segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Maranhão e a primeira tragédia da família Kennedy

No dia 30 de setembro de 1933, a cidade de São Luís entrou no centro de uma crise diplomática envolvendo o Brasil e os Estados Unidos, e que se arrastou por quase 15 anos. Há exatamente oitenta anos o centro histórico de São Luís foi palco daquela que é considerada por alguns como a primeira tragédia da família Kennedy. José de Ribamar Mendonça, um cidadão comum da cidade, aos 25 anos, matou com dois tiros de revólver calibre 32, marca O.V., o norte-americano John Harold Kennedy, de 31 anos, em pleno sábado ensolarado da Rua da Estrela, no escritório da Ulen Management Company.



Mendonça era bilheteiro dos bondes da Ulen, empresa dos Estados Unidos que explorava, desde 1928, os serviços de água, esgoto, luz, tração e prensagem de algodão em São Luís. John Harold trabalhava como contador da companhia.

Não existe comprovação oficial sobre o grau de parentesco entre John Harold e a família do ex-presidente John Fitzgerald Kennedy. Segundo a Academy of Genealogy, de Nova York, não há registros de parentesco entre os dois. Mas ainda persistem rumores de que John Harold era tio do ex-presidente John Kennedy e do ex-senador Robert Kennedy, que também tiveram mortes trágicas. Tanto o contador da Ulen como o ex-presidente dos EUA nasceram no estado de Massachusetts. Outro indício de parentesco entre a vítima da Ulen e a família Kennedy: o pai de John Fitzgerald Kennedy, Joseph Patrick, era embaixador dos Estados Unidos na Inglaterra.

O que poderia ser apenas mais um crime estampado nas páginas da crônica policial maranhense da época acabou ganhando contornos políticos. O bilheteiro recebera a carta de demissão dias antes de completar dez anos de serviços prestados à Ulen. Acaso chegasse ao ciclo dos dez anos, teria a estabilidade assegurada pela legislação da época. A demissão intempestiva pode ter empurrado o maranhense ao crime. Mas havia outros indícios, segundo relata José Joffily no livro “Morte na Ulen Company” (Record, 1983).

São Luís atravessou a segunda década do século XX com sérios problemas de infraestrutura. De acordo com dados da Associação Comercial do Maranhão, a população da cidade era de aproximadamente 50 mil habitantes. Das oito mil residências existentes, 216 delas contavam com telefone e apenas 1.600 consumiam luz elétrica. O índice de mortalidade infantil em 1924 chegou a 56,3%, segundo pesquisa divulgada no dia 12 de outubro de 1926, no jornal “Pacotilha”. “Nas eleições para Assembleia Nacional Constituinte que se realizariam em 1º de outubro de 1933, quando o Maranhão contava com 1.108.877 habitantes, votaram apenas 12.432 eleitores. O percentual de votantes era, portanto, de 1,12%, inferior ao do Piauí, com 1,40%”, segundo pesquisa de José Joffily.

A chegada da Ulen Company a São Luís, em 1928, representava um alento para a população, que sonhava com melhores dias na prestação de serviços públicos. Os primeiros contatos com a Ulen foram intermediados, seis anos antes, pelo oficial da Marinha José Maria Magalhães de Almeida, genro de Urbano Santos, então governador do Estado. O contrato com a Ulen, empresa de propriedade de Henry Charles Ulen, teria sido uma das condições para que o governo maranhense obtivesse do Bankers Trust Company, de Nova York, um empréstimo de 1.750.000 dólares.

Pouco tempo depois do início do contrato vieram as primeiras reclamações da comunidade contra os serviços da Ulen. As queixas eram decorrentes da arrogância dos administradores da empresa, da baixa remuneração paga à mão de obra local, das altas tarifas dos serviços e, principalmente, das cláusulas draconianas do contrato entre a Ulen e o governo estadual. Quatro dias antes do assassinato de John Harold Kennedy, o jornal “O Globo” publicara a seguinte informação: “(...) O empréstimo (de 1.750.000 dólares) transformou-se num polvo, que exaure todas as energias dos maranhenses, com os rigores de cláusulas leoninas e com a trama de exigências judaicas. Mais de um terço da receita pública desaparece no sorvedouro dos juros e amortizações periódicas. O interventor afirma: - Todas as bocas do Maranhão clamam contra a monstruosidade desses contratos, feitos, aliás, com todas as formalidades legais. Que fazer? Sem dúvida alguma a situação é dificílima”.

