sexta-feira, 21 de junho de 2013

Vem pra Lua (o manifesto)



Vem pra Lua que domingo ela flutua alta, cheia, clara, quase nua estirada sobre o Atlântico, debruçada na baía.

Vem pra Lua que domingo ela brilha diferente e cobre a noite de poesia, cada estrela em volta é um vagalume iluminando a rua. Oh, imponente mãe, irmã e tia da razão e da euforia.

Vem pra Lua que domingo ela prateia a Terra com seu facho, faiscante e atrevida, como uma manifestante na avenida gritando que o buraco é mais embaixo.

Vem pra Lua que domingo ela se revolta com a bala de borracha e a pimenta, o azul do dia e o magenta, o céu nublado e o preço da polenta.

Vem que a Lua não é só dos namorados. Vem que a Lua não é do dragão. É de quem ama e protesta. É dos que cantam em voz alta e fazem a festa.

Só os loucos atiram pedras na Lua, esses podem. Porque a Lua mexe, a maré sobe e o juízo desce.

Vem correndo que a Lua não é lugar de vândalo, partido ou globocop. Vem que a Lua tem audiência mas não dá ibope.

Vem pra Lua, a maior de todas, e ouve os cães ganindo pelos becos, o mar de ressaca e o Brasil mais intenso ocupando a praça. Vem logo porque ela é rara.

Vem pra Lua e grite alto por um bilhete único no ônibus espacial, pelo passe livre em discos voadores, contra o aumento da tarifa no táxi lunar. Não é pelos 20 centavos. É pelos 20 anos que outra Lua assim vai demorar.

Chega de arquibancada, é hora de entrar em campo pra vencer. Sem patrão, sem Fifa. Fora o cartola! Viva a cartolina!

Chega de ficar em casa deitado no conforto do quarto minguante. Vem pra Lua Cheia. Vem!

domingo, 16 de junho de 2013

O poeta que roubava a cena



Há mais de 12 semanas na lista dos mais vendidos da revista “Veja” com o livro “Toda poesia” (Companhia das Letras, 2013), o poeta Paulo Leminski, acostumado da janela a atirar flechas no calcanhar dos passantes, virou nos últimos anos o autor preferido nas citações das redes sociais. Numa combinação rara de humor, fina ironia, amargura sem culpa e uma boa dose de inventividade, o autor de “Caprichos & relaxos” (editora Brasiliense, 1983) deixou pelo caminho um rastro de inquietação que, outrora perdido em meia dúzia de livros nas mãos de uns gatos pingados, hoje se acha com facilidade no vasto mundo da internet. “Não discuto com o destino/ O que pintar eu assino”. Assim o curitibano, morto aos 44 anos, segue pelas redes “assinando” o que deve e, mais ainda, o que não deve – há ruído em excesso atribuído equivocadamente a ele, entre mensagens de autoajuda, frases evangélicas e versos piegas.

“Toda poesia” pode servir de bússola para o redescobrimento da obra poética de Leminski. Com apresentação de Alice Ruiz, a companheira de quase todas as viagens do poeta, o livro não tem a cereja insípida de um best-seller estrangeiro, mas leva na capa o confeite de uma grande editora, com tiragem expressiva e distribuição profissional. Turbinado pelo sucesso que o autor experimenta nas redes sociais, o livro tem a cara dessa geração que pela internet compartilha do espirro ao luto: é leve, ligeiro, pode ter a leitura iniciada por qualquer página e os mais de 600 poemas seguramente resistem ao tempo pela originalidade, irreverência e, em alguns casos, pelo lirismo. Sem cerimônia, a poesia embalada de Leminski desbancou nas livrarias o fenômeno de vendas “Cinquenta tons de cinzas” e suas derivações.



Não obstante os “pangarés tentando correr na primeira raia”, Paulo Leminski optaria por uma antologia mais discreta, avessa ao ranking das vendas. Fleumático, preferiria chegar em seu corcel negro sem ser notado. Mas da catacumba o poeta deu um salto pop e se aboletou na exígua sala de estar das celebridades, numa espécie de dança dos famosos da literatura. O polaco black meio zen, meio-a-meio, está despido em “Toda poesia”, uma babel distraída infestada de lampejos, de drops e do quase haikai que ele traficava livremente para o Brasil. Desfilam pelas páginas do livro a forma direta, às vezes o coloquial, o trocadilho, aquela percepção enxuta e desencanada do cotidiano. Com seus motins ensaiados, o poeta se enfeita e ao mesmo tempo se enquadra:

um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada

depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg

por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores


Paulo Leminski Filho foi um gerador de polêmicas, um poeta com legado insuspeito, nascido a 24 de agosto de 1945, naqueles tempos de estilhaços de final de guerra. Ensaiou os primeiros passos nas letras como professor de redação e história nos cursinhos da capital paranaense. Dava aulas e submergia na leitura. Mas foi na publicidade que se encontrou de vez com a poesia em estado de ebulição. Fez bicos em agências, transformou o teaser da propaganda no ganha-pão do poema e foi se erguendo aos trocos & barrocos. Do flerte com o oriente surgiu o samurai sem mestre que alcançou a faixa preta no judô.


