terça-feira, 24 de abril de 2012

Nosso abril despedaçado

Hoje foi um dia daqueles para não se acreditar na notícia. Dia de duvidar. De ter medo de abrir o jornal. Medo de acordar e não ter sonhado. De ligar a televisão. De ouvir o rádio. Medo da verdade. A madrugada foi longa. Pela manhã Décio Sá estava só nas manchetes. Não mais como porta-voz dos fatos, das investigações e das provocações. Ele era a notícia, comovente, cortante, aterradora.

Conheci Décio Sá nos corredores da universidade. Simples, de origem humilde e gestos largos, chegou ao curso de Comunicação na segunda metade da década de 80 com uma vontade imensa de virar repórter, de ser um homem de jornal, de conhecer os segredos das palavras. Acolhido no curso como um bom sujeito, sem papas na língua, foi companheiro de boas viagens, carregador de alegrias ao lado do amigo Bottentuit, observador inquieto, ingênuo nas primeiras empreitadas amorosas, jogador de futebol sem futuro, indomável quando acuado.

Décio Sá tinha planos e sabia o que queria. Fazia o futuro todos os dias. Virou homem feito, pai de família e transformou-se no repórter mais sagaz de sua geração. E por isso mesmo cultivou ao longo do caminho uma terra vasta de admiradores e alguns quarteirões de desafetos. Estava sempre à frente de todos. Como correspondente da Folha de S. Paulo, viveu a sua experiência mais audaciosa e tumultuada, com reportagens que lhe renderam reconhecimento e birras. Trabalhou na redação de O Imparcial, tomou partido do contra, criou polêmicas, deixou o emprego, entrou em quarentena até chegar de vez ao Sistema Mirante. Trabalhamos juntos na redação de O Estado do Maranhão e ali experimentamos a chegada do computador ao jornal.

Estava sempre apressado como um eterno foca de redação, olhos sobressaltados, ombro curvado e uma caderneta de anotações na mão e uma resma de perguntas prontas. Corria riscos, mas os riscos não importavam. O importante era correr e chegar primeiro, como numa gincana juvenil de uma equipe sem capitão. Assim era o Décio Sá.

Bonachão com os amigos mais próximos, sincero nas atitudes, generoso com a família e implacável na pena, Décio Sá foi um desses colegas de profissão que sabia multiplicar suas fontes, cotejando-as com sabedoria e delicadeza no exercício do jornalismo. Aprendeu a domar como poucos o informante, a informação e os informados.

O blog foi o divisor de águas. Décio Sá tinha lado, e fazia questão de expor as suas preferências musicais, políticas, esportivas. Metia-se até em briga de galo. Às vezes de forma sutil, noutras nem tanto. E por ter lado, em alguns momentos navegou contra a correnteza, provocou crises nas esferas de governo, fomentou fogo amigo e estimulou a queda de secretários ou a cassação de prefeitos.

Foi com essa personalidade forte, em permanente estado de ebulição, que Décio Sá tombou na noite de ontem, com cinco tiros a queima roupa. Mas não caiu sozinho. Caímos com ele, envergonhados e tristes. E por isso mesmo amanhecemos hoje com medo de acordar.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Nós na Varanda, no embalo da rede


Varanda remete a uma casa no campo, arejada, samambaias escorrendo pelos frechais, cadeiras de balanço, redes estendidas nas escápulas, uma vovozinha sentada fazendo tricô enquanto o forno a lenha doura o tempo e a vida. A varanda é assim, com a insustentável leveza na melodia de pássaros e árvores. Mas um dia o músico Celson Mendes decidiu reinventá-la. E já se vão dez anos. O conceito é quase o mesmo, a mesma essência e o mesmo enredo: cadeiras postas, o tricô das boas conversas, microondas de desejo na mesa, o prelúdio de chegada e a música em variados tons e formas.

No princípio eram músicos reunidos no bar, no lar, na calçada, numa jam session particular. Depois o projeto ganhou a forma de Varanda itinerante, uma vez por mês na casa de uma boa alma viva, lista seleta de convidados, ingredientes compartilhados. Nos últimos quatro anos, o projeto idealizado por Celson Mendes passou a levar a assinatura do casal Celijon Ramos e Fafá Lago na produção e conta com o auxílio luxuoso de uma legião de artistas e fiéis seguidores.


A Varanda não é seita, mas a música ali é quase uma religião. Não há vovozinha ou lobo mau. Só cantos de fadas e divas. A casa de campo é uma questão de estado de espírito do anfitrião do dia. Pode ser uma cadeira ou uma mesa de balanço, de boas batidas, à escolha do DJ. A rigor, Pedro Sobrinho é escalado para dar as boas vindas. Ele faz o rito de passagem com suas fusões de sonoridade e arrepios de sensibilidade. De São Luís para o mundo, sem bilhete de embarque, dicas de segurança, caça-palavras ou revistas de bordo.

O projeto Varanda é como se fosse uma brincadeira de domingo, uma ciranda de bons músicos e vozes refinadas, com direito a jogral, recital, trovas e leitura de páginas amarelinhas. Cada um entra na Varanda com alguma coisa, naquela descoberta prazerosa de carregar o piano. E sai muito mais rico. De informação, de descoberta. É a regra básica de convivência. Sem estatuto, bandeira ou sindicato, a Varanda faz história por onde passa.

É a nossa festa na laje, o fino da bossa, o jazz de viés, o blues abolerado e sem pressa, o baião de veludo, a música sem fronteira, tribal, primeira, a canção pra viver mais, derradeira. A Varanda é como um ritual. A música vai acontecendo e, à medida que os convidados chegam, a atmosfera vai se desenhando feito aquarela. Há apreciadores de carteirinha, protagonistas, sócios fundadores, noviços, frequentadores bissextos e anfitriões. Tudo se confunde quando a tarde invade a noite.

A cada edição da Varanda há um ilustre homenageado. Augusto Pellegrini, Milla Camões, Léo Capiba, Célia Maria, Anna Cláudia, Victor Castro, Salomão de Pádua, Djalma Chaves, Nosly, Tutuca, Cecília Leite, Marcelo Bianchinni, Flávia Bittencourt, Betto Pereira, Jaime Santos e Sérgio Habibe são alguns dos nomes que passam pelo palco dos endereços revelados à boca pequena, acompanhados de músicos como o próprio Celson Mendes, Júlio Marins, Jarbas Lima, Jeff Soares, Daniel Martins e muitos outros.

E uma varanda não seria uma varanda sem uma rede. É pela rede social que o projeto se materializa. Quem passa pela Varanda, passa antes pelo facebook ou twitter. Sem isso, nada feito. Não é festa pra muvuca, mas um sarau de amigos que se multiplica ou se recicla ao sabor do humor dos convidados. O endereço é cuidadosamente revelado em mensagem in box. As fotos de cada edição são compartilhadas também pela rede social. E toda rede tem varanda – em verdade, duas varandas.

A Varanda não é definitivamente uma festa pra VIP, no sentido mais maranhense do termo ou da sigla. Mas uma comunhão de estilos, uma celebração da música como antiproduto. Sem sobrenome na porta. Entra quem conhece o caminho. Esse é o privilégio.

(Texto publicado no jornal O Imparcial, coluna do Alex Palhano, no dia 15.04.2012)