domingo, 22 de novembro de 2020

Um poeta sentado no mundo


 

Não espere aqui um poeta de terno e gravata com o meticuloso hábito de escrever versos nos finais de tarde de uma segunda-feira, depois do expediente. Em Delações, Daniel Blume desata de vez o nó da circunspecção e joga-se por inteiro na desordem da poesia, como o intrépido equilibrista de um circo sem lona, sem redes de proteção. 

 

O quarto livro de poesias de Daniel Blume tem asas, bossas, bagagens e expõe um poeta agora sentado no mundo. O chão da aldeia, os personagens desnudos, os corpos cambaleantes, a tinta dos bardos e as paisagens possíveis formam esse caleidoscópio fronteiriço na obra do autor.

 

Delações, como o próprio nome sugere, é um mosaico bem sortido de percepções – algumas delas insofismáveis, límpidas; outras, enfeitando talvez o invisível mapa de descobrimentos da linguagem. Sim, o poeta espraia-se na página ávido de mar, de céu, de sol, de gente, e movido pela necessidade devoradora de perceber as coisas, de reinventá-las, delatá-las. Quem sabe dilatá-las, expandi-las, até que se desintegrem feito partículas de um qualquer poema. 

 

A poesia de Daniel Blume vem também dos prados e das pedras, das urbes e das uvas, às vezes cresce como as marés de agosto. As tramas de cores, as fagulhas do recomeço, as fissuras no tempo, os outonos do destino estão em toda parte, como ‘ossos dos dragões no parque’. Não é todo dia que a poesia age como pintura. 

 

Em Delações é bem capaz o leitor de se reconhecer no escuro claro das dúvidas ou nos lampejos incandescentes que margeiam a escritura de Daniel Blume. A alma do autor está na bandeja, nua, desassossegada. A poesia – ‘Sabem tudo o que revelei/ não tudo o que sou’– apenas insinua. 

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cartas do futuro (1)


Você era tão linda de máscara. O castanho escuro dos olhos, cílios guarnecendo suavemente as pálpebras, sobrancelhas com desenho delicado realçando a pele alva, a voz um tanto embaraçada na franja seminua do tecido... 


Aquele ar de mistério por trás do adereço me ganhou no primeiro encontro por entre as gôndolas da farmácia, na seção de cosméticos. Era março ainda. Um dia pra não esquecer. Disputamos quase ao mesmo tempo o último frasco de álcool gel da prateleira. Deixei que você o levasse, as mãos úmidas e ligeiramente trêmulas tateando o medo.


Com o tempo, fui me encantando mais e mais. O cabelo esvoaçante, os brincos de um metal suave enfeitando a tarde, o movimento sutil dos ombros ao dissimular a timidez, o perfil político compenetrado, a servidão aos protocolos, o jeito de falar dos receios da solidão, de me advertir sobre riscos de contágio, tudo me fascinava.


Até aquela máscara tinha um quê de sedução. O tecido lembrava um veludo lilás que me remetia à infância... As alças encobertas por fios de algodão peruano eram qualquer coisa de outro mundo, não feriam a pele, não te deixavam orelhuda como eu percebia em outras mulheres mais descuidadas. Ao contrário da minha, tua máscara nunca embaçava os óculos de aros modernos e lentes de policarbonato.


Você era tão linda de máscara. Parece que o bairro todo parava pra te ver saindo de casa entonada naquela máscara último modelo, design arrojado... Alimentei por longos meses o desejo de tocar tuas mãos, de lentamente retirar tua máscara (e guardá-la como se estivesse colecionando um amuleto, um troféu), de sentir teus lábios, de me enroscar na tua língua que jamais avistei...


Por tantas vezes me peguei imaginando o recorte do teu nariz, a boca carnuda, os dentes alvos, o hálito de pastilha Walda. Mas mantivemos o distanciamento sexual, como premonitoriamente pedira a ministra. 


Jamais vou esquecer aquele teu aroma têxtil que me causava um certo borogodó. E que as outras meninas não tinham.


Os dias se passaram e nós ali, encegueirados, nas aulas online, no homework, no delivery, na rotineira expectativa do PCR... 


Aí veio a vacina. E você tirou a máscara, Íris! 


Agora, fevereiro, estamos nós em pleno Carnaval. Ah, você era tão linda de máscara... Mas hoje, aqui no meio da folia, nessa aglomeração infinda, observando teus traços à luz da ciência, vejo que restou da gente apenas aquele vulto de um veludo lilás.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

A fruição da história



Quando a literatura liquidifica-se com desmedida elegância e é servida ao leitor com doses alquímicas de cinema, música, quadrinhos e toda a parafernália da cultura pop, estamos diante de algo revelador e muito próximo da crua realidade contemporânea. Assim é Bangu à beira-mar, o romance de estreia de Érico Cordeiro que ao mesmo tempo seduz, pela narrativa envolvente e a combinação de episódios pitorescos da história, e espanca, pela habilidade com que esgrime o som e a fúria de certos personagens.   

 

Érico Cordeiro não é cristão-novo na literatura. Já publicou outros títulos sobre música e cultura contemporânea, dois temas que ele domina com insuspeitada devoção, e tem em casa pelo menos dois balaios de poemas prontos para qualquer quermesse intelectual. Mas em Bangu à beira-maro autor inaugura uma jornada nova na sua escritura. A tecelagem de um romance exige imaginação engenhosa e uma certa fleuma em relação ao fato narrado e a urdidura dos personagens.  

 

O livro deliberadamente funde ficção e realidade – aquilo que o próprio autor classificará como obra de fricção – e esboça um mosaico de nomes, lugares e incidentes, numa espécie de nuvem que encobre a aventura humana na terra do clã Baptista de Moura Facundo e daqueles que estão na sua órbita.  

 

Tudo começa no sertão do Ceará do início do século passado, quando um coronel arruinado, como outras “multidões de avoantes sem asas”, comanda a diáspora rumo ao desconhecido no sudeste brasileiro. É, antes de tudo, um romance visceral entrecortado por uma poesia com alma, pólvora e dentes.

 

Do sertão para o Rio de Janeiro, que experimenta, como agora, os efeitos da gripe espanhola, o inimigo invisível que aterrorizou o mundo entre 1918 e 1920. Do Rio para Milão, o autor deixa rastros de um bem armado enredo policial e traz de roldão, diretamente ou por vias transversas, personagens conhecidos da ciência, do meio artístico, da economia e da política, e segue embolando imaginação e realidade com a desenvoltura de um prosador nato, arrojado.

 

Nise da Silveira, Dona Ivone Lara, João do Rio, Ataulfo Alves, Herbeth de Souza, Gramsci, 

Prestes, Sinhô, Madame Satã, Marighella, Vargas, Mário Lago e outros vão entrando livremente na história de Érico Cordeiro ao lado dos fictícios Baptista de Moura Facundo, todos nomes postos numa féerica e lúcida linha de montagem narrativa. Frente a frente com Mussolini, o autor mergulha nas entranhas do fascismo com a destreza de um samurai.     

 

Da Itália para a Lapa, a boêmia, o samba, o terno de linho branco, o cheiro do sexo, o coldre e o vermelho sangue espirrando nas sombras de um Rio antigo e malandro. A viagem está posta na página. A tarifa de embarque é o apetite do leitor para a venturosa fortuna daquela inventividade quase verossímil que só os bons autores são capazes de empreender. Bangu à beira-mar é uma obra em franca fruição.