quinta-feira, 15 de agosto de 2013

No cinema com Juliette



Fui ao cinema no sábado me reencontrar com Juliette na sessão das seis. Sempre uma emoção forte, um misto de encantamento e compaixão. A expressão de Juliette - o olhar profundo, algumas vezes languidamente perdido no horizonte – me seduz e espanta. De gestos brandos, voluptuosos, Juliette esboça uma sensualidade que se confunde com amargura envelhecida em barris de esperança. Tem sido assim ao longo dos anos.

Mais uma vez eu estava ali para o nosso encontro no escuro da sala cheia. Não um encontro fortuito, mas um encontro anunciado, com testemunhas de diferentes gerações: a adolescente com os dedos enfiados no iPhone, um jovem casal de calo nos lábios de tantos beijos, a professora solteira e quarentona falando alto em Lacan e Jung, a madame com casaco de pele e seu barulhento saco de pipocas, idosos de bengala etc.

Juliette não é mais a mesma. A pele alva, os cabelos negros embora tingidos pelos cosméticos já levemente esbranquiçados, as mãos delicadas e ternas, tudo aquilo me fazia crer estar afinal mais uma vez com ela. Mas Juliette não é a mesma. Eu não sou mais o mesmo. Juliette havia crescido e aparecido depois daquele ligeiro e movediço encontro de 1986, em que pela primeira vez a vi interpretando Julieta de Godard em “Je vous salue, Marie”. Agora eu estava de frente para uma Juliette madura, mais vivida que vívida, de poucas palavras, inconformada com o infortúnio da solidão e da demência, sem a família e os amigos, desconfiada e com mania de perseguição. Era essa a Juliette Binoche de sábado, que me fez novamente confundi-la com seus personagens intangíveis, no papel de uma mulher de vida intensa, tumultuada.

Em “Camille Claudel 1915”, de Bruno Dumont, Juliette Binoche vive a escultora francesa que foi aluna e amante de Auguste Rodin. Diferentemente da produção “Camille Claudel”, dirigida por Bruno Nuytten em 1988 e que tem Isabelli Adjani no papel principal contracenando com Gérard Depardieu, o filme de Dumont é mais severo com a plateia porque não passeia pela biografia da escultora. Faz apenas o recorte de um período da passagem de Camille pelo manicômio de Montdevergues, no sul da França. Quem não conhece a história de Camille Claudel – sobretudo a sua conflituosa relação sentimental e profissional com Rodin, fato que desencadeou os surtos de esquizofrenia - certamente passará a hora e meia no cinema enfiado no iPhone como a adolescente ou cochilando aqui e ali como a madame e seu casaco de pele.

“Camille Claudel 1915” é um filme silencioso, arrastado pela corrente cotidiana de um asilo, pelas dores, o gemido e o sussurro de doentes mentais de verdade, por onde transita o personagem de Juliette Binoche. Louca, sã, vítima de Rodin, desprezada, injustiçada? Quem é Camille Claudel? O filme de pouquíssimos diálogos – não tem mais que meia hora de fala - limita-se a expor a crua monotonia do hospício e o dia a dia de uma paciente visivelmente entediada com aquele universo, privada de exercer a sua arte, que vive à espera suplicante do irmão, o respeitado poeta francês Paul Claudel.

Juliette Binoche não é mais aquela menina dos primeiros encontros, das paixões arrebatadoras de “A insustentável leveza do ser”, “Os amantes da Ponte Neuf” e “Perdas e danos”; do labirinto cromático de Kieslowski em “A liberdade é azul”, “A igualdade é branca” e “A fraternidade é vermelha”; e dos inspirados “O paciente inglês” e “Chocolate”. Foi a atriz mais presente nos filmes da minha primeira juventude, essa fagulha que teima em permanecer acesa em mim. O tempo passou e Juliette é hoje uma jovem senhora com os mesmos traços de beleza e o mesmo talento cênico.

O tempo passou para Juliette como passou para Nastassja Kinski, Isabelle Adjani e Victoria Abril, mulheres com quem também me encontrei muitas vezes no cinema e a elas fui apresentado por gente descompensada como Polanski e Almodovar. Para mulheres assim o tempo é o que menos importa. Elas continuarão passando.

“Camille Claudel 1915” é frio como uma correnteza de inverno denso, eficiente no propósito de nadar contra as convenções. É provocador sem panfleto e necessário, apesar da imensa carga de melancolia jogada sobre os ombros de Juliette. Improvável deixar a sala sem se sentir arrastado como o filme.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O paraíso sitiado dos índios invisíveis


Foto: Sebastião Salgado

Não fui o primeiro jornalista a conviver durante um certo tempo com os índios Awá Guajá. Antes de mim lá estiveram outros que provaram do mesmo arrebatamento. Como eu, deixaram suas escrituras em folhas de jornal. E não importa quem chegou primeiro, quem virá depois para contar. Importa o tamanho da emoção de conhecer um povo tão mais brasileiro, tão mais índio dentre os índios de que se tem notícia na história mais recente do País. Conheci os Awá Guajá numa primeira viagem em setembro de 1995 e ainda hoje me desassossego com qualquer fato que os exponha no noticiário, porque, a rigor, estão em permanente ameaça de extinção. E pelos mesmos motivos que os vi vulneráveis há 18 anos.

Por meio do amigo Heider Moraes, recebi a informação de que o jornal “O Globo” publicara, nas edições de ontem e hoje, ampla reportagem sobre esses índios que vivem nas matas do Maranhão há quase 200 anos. O texto bem pontuado de Miriam Leitão bate nos mesmos pontos: a ação criminosa de madeireiros, grileiros e outros aproveitadores põe em risco a sobrevivência de um povo sem armas, que desconhece a guerra e a agricultura e que vive primitivamente da pesca e da coleta.

Sobre o texto não há novidades – nada que as autoridades já não saibam sobre invasões de terra e assalto à luz do dia sobre as nossas florestas. Acontece que Miriam Leitão foi convidada pelo talentoso fotógrafo Sebastião Salgado para acompanhá-lo nessa viagem de encontro aos Awá Guajá. E, claro, o que era pra ser apenas um texto sem sal, de uma jornalista moldada para cobrir as áridas pautas de economia, transforma-se numa obra de arte ilustrada por imagens do maior fotógrafo do mundo.

Em vídeo gravado para o site de “O Globo”, Miriam Leitão confessa que ninguém retorna de uma viagem como aquela impunemente. Veja alguns trechos do depoimento da repórter:

“Sempre achei que ser jornalista era um privilégio. Como jornalista, você consegue viver coisas impressionantes. É uma profissão tão intensa, tão cheia de surpresas... Mas a melhor coisas do jornalismo é a reportagem, é você sair, viver uma história, entender uma história e contar essa história. Só que um privilégio maior ainda é quando você recebe um telefonema de Sebastião Salgado com o convite para ir a uma tribo e passar alguns dias convivendo com os índios”.

“É muito difícil contar o que foi essa experiência, mas é como se eu tivesse aberto uma janela para o mundo que eu não conhecia, uma parte do Brasil que eu ainda não tinha visto, que vi e que me emocionou”.

É quase isso e mais alguma coisa. Uma experiência que não se apaga. Essa janela nunca mais se fecha e por isso mesmo o desassossego vira uma tocaia. Sou mais um jornalista sitiado pelo tema.