terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sobre o mar, a brisa e o asfalto da cidade

Transcrevo aqui as minhas palavras de gratidão pelo recebimento, ontem, na Câmara Municipal, do título de Cidadão de São Luís:

Há lugares por onde apenas passamos, e deles guardamos as lembranças de uma bela paisagem, da hospitalidade de sua gente, do redemoinho das emoções ali vividas. Há as cidades grandes, as metrópoles de concreto e neon, as babilônias que seduzem pelo brilho de luz, incenso e vitrine. Há também as cidades imaginárias, as utopias da literatura universal, os jardins edênicos dos que têm fé e devoção, a Shangri-lá dos românticos incorrigíveis, a Atlântida dos argonautas.

Existem os lugares etéreos, da boa sorte, da felicidade, do prazer, da realização plena. Mas há cidades que são simplesmente definitivas, que nos completam, que se confundem com a nossa própria existência, pela sua gente, pela sua história, pelas tradições culturais, pela qualidade de vida que oferecem - ou pela soma de todos esses fatores. Assim é São Luís do Maranhão, cidade da qual recebo hoje, por honrosa deferência desta Casa, numa iniciativa do nobre vereador Batista Matos, o título de cidadão honorário.

Eu venho lá do sertão do Maranhão, caro vereador Batista Matos, das barrancas dos rios Corda e Mearim, da Barra do Corda da minha infância viva e bem vivida, da cidade dos canelas e guajajaras, do verso-berço de Maranhão Sobrinho, do balneário balsâmico, das cachoeiras dos índios, de Olímpio Cruz, o poeta encantador dos gentios. Embora nascido em Presidente Dutra, foi em Barra do Corda onde criei raízes, saltei de pontes, inventei brinquedos de lata, enfrentei a correnteza da sorte, esquivei-me dos castigos de casa, vendi frutas e jornal, comprei o meu primeiro ingresso no Cine Canecão, frequentei o catecismo e, como presidente do clube dos coroinhas da igreja matriz, por muitas vezes me dei ao luxo de devorar, escondido, toda a sobra das hóstias da missa do domingo.

Romper com a velha infância dos meus primeiros 12 anos, perdida no horizonte das raras escapulidas de férias, foi uma experiência quase traumática. Não, não foi a transumância, aquela migração sazonal típica dos trabalhadores da roça de cana, com partida temporária. Meus pais optaram mesmo pelo êxodo rural. Saímos de Barra do Corda no dia 24 de novembro de 1979 num empoeirado ônibus da viação Transbrasiliana. O sertão ficava para trás na fumaça da estrada longa, com suas colinas, rios e neblinas. Era o tempo de arribação para uma nova paragem.

Minha mãe, Dona Cely, a zelosa dona de casa, o ponto de equilíbrio, a razão para tudo, entendeu que o mundo era maior que a cidade inventada por Melo Uchôa, maior que as histórias contadas nos bancos da praça no crepúsculo de agosto. Sempre foi a mulher simples, de poucos estudos, mas de sabedoria invejável e muitos planos para a família. Senhora do português bem aplicado e das lições de boa conduta. Via nos estudos dos filhos na Capital o atalho para uma vida melhor, um futuro mais luminoso. Meu saudoso pai, Seu Eurípedes, foi o visionário, comerciante, homem interiorano, desses bravos provedores que de tudo tentou na vida para alimentar a família, para alimentar os sonhos da esperada bonança que, acreditava, não tardaria. Pai amoroso e resignado, preferia as horas calmas do lamento vespertino dos sertanejos ao embalado contratempo dos ponteiros da cidade grande. Resistiu à mudança, mas foi convencido de que da janela o tempo não acenava duas vezes. As oportunidades caducavam.

No mesmo dia 24 de novembro a família chegava a São Luís. Eu era o moleque ensimesmado, de olhar baixo, assustado com o tamanho de tudo o que via ao redor pela vidraça do ônibus, cabelos ainda embaraçados e queimados pelo sol forte dos demorados banhos de rio, cheirando a mato e poaca da estrada.

A primeira impressão, o primeiro endereço, o primeiro susto. São Luís era o porto dos retirantes do interior. Os ônibus barulhentos demais pareciam invadir como esmeris o velho casarão 609 da Rua de Santana. A cidade para mim era como aquela via estreita, de trânsito amalucado e de calçadas suspeitas, pronta a explodir em tumulto de gente e automóveis apressados que os meus olhos jamais tinham alcançado.

