sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

A ruptura e o medo



A crise econômica de 2008 nos Estados Unidos, que provocou impactos na Europa e em outros pontos do planeta, desencadeou uma onda de manifestações em várias partes do mundo. Muitas delas foram ativadas pelas redes sociais e replicadas via smartphones, numa espécie de levante transnacional – embora cada uma com características e motivações peculiares.

Num intervalo de cinco anos, mais precisamente entre 2010 e 2015, essas manifestações mudaram radicalmente o panorama cultural e político de alguns países. A primavera digital deu origem a um novo padrão de grupo, a comunidade virtual, habitante de um território imaginário, próprio do ambiente de rede.

Sem fronteiras, a comunicação sem fio uniu desconhecidos e conectou, com acentuada velocidade, projetos de cidadãos inconformados – ou com governos alinhados às elites financeiras, responsáveis diretamente pela crise que ainda perdura em algum canto, ou com o estado repressor.

As pautas represadas ganharam eco e se multiplicaram. O mundo mudou naqueles cinco anos. Os efeitos políticos podem ser medidos ainda hoje em diferentes países. Nos Estados Unidos, no mundo árabe, na Europa e no Brasil.

O fim das fronteiras físicas abriu caminhos para a invisibilidade, o anonimato da informação, a realidade imaterial e a famigerada pós-verdade. Em tese, o indivíduo imaginou-se menos vigiado e patrulhado pelo estado para experimentar uma nova liberdade de comunicação no espaço virtual.

A partir das atitudes individuais, até então limitadas a um contexto regional, emergiram os ativistas digitais e, com eles, encorajados por ações coletivas, nasceu o fim do medo. Os movimentos sociais de outrora desvaneceram-se na poeira das novas mídias. Perderam a cor partidária. Deixaram de ser de esquerda, de direita ou de centro.

Algumas lideranças políticas foram ungidas ao poder por estarem mais afinadas com as reivindicações desses novos movimentos e com as pautas do ambiente de rede, estimuladas por ideias às vezes vagas sobre economia (números inconsistentes, ausência de fontes confiáveis, estatísticas confusas) e política (quase todos os políticos e partidos jogados na vala comum da corrupção).

No caso específico do Brasil, os movimentos sociais que brotaram no calor das jornadas de maio e junho de 2013, influenciados pelas insurreições mundo afora, não duraram uma estação. Mas ainda perduram batendo panelas no oco das redes sociais. Multiplicaram-se até, ainda que desconfigurados. E resultaram no afastamento da então presidente Dilma Rousseff, em 2016, e na eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

É esse enigmático rizoma, fundamentado talvez nas idiossincrasias dos novos tempos, que, há mais de dez anos, os estudos do sociólogo espanhol Manuel Castells vêm tentando desvendar. Em 2013, ele reuniu parte de sua densa pesquisa no livro Redes de indignação e esperança.

Agora, ele publica Ruptura, livro complementar, de leitura indispensável, que reflete sobre os efeitos dos movimentos políticos potencializados pelas redes sociais no mundo e o possível desmantelamento da democracia liberal. Castells sentencia o fim das instituições políticas como intermediárias entre governantes e governados.

O fim do medo – medo da corrupção, do desemprego, da violência – enseja o fim dos partidos, “um colapso gradual do atual modelo de representação”, que tende a forjar a ideia de uma “democracia real”. A crise política relatada por Castells tem uma dimensão global. Mas, seguramente, é o Brasil um complexo estudo de caso.

O presidente eleito Jair Bolsonaro dá sinais de que governará abrindo diálogo diretamente com sua plateia de seguidores digitais, “sem a intermediação” do Congresso, já condenado ao extermínio por ativistas da rede.

E o Judiciário, cuja alegoria preferencial na teia da rede é o STF, virou alvo de pilhéria nas mensagens compartilhadas diariamente por esses agentes diretos da ruptura.

Há uma batalha às cegas batendo à porta. E, por enquanto, ninguém sabe sequer como ela vai começar.

