maranhão profundo, em 1995 tive o primeiro contato com os índios Awá Guajá, etnia de origem nômade reconhecida com uma das mais vulneráveis do planeta, devido à ameaça constante de madeireiros, grileiros e invasores de suas terras. 

 

A convivência com esses índios de hábitos rudimentares – as mulheres da aldeia amamentam filhotes de macaco e porco do mato, por exemplo – resultou no livro Guajá, a odisseia dos últimos nômades, que publiquei dois anos depois pelo selo editorial da UFMA, como parte do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo.   

 

Essa convivência me fez também conhecer personagens e descobrir histórias fascinantes, como a de Karapiru, o índio que, ao se perder da família quando atacado por capatazes de uma fazenda no Maranhão, fora encontrado no interior da Bahia após dez anos de caminhada pelas matas do País.   

 

A história de Karapiru é um dos capítulos desse pequeno livro sobre os Awá Guajá, escrito no calor dos anos estudantis. Além de curioso, o caso tem um desfecho inusitado. Em verdade, um desfecho emocionante. 

 

Fico sabendo agora, contudo, que Karapiru, símbolo de força e resistência dos Awá Guajá pelos dez anos de solidão e caminhada errante, à procura de seu povo, perdeu a vida há pouco mais de uma semana para a Covid-19. Ele já havia tomado as duas doses da vacina, mas não resistiu aos efeitos da doença. 

 

A morte de Karapiru, cuja saga reproduzo aqui em versão reduzida, é também a morte de parte da história dos Awá Guajá. Com ele vai a natureza em estado bruto, com sua simplicidade e pureza. Com ele vai a rara alegria dos Awá Guajá. 

 

Dez anos de solidão 

(trecho extraído do livro Guajá, a odisseia dos últimos nômades)


 

Final de tarde na aldeia de Txipatxiá. Alguns índios retornam da colheita de mandioca. Uns caçam. Outros tomam banho no igarapé. À sombra de um tapiri, sentados, estamos eu, Damasceno (o chefe do posto da Funai) e o índio Irakatakoa. Passo a ouvir histórias, e uma delas me chama a atenção. É a curiosa saga de Karapiru, que também nos faz companhia – de cócoras, como ele diz sentir-se à vontade para falar de “coisas da vida”.

 

Ouço com atenção o relato de Karapiru e Irakatakoa, que é enriquecido por informações mais recentes de Damasceno. Contam que o povo Awá Guajá, pela origem nômade, sempre andou em bando, tanto os índios já identificados quanto aqueles considerados ainda isolados. Em grupo, sentem-se menos vulneráveis.

 

Os índios ocupam os verdes vales dos rios Turiaçu, Caru, Pindaré e Gurupi, na Amazônia maranhense. Guardiões naturais da Reserva Biológica do Gurupi, de tradição nômade, são povos coletores e vivem basicamente de caça e pesca, ainda sem muita intimidade com a agricultura. A mandioca é apenas uma cultura em teste no cotidiano dos Awá Guajá.   

 

A história remonta a 1978, quando a família de Karapiru fora vítima de um ataque de fazendeiros na cidade de Amarante (MA), supostamente enfurecidos pelo desaparecimento frequente de animais de suas propriedades. O grupo de aproximadamente 12 índios, dentre eles a companheira, pais, filhos e irmãos de Karapiru, foi surpreendido numa emboscada e, em meio a um barulhento tiroteio, cada um fugiu como pôde.

 

Karapiru, hoje com cerca de 55 anos, mal consegue formular uma frase num português compreensível – o tupi-guarani dos Awá Guajá também tem as suas peculiaridades. Tento entender o relato com a ajuda de Irakatakoa e Damasceno. Karapiru diz que no momento do ataque conseguiu escapar levando na fuga, sem rumo certo, a filha pequena nos braços. E que dali em diante não saberia mais de qualquer notícia sobre sua família. 

 

A criança não resiste. O índio vê-se sozinho no meio dos capoeirais, cada vez mais distante de sua gente.

 

O filho de Karapiru, de nome Txiramuku (foto abaixo), então com oito anos, ficara preso nas cercas da fazenda, durante o ataque. Encontrado por uma família de lavradores, fora entregue a funcionários da Funai.




Sob a atenção de sertanistas e técnicos da fundação, Txiramuku aprendeu a falar português desde cedo e ficou conhecido fora da aldeia pelo nome de Benvindo. Hoje é um dos principais intérpretes no trabalho de contato com grupos de Awá Guajá isolados.

 

Completamente nu, perdido no meio da mata e com a impressão de continuar perseguido por capangas de fazendeiros, Karapiru avança cada vez mais em direção sul, alimentando-se do que encontra pelo caminho. Diz ter comido aves e muitos répteis, como camaleão e cobra, no princípio da caminhada. 

 

Algum tempo depois, passa a fabricar flechas de taboca para caçar porco, cavalo, vaca e cabrito, nos arredores de vilarejos e fazendas por onde passa. Para se alimentar. Só descansa ao parar pra dormir, já na escuridão da noite. Essa é a rotina de Karapiru. Começa a deixar rastros quando passa a levar facas, machados, garrafas e outros pertences de famílias de mateiros e agricultores.