Leminski e Alice Ruiz

A revista “Invenção”, esteio do movimento concretista dos irmãos Campos e de Décio Pignatari, foi o berço literário de Leminski. De lá saíram seus primeiros suspiros. Embora convivesse afetiva e profissionalmente com a célula tronco da poesia concreta, Leminski esboçava um DNA mais libertino, não carregava em tempo integral o rigor e a forma do concretismo. Pegou o bonde andando da “Invenção” e talvez por isso tenha sido fisgado por uma poesia mais sonora e visual, escrachada, nua em pelo. Como um transeunte urbano, pegou carona no modernismo remanescente de Oswald de Andrade, desembarcou na deselegância concreta de Sampa e bebeu no gargalo o vinho da poesia marginal mimeografada dos anos 1970. Em “Toda poesia”, a individualidade é o eixo da trama poética, do ponto de partida à bandeira de chegada.

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas


Com um rio vermelho inflamável correndo nas veias, Paulo Leminski foi um múltiplo tonitruante que guardou a mansidão dos tempos de seminarista adolescente no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde se aproximou do latim. Leu em inglês, francês, grego, japonês e mais alguma coisa. Leu Maiakoviski em russo. Traduziu Joyce, Fante, Mishima e Lennon. E escreveu as biografias de Cruz e Souza, Bashô, Leon Trótski e Jesus Cristo.

“Catatau” foi o romance experimental que em 1975 lançou o autor na fogueira das evidências. O livro distingue, na opinião do poeta baiano Antônio Risério, o ponto mais alto e denso do poder leminskiano de criação textual. Em prosa cometeu também “Agora é que são elas”, “Guerra dentro da gente” e outros ensaios. Em 2001, foi biografado em “Paulo Leminski, o bandido que sabia latim” (editora Record), livro do jornalista Toninho Vaz, amigo e colega de profissão.

“Toda poesia” reúne poemas dos livros “Quarenta clics em Curitiba”, “Caprichos & relaxos”, “Distraídos venceremos”, os póstumos “La vie en close” (1991), “O ex-estranho” (1996) e “Winterverno” (2001) e alguns trabalhos esparsos publicados em livros independentes lançados pelo autor antes da estreia em selo nacional (editora Brasiliense) em 1983.

Ora era exigente, talhado no capricho: “Um poema/que não se entende/ é digno de nota/ a dignidade suprema/ de um navio/ perdendo a rota”. Ora era lambada, relaxo descabelado: “Esta vida é uma viagem/ Pena eu estar/ Só de passagem”. Leminski não levava o país a sério. “O Brasil, para mim, é uma abstração jurídica com a qual nada tenho a ver. Gostaria de pertencer a uma nação onde eu pudesse ser patriota”. Considerava a poesia de Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant’Anna retórica, discursiva, média e baseada em lugares-comuns. Nem mesmo Gabriel Garcia Márquez escapava da língua afiada do poeta. Jorge Amado era apenas um redator que “desovava uma besteira, um best-seller todo ano”.


Leminski entre Caetano Veloso e Moraes Moreira

Tinha uma relação de dependência quase física com a música. Letrista bissexto, cultivava amizade com compositores estrelados da MPB. Com Caetano Veloso escreveu “Verdura”, música do disco “Outras palavras” (1981). São dele também as letras de “Xixi nas estrelas”, com Guilherme Arantes, “Mudança de estação”, com A Cor do Som, “Se houver céu”, com Paulinho Boca de Cantor, “Promessas demais”, parceria com Moraes Moreira gravada por Ney Matogrosso, e “Dor elegante”, com Itamar Assumpção, depois gravada por Zélia Duncan, entre outras músicas.

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, edens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra


Paulo Leminski evitava o caminho da poesia engajada e acreditava muito pouco em qualquer possibilidade de vanguarda, em porta-bandeira de causas aflitivas ou opositivas. Por ele, era cada um na sua. Poesia - assim como a roupa que se veste, a comida e o itinerário - não se tira de uma teta nem é pra ser feita com compromisso como quem tem hora marcada no consultório ou numa passeata. Não pode ser datada. “O escritor não tem tempo. Escrevo para ser lido por Ramsés II ou por algum biônico que vai nascer daqui a 1200 anos”. Havia um toque de que “a ideologia de um verso socialista não era o bastante para botar sal numa sopa para dois”, lembrado pelo poeta e jornalista Rodrigo Garcia Lopes.

“Toda poesia” é esse eficiente veneno antimonotonia de cabeceira, pra se consumir sem moderação. O livro é a gota d’água que faz chover no piquenique das conveniências, que mata a sede no deserto de qualquer estante, das livrarias abarrotadas de souvenir. Expõe um Leminski completo na poesia impressa e na vida e na alma impregnadas em cada verso. Na obra se percebe claramente que Leminski “não usava métrica, mas uísque” em seu labor intelectual.

O poeta era considerado uma espécie de malandro cosmopolita, um kamikaze inspirado nos devaneios etílicos que gostava de rock e venerava a geração beat. Viveu intensamente o underground da sua aldeia natal e pôs os pés no mundo. “Os Titãs são o que restou do rock, suas letras são o que restou de um país falido, um vice-país vice-governado, vice-feliz, vice-versa”. Foi num show da banda paulista sua última aparição em público.

A cirrose foi o inevitável corta-luz de um rito de passagem desregrado, extremado, “a vida por um fio, Leminski por um fígado”. Sete de junho de 1989: “Poeta com poesia se mata”. Dizia que a beleza era didática, que sem ela o artista estava morto. Paulo Leminski, como no poema de Emily Dickinson, morreu por beleza. Pela beleza de sua poesia, “toda poesia”.