domingo, 17 de junho de 2012

Prefiro Toddy ao tédio



Uma aventura estética ou o dia em que pichamos as paredes do Pimentão

Por Eduardo Júlio

O ano era 1993. Segundo o meu amigo e estudante de Ciências Sociais César Choairy, o Cesinha, um embate inédito acontecia na disputa pelo DCE da UFMA. Pela primeira vez, uma chapa – de fato - de direita, formada por estudantes de Direito, disputaria com os tradicionais grupos do PT e do PCdoB o comando da militância estudantil da Federal. César me disse, de forma imperativa: “Desta vez, não são somente grupos de esquerda, disputando entre si. Existe um perigo real do DCE ser tomado pela direita. Temos que fazer alguma coisa, Eduardo!”.

Entre os grupos de esquerda que disputavam o DCE naquele ano estava a chapa Contraponto, formada por filiados e simpatizantes do PT, liderada por Jorge Moreno, um notável e engajado estudante de Direito, que se tornaria um dos mais contundentes juízes do Maranhão - no momento, aposentado de suas funções. Sou grato até hoje por Jorge ter cedido a sua vaga num ônibus que levaria universitários do Maranhão para o Encontro de Arte e Cultura da UNE, em Ouro Preto, em 1993. Três dias de pura piração juvenil numa das cidades mais monumentais do país. Nunca esqueci daquele ato de generosidade, mas isso é um outro papo. Integravam também a Contraponto César e o meu grande amigo Elício Pacífico.

Outro grupo dessa margem do rio era o Começo do Fim, uma chapa meio niilista meio anarquista comandada por Ronaldo Rezende, estudante de Filosofia e uma das minhas grandes amizades desde os tempos do segundo grau no Colégio Meng. Embora cursasse Filosofia, Ronaldo se tornaria um dos mais fundamentados professores de História de sua geração, especializado em geopolítica internacional. Em 2001, ele morreria depois de lutar por alguns anos contra problemas renais.

Não lembro a denominação da chapa de direita nem o nome exato dos integrantes, mas a turma do PT chamava os caras de “cabeças de camarão”. Sei somente que um dos cabeças se tornou um famoso deputado estadual. Se eleita, a chapa provavelmente iria reprimir o consumo de maconha nos bosques do Campus do Bacanga. Na época, espaços muito apropriados e seguros para esse tipo de experiência.

Pois bem, num determinado dia, Cesinha teve a ideia de pichar as paredes do Pimentão, com frases de efeito, para despertar a consciência dos colegas para a ameaça de um comando de direita no Campus. Além, é claro, de propagar o nome da Contraponto como melhor alternativa. O Pimentão (atual CCSo) era o prédio que, à época, abrigava importantes cursos das áreas humanas e sociais, como Comunicação, Direito, Serviço Social, Pedagogia, Economia, Ciências Contábeis e Ciências Sociais. Para executar a ação subversiva, ele pegou emprestado o Chevette de sua futura sogra (por sinal, minha tia), que levaria, durante a madrugada, uma turma de militantes ao Campus, quando a área ficava vulnerável a ações do tipo.

Cesinha já era um parceiro meu em ações de terrorismo anarquista. Certa vez, sequestramos uma urna de uma eleição que escolheria um representante da UFMA para um congresso ou reunião da UNE. Aproveitamos um momento de descuido da mesária Márcia Coimbra - que logo cedo se tornaria uma das mais competentes jornalistas de São Luís – e levamos a urna para escondê-la no último andar do prédio numa sala do curso de Direito. Horas depois, devolveríamos a urna, após sermos dedurados, provavelmente, por algum agente secreto do DCE.

Mas, voltando ao dia da pichação, quando aceitei participar, tive uma outra ideia: iria aproveitar a oportunidade para escrever poemas de Ledusha, Chacal e Leminski nas paredes do prédio. Com isso, pouparia o Pimentão, a nossa segunda casa, de frases factuais e deselegantes.

