sexta-feira, 6 de março de 2020

A terra plana em transe



Era uma vez uma imensa aldeia verdejante habitada por gente simples que, apesar da diversidade sociocultural, viveu por longo tempo em harmonia, sob a fronde da Amazônia. Viveu a realidade nos seus altos e baixos, mas uma realidade bem vivida, pé no chão, até um dia quedar-se anestesiada.

Metade da população da aldeia [ou era quase isso] não sentia mais dor, não se compadecia, não se incomodava, não enxergava escândalo em nada – somente no passado! Metade da população não tinha mais aquele mínimo sentimento de vergonha. Nem vergonha própria nem vergonha alheia.

Quando assistiam a algo grotesco, ofensivo, passavam a achar o ridículo absolutamente trivial. Ou usavam um argumento raso: o ridículo no passado era ainda muito mais ridículo, ora bolas! Compartilhavam entre eles a ideia de que “o ridículo de hoje” tinha uma razão quase bíblica, uma causa nobre. E com o ridículo cotidiano acostumaram-se. O esdrúxulo virou banal na velha aldeia. Os aldeões [ou quase metade deles] aninharam-se na barbárie como que entorpecidos em pajelanças algorítmicas.

Cavalgando panegíricos, abriram mão da história, da ciência e da arte a pretexto de uma tal faxina moral e ética, inadiável, iniciada por um homem que, voluntariamente, se filiava ao inferno enquanto imaginava julgar “a própria besta”.

Era uma vez uma imensa aldeia onde metade da população [ou quase isso], raivosa, perdia a noção do respeito. Eram tempos de escassez do amor próprio. Mulheres aldeãs aplaudiam a misoginia em praça pública. Trabalhadores assalariados celebravam a alta no mercado de ações. E empregadas domésticas, admoestadas pelo tesoureiro da aldeia, comemoravam a escalada do dólar e “o fim da festa” na Disney.

Como num filme de horror, a aldeia não se via doente, e Di Caprio era só um incendiário da Amazônia frustrando planos da terra plana em pleno século XXI. Ninguém sairia tão cedo daquele estado de torpor. De arma em punho, e sob os gritos dos generais, metade da população não tolerava mais índios, jornalistas, florestas, universidades, livros, artistas e o Papa.

Sem escrúpulo, sem culpa, metade da população [ou quase isso] só pensava em disparos nas redes sociais, em inimigos imaginários do progresso, numa nova economia redentora, em desafetos digitais... Era tanto tema em pauta na cabeça daqueles jovens que até o sexo fora proibido por decreto.

Era uma vez a gente. Era uma vez uma aldeia que, de súbito, perdeu a imensa alegria e a malícia até assistir, inerte, ao triunfo da milícia.

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