 

Quando não consegue improvisar uma cabana, dorme em árvores para se proteger do ataque de animais, como queixadas e jaguatiricas, e também de caçadores. Por algumas vezes Karapiru chega a ser visto por moradores do sertão. Ao tentar aproximação, provoca reações de espanto. 

 

Karapiru conta que, em determinado momento da caminhada, fora visto atirando flechas em bezerros de uma fazenda, e que, por isso, teria sido atingido por tiros de espingarda numa das pernas. Escapou da morte porque evadiu-se do local e por ter usado folhas de uma planta para sarar as feridas.

 

Karapiru faz uma pausa na conversa e levanta-se. Irakatakoa e Damasceno falam que ele nunca relata a história completa da caminhada. Continuamos ali juntando peças para entender o conjunto. Karapiru anda agora de um lado para o outro. Recolhe do chão um velho arco e, de costas, atira a flecha para cima, que cai exatamente dentro de uma lata que ele havia colocado para a sua exibição, próximo de mim. Fico ligeiramente assustado. Damasceno explica que Karapiru, durante os anos de andanças pelo mato, adquirira habilidade especial com arco e flecha.

 

São dez anos de peregrinação solitária, cortando vilas, causando espanto e levando consigo a esperança de reencontrar seu povo. No dia 10 de outubro de 1988 começa a história que leva o índio de volta pra casa.

 

No município de Angical, no extremo oeste da Bahia, em meio ao milharal, um agricultor depara-se com uma figura magra, de traço físico incomum, nunca vista antes por aquelas bandas. Desconfiados, índio e agricultor se entreolham e cada um evita esboçar qualquer reação de medo. O índio tenta continuar a caminhada, carregando flecha, facão, panela e outros pequenos objetos estendidos na tipoia. Apesar do receio, o agricultor segue o índio que, depois de algumas tentativas, é convencido a acompanhá-lo a um assentamento de posseiros nas proximidades. 

 

Karapiru vira o centro das atenções no vilarejo. É acolhido pelas famílias de agricultores e visto como o índio alegre, uma figura exótica que saiu das entranhas da mata e gosta de cantar, dançar e tomar banho de rio nu.

 

Logo informam a presença do índio ao escritório da Funai. Dias depois, segue para Brasília na companhia do sertanista Sydney Possuelo, então coordenador de índios isolados da instituição federal. 

 

As características físicas e o comportamento arredio de Karapiru levam técnicos e antropólogos à suspeita de que estão diante de um índio da tribo dos Avá-Canoeiro, grupo do estado de Goiás de origem e traços semelhantes aos Awá Guajá. Karapiru ri quando diz que ficou conhecido por algum tempo pelo nome de “Avá”.

 

Mas havia também a desconfiança de que aquele índio poderia ser um Guajá. A Funai precisava de um intérprete para fazer o contato com o tal “Avá” para descobrir a verdadeira origem dele. Possuelo, que já conhecia de perto os Guajá, convoca o índio Jeí, do Maranhão, para fazer o contato.  Jeí não pode ir. No lugar dele enviam outro índio Guajá, o Txiramuku, aquele do começo da nossa história.            

 

Em Brasília, Txiramuku tem o primeiro contato com “Avá”, ainda no apartamento de Possuelo. Os dois índios apenas se observam por longo tempo. Txiramuku se aproxima. Técnicos e antropólogos acompanham o encontro a certa distância. Começa então a conversa entre os dois, num tom quase silencioso. 

 

A certa altura do estranho diálogo, Txiramuku solta a pergunta, para espanto da equipe da Funai: 

            

– “Avá”, qual é mesmo o teu nome?

– Karapiru.

– Não pode ser. Karapiru é o nome do meu pai – diz Txiramuku, dirigindo-se a Possuelo.

 

Todos ali estão surpresos com a possível coincidência. Alguns parecem não acreditar no que estão presenciando. A curiosidade se acentua quando Txiramuku faz uma revelação:


– É meu pai mesmo. O nome dele é esse aí e ele tem marca de chumbo nas costas – confirma, com a voz embargada, e pede a Karapiru que levante a blusa para mostrar as cicatrizes.

 

E lá estavam na pele as marcas de tiros que Karapiru levara antes do ataque de Amarante, quando a família ainda perambulava unida.


– Eu sou Txiramuku, o seu filho que ficou preso na cerca naquela ocasião do ataque a nossa família.

 

Os dois, emocionados, e ao mesmo tempo assustados com os olhares curiosos da equipe, conversam por mais tempo e tentam entender o que houve com cada um naqueles últimos dez anos.

 

Alguns dias depois, Karapiru é levado de volta à reserva indígena dos Guajá. Sobre os outros índios da família, não se obteve mais notícias. É provável que estejam por aí, rasgando as matas do Brasil perseguidos pela sombra do ataque daquele longínquo 1978. Se ainda vivos, estão entregues à própria sorte, alimentando a solidão na esperança de um reencontro com suas origens. O caso de Karapiru é um exemplo de resistência do povo Awá Guajá. 

 

Karapiru é o símbolo da força dessa gente. 

 

(texto escrito originalmente em 1995, editado com atualizações) 

 

Fotos: Félix Alberto Lima