Quando chegamos, tomei logo conta de algumas tintas e fui escrevendo os poemas. Escrevi logo um da Ledusha que parafraseia o russo Maiakóvski: prefiro toddy ao tédio. E veio outro do Chacal: é proibido pisar na grama/ o jeito é deitar e rolar. O do Leminski eu não me lembro. Quando alguns dos colegas militantes perceberam, ficaram indignados. Um deles questionou o que era aquilo que estava escrevendo. Eu respondi que eram poemas. Então ele disse: “Poemas??? Você é um alienado!!! Eu trepliquei afirmando que não iria discutir com alguém que nada sabia a respeito de poesia contemporânea.

Depois de uma troca de olhares furiosos, Cesinha, num exercício de elegante diplomacia, resolveu o problema, dividindo os territórios de ocupação, como na divisão da Alemanha no final da segunda grande guerra. Eu ficaria com as paredes do corredor do primeiro andar das salas de Comunicação e também com a pracinha, onde já tinha começado a escrever. Os reais militantes da Contraponto teriam direito a utilizar as paredes do entorno da cantina no segundo piso. Sinceramente, acho que levei vantagem naquela disputa.

As coloridas pichações com os poemas permaneceriam nas paredes do Pimentão por pelo menos quatro longos anos. Além dos poemas, eu desenhei o símbolo que ficou conhecido como o de paz e amor, muito usado na época da Guerra do Vietnã, que, na verdade, significa cessar bombardeio.

BIGAMIA

E o meu envolvimento nos fatos daquela eleição para o DCE não terminariam ali. Durante o tempo da campanha eleitoral, Jorge Moreno pediu o meu apoio à chapa Contraponto. Eu jamais negaria um pedido dele, um colega que tanto admirava, por ser uma dos estudantes mais dedicados da UFMA. No mesmo dia, o meu grande amigo Ronaldo igualmente pediu o meu apoio à chapa Começo do Fim. Também nunca negaria um pedido de Ronaldo, que considerava um irmão. Resultado: na semana seguinte, tanto o panfleto da Contraponto quanto o da Começo do Fim apresentaram meu nome como um dos apoiadores. O pessoal da Contraponto nem ligou, mas Ronaldo ficou profundamente magoado com a minha bigamia política.

No dia do debate, quando entrei no auditório da UFMA, que estava lotado, Ronaldo, coincidentemente, estava com a palavra e, ao me ver, vociferou, apontando para mim: “Não levem este cara a sério. Ele não passa de uma aventura estética!!!”. Nesse momento, todos me olharam. Eu estava ao lado das colegas Mirtes Gomes e Andréa Oliveira, ambas estudantes de Comunicação, e fui procurando rapidamente um lugar para sentar ou para me esconder na plateia, enquanto tentava desvendar o teor daquela afirmação, surpreendentemente, tão lúdica: “aventura estética”. Dias depois, Ronaldo viria se desculpar comigo e a Contraponto venceria a eleição.

Não me recordo em quem votei para o DCE em 1993. Talvez em algum grupo de rock inglês dos anos 70, como o Yes, o Pink Floyd e o Led Zeppelin (exatamente como fazia o meu amigo Geraldo Iensen) ou em algum poeta “maldito” já falecido, a exemplo de Cacaso, Paulo Leminski e Torquato Neto.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O homem e o seu tempo

Já escrevi outras vezes sobre o jornalista Pergentino Holanda, sempre com a acuidade de expô-lo verdadeiro, falível, temperamental, boêmio seletivo, viajante letrado, observador desregrado. Encontrei na caminhada o desbravador de museus mundanos, o inventor de fábulas e festas, o comendador acidental, o anônimo garimpeiro de sebos, o encantador de leitores, o esteta da gastronomia. Não alcancei, contudo, o homem e o seu tempo, eterno conflito, tumulto em construção.