O segundo susto era a cidade caída, a meia cidade que restou da rebeldia de setembro de 1979. Como na poesia de T.S. Eliot, não abril, mas novembro daquele ano, quando aqui cheguei, ficou na lembrança como o mais cruel dos meses. Ali onde eu estava para inaugurar o futuro, o eldorado desenhado nos planos da família, nada mais havia para mim senão a terra desolada: ruas miúdas, lojas saqueadas, pedaços de placas de vidro e acrílico espalhados pelo chão, semáforos destruídos, policiais à espreita. Cenário de fim de uma guerra.

Senhor Presidente, Senhores Vereadores,

Há 32 anos comecei a decifrar a cidade, e até hoje ela se veste de esfinge num recorte barroco de variadas leituras e interpretações. Depois de sustos e decepções da chegada, três coisas chamaram a atenção do menino curioso, sem viagem alguma na bagagem, referências reduzidas apenas às poucas quadras do Maranhão de dentro: o mar, a brisa que dele soprava e o asfalto.

O mar era aquela imensidão de águas turvas, sem cores definidas, um rio sem fim que me permitia namorar o horizonte e, se bem navegado, até ajudava a tocar o céu com as mãos. Mar e rio então eram a mesma coisa? Passavam por baixo da ponte do São Francisco e, de uma hora para a outra, desapareciam? Simplesmente viravam lama, e eu era um menino recém-chegado e desconhecia os segredos da maré vazante. As interrogações brotavam diariamente. Prosseguem até hoje no desassossego das horas. Apenas dão trégua porque, como nos aturdem as muitas vozes do poeta, “a manhã apaga as perguntas da noite”.

Do mar também vinha a brisa leve e envolvente que a infância até então não me mostrara. O aquecimento global era uma miragem. O vento ainda balançava forte a copa das árvores e enchia de preguiça as tardes de São Luís. E tinha mais força e velocidade nas esquinas dos prédios altos como o Caiçara, na Rua Grande, e o edifício do Banco Estado do Maranhão, na Rua do Egito. Nas calçadas, as banquinhas de quebra-queixo tremulavam e deixavam mais doce o cotidiano da freguesia passante.

E em São Luís havia o asfalto. Diferentemente das ruas calçadas de blocos de pedra no interior maranhense de outrora, era o piso negro das ruas que nem sempre nos deixava jogar futebol descalço. Quente e abafado, o asfalto expunha a cidade em permanente conflito com os paralelepípedos do passado e as suas pedras de cantaria reluzentes.

Da Rua de Santana para a Rua da Alegria! Até a mudança de vez para a São Luís moderna, desbravei o centro da cidade como um bandeirante. Aprendi a amar cada recanto, ladeiras, mirantes e sobradões. Por diversas vezes cruzei com a alma da cidade presa ali entre os lençóis das sacadas da Praia Grande; sonhei com serpentes e carruagens de Nha Jança na madrugada; e me deixei hipnotizar pela geometria dos seus azulejos coloniais. Senti o chão das ruas de São Pantaleão, Santaninha, da Paz, do Passeio, dos Afogados, das Hortas, do Mocambo, do Alecrim e do Coqueiro. Joguei bola de meia na Praça Odorico Mendes e andei de mãos dadas com a primeira namorada pela Praça Gonçalves Dias. Levantei bandeiras estudantis na Praça João Lisboa e brinquei de fofão na Praça Deodoro.

Os encantamentos se multiplicaram com o peso do tempo. E soube me adaptar, me transformar num cidadão da cidade quase que por mimetismo, sem deixar rastros. Não por negar a minha origem, mas por envolvimento descontrolado. Num dos trechos do discurso do índio Japiaçu, ao saudar a chegada dos franceses a São Luís, transcrito nos relatos do Padre Claude d’Abbeville, o líder tupinambá vaticinava: “Quando te acostumares aos nossos víveres, acharás que a nossa farinha não difere muito do teu pão”.

Acostumei-me também com as experiências e encontrei semelhança nas sutis diferenças regionais. Misturei o pão francês com a farinha dos índios, o tambor dos crioulos e as especiarias lusitanas e holandesas até me entregar de vez ao arroz de cuxá e ao guaraná Jesus.

