terça-feira, 16 de março de 2021

A última que morre


Entramos naquela quadra da pandemia em que o brasileiro, em particular, começa a perder o medo da morte e não se surpreende mais com os números. Foram quinhentas mortes por dia. E nos assustamos. Foram mil e logo depois mil e quinhentas mortes ao dia. E, comedidamente, nos revoltamos. 

 

Agora já são dois mil mortos ao dia por Covid-19. Amanhã podem ser três mil... E estamos nos acostumando. Para selar essa escalada de costumes dos novos tempos, ainda brincamos com o Zé Gotinha empunhando arma como uma espécie de serial killer da Fiocruz. 

 

Perdemos quase 300 mil vidas. Perdemos o medo da morte. Perdemos. E a saída mais confortável, para nós que aqui ainda estamos, é maldizer o noticiário; é xingar o Jornal Nacional que só fala de mortes; é cancelar o Bonner e a Renata que, sem trégua, não nos dão uma notícia boa – com tanta coisa espetacular acontecendo no Brasil e no mundo agora, imagina!, e essa imprensa que não enxerga!

 

Demoramos uma vida temendo esse momento, mas foi necessário um ano apenas para aprendermos a nos acostumar com a morte. Nem sei se foi assim na época da Gripe Espanhola. Nem sei se há um tempo regulamentar no mundo da psicanálise para se acostumar com a morte. Nem sei se é hora de clamar por mais Lacan e menos Ivermectina! Só sei que perdemos. 

 

Não nos surpreendem mais a falta de oxigênio, a falta de leitos, a falta de vacina, a ausência de ministro. Já não nos causam espanto o mapa do país em vermelho, o luto frugal na família e o obituário elegante nas redes sociais. 

 

O vírus banalizou a morte e fomos compelidos a quebrar o rito do luto. Não há velórios, o pranto está confinado sob a máscara e os olhos marejados acompanham o sepultamento em caixão lacrado num drive-in de cemitério. A dor agora parece passageira. Não há tempo a perder. É preciso virar a chave e engolir o sofrimento porque alguém ao lado pode estar infectado, à espera de ajuda. 

 

E seguimos sobrevivendo com o peito apertado, um choro queimando silenciosamente os pulmões. O sétimo dia é só uma miragem cristã; as condolências, apenas mensagens corriqueiras trocadas entre amigos nos grupos de Whatsapp. E a vida segue com nossos mortos convertidos em gráficos que enfeixam as cores do desencanto. 

 

A morte, reinventada nesses novos tempos num papel secundário, quase comum, é um reflexo do que acontece no mundo. Mas é, sobretudo, o retrato de um país que assiste, impassível, à morte da sua própria história, à falência múltipla do bom senso – ao negar a ciência, os livros, a vida. 

 

O país respira por aparelhos, anestesiado, em meio a um lockdown cívico que cega. Enquanto isso, o brasileiro, depois de vender a alma ao inominado, agora perde a vida. Perde a conta. E perde também o medo a cada dia. E nem sabe. 

 

Resta ainda uma esperança, talvez a última a morrer numa fila do SUS. Porque um povo que perde o medo da morte é capaz de tudo – até mesmo de se fingir de morto.