Chegou aos 20 anos sem compromisso algum, com a calça boca de sino balançando ao vento leve. Aos 30 já era o homem-âncora da família, mergulhado nessa responsabilidade com que se envelhece 10 anos a cada 12 meses. Aos 40, bem sucedido e ainda mais comprometido com o que escrevia, já tinha 60 e era quase avô dos filhos dos seus irmãos. Aos 50 desacelerou, voltou a ter 40, carimbou mais vezes o passaporte, desligou o motor das pequenas vaidades e se enfiou na tempestade dos brechós de praças anônimas.

O indisfarçável frequentador da mesa 15 da Cabana do Sol não me deixa ver a idade que tem hoje. Dali daquele canto no salão superior do restaurante da Ponta do Farol, copo de uísque longo em dose dupla e muito gelo, ele dá boa noite a São Luís depois de passar a limpo na Redação o barulho das horas do dia. Flerta com a mesa do lado, insulta com o olhar a bolsa falsa da madame que chega com voz estridente, remexe a travessa de peixes frescos já refogados no azeite trazidos do interior por Luiz Carlos Cantanhede, fala ao celular com José Carlos Salgueiro, solta gargalhadas com as inocentes histórias do sertão de Régis Fialho e deixa mais alegre a noite de Ana Lúcia e Amaro Santana Leite.

Aos 64 anos ele não sabe mais a idade que tem, tantas vezes foi e voltou na esquina do tempo. Depois dos 40 parou de contar. O que me espanta é o que Pergentino Holanda faz do tempo. Como encontra hora para sair, viver, viajar e escrever? A receita é simples: para escrever, precisa viver, ser consumido pelo tempo e dele se abastecer da notícia balsâmica. É o jogo que involuntariamente pratica no cotidiano, como um aproveitador. É um perde-e-ganha sem medida.

Onde e quando arruma tempo para escrever suas belas crônicas publicadas aos domingos – ou a qualquer dia da semana, quando lhe dá na telha? Escreve com prazer para o jornal, se entrega na profundidade ou na superficialidade dos enredos. Mas não encontra força ou coragem – quem sabe tempo - para publicar o fardo das mirabolantes ideias num livro, ou nalguns livros. Já se vão mais de 40 anos da poesia estampada no varal de “Existencial de agosto”, a sua obra única, esquecida, inquieta no baú das memórias. Depois, o silêncio de outubros e a valsa de muitos maios.

Há no semblante de Pergentino Holanda uma idade que não se revela, desconfiada e desinibida ao mesmo tempo, velha e juvenil, afoita e assombrada. Nas atitudes, há o menino birrento, sarcástico, o tirador de sarro, o falatório inconsequente, o segredo compartilhado com a mais pura lealdade, o humanismo do berço, o pavio curto, a simplicidade do jogo de erros, a desenvoltura ingênua. Nas amizades que cativa e cultiva, Pergentino Holanda é o senhor dos anéis, das boas alianças, dos laços fortes, da fidelidade inescapável.

É blasé na música que ouve, no corte dos cetins que adornam as festas, nos acordes das orquestras tradicionais, nos programas do final de semana, nas vestes de marca, na discoteca de Mário Pseudo, no passeio completo, na camiseta-convite, no protocolo. E, para distrair a plateia, se reinventa no espelho, não como Dorian Gray ou um camaleão de photoshop, mas como quem não pode ceder ao luxo dos anos porque o trabalho não permite.

Os dias passam, sobem e descem colesteróis e triglicerídeos nas mesas da noite, e Pergentino Holanda se camufla na paisagem enquanto fita a bailarina do Boi Barrica ou quando no salão se deixa hipnotizar pelo bailado do violino. Quase ninguém o vê chorar, porque não faz concessões no seu estilo de viver para contar. Viver a tempo de contar.

(texto publicado originalmente no jornal "O Estado do Maranhão", no dia 27.05.2012)