Os caminhos foram longos; as lutas, nunca veladas.

Conhecendo a sua história, bebendo na fonte da sua poesia, aprendi a amar São Luís como se aqui estivesse nascido. Descobri ainda menino os cantores e trovadores, também me fiz um apaixonado pela cultura da terra, vi-me preso ao visgo da ilha, ao magnetismo deixado pelos xamãs da velha aldeia. Mas jamais ousei me apresentar como são-luisense. Porque eu não fui, porque eu não era, embora aqui morando por 32 anos, e sem qualquer plano ou projeto de partida.

Já se vão mais de três décadas. Tempo suficiente para criar e cultivar uma rede de amigos. Amigos sinceros, fraternos, leais e, sobretudo, generosos. Amigos que, de generosidade desmedida, caminharam lado a lado, dividiram pelo caminho as alegrias e as preocupações, sofreram juntos e conquistaram comigo todas as coisas boas da vida. São laços que não se desfazem, que não se apagam.

Em São Luís conheci Adriana, o amor da minha vida, e aqui nasceram os meus maiores tesouros, os filhos igualmente amados Maria Clara, João Vítor e João Guilherme. Como, então, não amar essa cidade? Como não me emocionar ao receber o título de cidadania pouco mais de um mês antes da cidade completar os seus 400 anos de fundação? Posso dizer, com a mais sincera humildade, que também faço parte dessa história. No começo de tudo, como habitante espectador. Depois, como agente dedicado, testemunha, observador e relator da sua história recente. E, agora, como Cidadão de São Luís, ainda mais comprometido com a nossa cultura e o nosso patrimônio.

Os títulos de cidadania representam enorme responsabilidade a quem os recebe. Tenho plena consciência dos deveres e das obrigações que assumo nesta data memorável com aqueles que para sempre serão meus conterrâneos. Estejam certos de que tudo farei para continuar digno da grande honra que me concedem.

Antes de encerrar as minhas palavras, deixo aqui registrada a minha gratidão aos que estiveram e estão sempre ao meu lado: a Deus, ao meu saudoso pai Eurípedes, à minha mãe Cely, aos meus irmãos Eucélia, Sônia e Socorro. Ao meu irmão Antônio Carlos, que infelizmente não pôde vir a este evento, mas que de longe empresta o seu carinho. Com eles, que também não nasceram em São Luís, compartilho esta homenagem. À minha mulher Adriana, meus filhos e meu enteado Pedro Igor; aos meus inúmeros familiares, amigos de todas as horas; ao primo-irmão Pergentino Holanda, com quem muito aprendi os mistérios da fé nas palavras. Aos amigos de jornada na Comunicação Social, essa área vasta de profissionais do rádio, da TV, dos jornais, da internet e da publicidade e propaganda. Aos amigos do Dom Bosco, da Caixa, do Tribunal de Justiça, do jornal O Estado do Maranhão e da Clara Comunicação.

O meu agradecimento especial ao vereador Batista Matos, jovem lutador, cioso, como poucos, do papel social do político moderno, integrado. Cidadão de muitas lutas por uma São Luís melhor, espírito conciliador, conhecedor da importância da comunicação, amante do esporte, Batista Matos tem honrado o seu mandato nesta Câmara Municipal com uma atuação firme, destacada e com pronunciamentos sempre contundentes.

Agradeço, por fim, a presença de todos que aqui vieram dividir comigo este momento.

Ao presidente Isaías Pereirinha e demais vereadores desta Casa, obrigado pela homenagem.

Tenham a certeza de que este título muito me alegra, emociona e envaidece. Esta data ficará gravada indelevelmente em minha memória, porque vai muito além da sua simbologia estampada na folha de papel.

Para encerrar, deixo aqui os versos do meu amigo poeta José Chagas, que já foi vereador e funcionário desta augusta Casa e sobre quem tive o privilégio de escrever um dos meus primeiros livros:

“Sou um
Entre um milhão
Numa cidade de quatrocentos anos
E tiro da manhã o que me toca
De sol o que me cabe
De ar o que é necessário
Para manter-me sentado
Sobre lascas de solidão
E pedras de silêncio quebrado
Pela anunciação do dia”

Muito obrigado.