Foi nesse conturbado período que ocorreu o assassinato na rua da Estrela. E por essas razões a população deu uma conotação política ao crime, embora Mendonça não tivesse vínculo com qualquer partido, agremiação ou sindicato. Além de inconformado pela demissão fora de tempo, o bilheteiro teria atirado no patrão para se vingar dos “opressores” norte-americanos. O clamor anti-Ulen tomou conta da cidade e Mendonça fora a julgamento como o “herói vingador”.

Preso em flagrante, o bilheteiro confessou o crime e continuou detido na Penitenciária do Estado, no Largo dos Remédios, até a data do primeiro julgamento, em novembro de 1933. O maranhense foi levado a três julgamentos, entre 1933 e 1944.

Episódios etílicos

Mendonça foi ao primeiro júri popular no dia 21 de novembro de 1933, no Tribunal do Júri da antiga Rua Formosa, no Centro de São Luís. Uma multidão foi até o local para assistir à sessão presidida pelo juiz João Mata de Oliveira Roma. De um lado, os advogados de defesa José Nunes Arouche e Waldemar de Sousa Brito. Do outro, o promotor Edson Brandão. Instigado pela acusação de que Mendonça era um contumaz apreciador de cachaça, Waldemar Brito assim reagiu: “Se é para esclarecer e não para confundir, não me fale em alcoolismo. Cada um bebe o que pode. Mr. Kennedy, cujo trágico desaparecimento todos nós lamentamos, iniciava suas libações nos Lunáticos ao cair da tarde do sábado e entrava pela noite até a madrugada da segunda-feira na Pensão Lolita, onde nunca lhe faltou o generoso White Horse vindo diretamente de Nova York. Dali chegavam também pacotes de Lucky Strike que distribuía prodigamente entre fumantes do seu clube preferido”. Ao que foi emendado pelo colega José Arouche: “Se é para rememorar episódios etílicos, qual o motorista desta capital que ignora a carraspana do malogrado contador da Ulen na pensão da Leontina? Quantas vezes foi ele carregado nos braços até o carro?”.

O bilheteiro foi absolvido pelo Conselho de Sentença, por cinco votos contra dois, ante a alegação da defesa de que ele teria agido sob completa perturbação dos sentidos. Mendonça permaneceu preso por mais quatro meses. No dia 2 de abril de 1934, o Superior Tribunal de Justiça do Maranhão anulou o júri popular e marcou novo julgamento para duas semanas depois. No dia 18 de abril, Mendonça foi novamente absolvido pelo Conselho de Sentença, desta vez por ter cometido o crime “para evitar problema maior”.

Com a absolvição, aumentaram os protestos contra a Ulen. O governo dos Estados Unidos interveio no episódio e tentou sem sucesso, baseado em suposto erro judiciário, a extradição de Mendonça. Segundo Joffily, durante 11 anos a questão da Ulen e a absolvição de Mendonça envolveram nove ministros brasileiros e três embaixadores dos Estados Unidos. “Provocaram, pelo menos, 38 ofícios e telegramas para proteção da empresa americana e para garantir a condenação de José de Ribamar Mendonça. O Itamaraty aceitava a alegação dos diplomatas americanos segundo a qual a Justiça brasileira contrariou a prova dos autos”.

Em liberdade, o ex-bilheteiro da Ulen mudou-se em 1935 para o Rio de Janeiro, onde conseguiu emprego na Companhia Atlantic de Petróleo. Nesse período, o governo maranhense fez a primeira revisão de cláusulas do contrato com a empresa americana – que já havia sido suspenso entre 1930 e 1931. Em 1944 Mendonça foi novamente preso e transferido para São Luís, onde se submeteria ao terceiro julgamento. Finalmente absolvido, ele retornou ao Rio no dia 16 de agosto de 1944 para reassumir o emprego na Atlantic. Em dezembro do mesmo ano o irmão de John Harold, Russel F. Kennedy, ainda tentou recurso por meio de carta testemunhável. Oito anos depois Mendonça morreria no local de trabalho após um infarto.

“O crime da Ulen Company abalou as estruturas da sociedade maranhense naquele período”, avalia o historiador e desembargador Mílson Coutinho. Segundo ele, o assassinato entrou para a história dos grandes episódios da crônica forense no Maranhão, a exemplo do Caso Pontes Visgueiro e do Crime da Baronesa.

O crime na rua da Estrela, embora não tenha despertado na época o interesse da chamada grande imprensa no Brasil, foi assunto de primeira página no “The New York Times”, no “Evening Gazette” e no “Boston Evening Transcript”.

No dia 15 de julho de 1946, o governo maranhense assinou decreto cancelando o contrato com a Ulen Management Company. Atualmente, os serviços de energia em São Luís são explorados pela Cemar, empresa privada cujo controle acionário (84,7%) é do grupo norte-americano PPL - Pensilvânia Power Light, que tem sede em Allentown (EUA).