Um pensador da sociedade em rede

O espanhol Manuel Castells é considerado um dos principais pensadores do mundo. Sociólogo, foi professor da Universidade de Paris e tem vasto estudo sobre movimentos sociais, sociedade em rede e a influência das novas tecnologias no cotidiano das pessoas. Há alguns anos, Castells investiga os efeitos da informação sobre a economia, a cultura, a vida política e a sociedade.

Manuel Castells é professor emérito da Universidade da Califórnia, membro da Academia Americana de Ciências Políticas e Sociais, da Academia Britânica, da Real Academia Espanhola e tem mais de 25 livros já publicados.

Meu primeiro contato com as ideias de Castells veio com a leitura de Redes de indignação e esperança. O livro, originalmente publicado em espanhol em 2012, ganhou versão em português no ano seguinte e um posfácio dedicado à análise das manifestações ocorridas no Brasil naquele período.

Mais recentemente, nos seminários de investigação das cadeiras de mestrado em Relações Internacionais, do IURJ/Universidade Autônoma de Lisboa, tive acesso mais direto à obra de Manuel Castells.

domingo, 9 de dezembro de 2018

A cidade esquecida



Palmira, Menphis, Cartago, Pompeia, Hattusa e Petra são alguns exemplos de cidades esquecidas ao longo da História – ou porque foram abandonadas, saqueadas, ou porque ruíram em disputas políticas e guerras. Alcântara, no Maranhão, é o arquétipo de monumento no Brasil solenemente esquecido pelo establishment. Apesar de invisível aos olhos do poder, ignorada, a cidade, desde meados dos anos 1980, abriga um sítio para experiências espaciais que frequenta, com inquieta regularidade, o noticiário nacional e internacional.

A pauta do momento é o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas que o governo brasileiro ensaia retomar com os Estados Unidos a pretexto da comercialização de satélites de fabricação norte-americana pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Parceria semelhante foi assinada entre os dois países em 18 abril de 2000, mas em 2002 o Congresso brasileiro rejeitou-a alegando ameaça à soberania nacional.

Pelo acordo de 2000, conforme relatório técnico dos parlamentares, os Estados Unidos teriam “o direito” de controlar áreas restritas dentro da base de Alcântara. Para entrar nessas áreas, qualquer brasileiro, inclusive o presidente da República, dependeria de autorização prévia dos norte-americanos. E mais: o Brasil não poderia ter acesso aos contêineres de “equipamentos” desembarcados dos Estados Unidos.

Nem mesmo inspeções alfandegárias seriam permitidas. Os escombros de eventuais lançamentos fracassados não poderiam ser resgatados, estudados ou fotografados pelo governo brasileiro. Ou seja, pelo teor daquele acordo de salvaguardas, Alcântara, com sua localização estratégica, a 2º18' sul da linha do Equador, de frente para a África Ocidental, facilmente viraria um novo Porto das Pérolas.

As negociações foram suspensas, porém, quando, em 22 de agosto de 2003, uma grande explosão seguida de incêndio na plataforma de lançamento de Alcântara destruiu o foguete VLS-1 e provocou a morte de 21 técnicos civis envolvidos no programa espacial brasileiro.

Somente no ano passado o governo formalizou novo protocolo de intenções com os Estados Unidos para exploração da base maranhense. Em maio último, 15 anos após o acidente, os Estados Unidos retomaram as negociações para uso do CLA, em contraproposta enviada ao Palácio do Planalto. Após as eleições no Brasil, já houve acenos e prévias garantias do presidente eleito Jair Bolsonaro para a efetivação do acordo.

Alcântara não deu certo como cidade antiga. A aristocracia tombou falida e a cidade, com seus andrajos de pedra, casarões silenciosos e fantasmas indolentes, aguarda a visita de quem um dia ainda virá: ou o imperador de fancaria ou um astronauta de faiança ou um turista redentor.

Na Alcântara antiga os escombros gemem na rua da Amargura, idosos protegem a moleira na paisagem desenhada pelo sol intenso, quilombolas de Frechal resistem numa trincheira imaginária e mulheres cozem doces de espécie para transeuntes improváveis. Sob a terra cálida, velhos tupinambás velam o monumento à indiferença coletiva.

Como cidade do futuro, Alcântara ainda não acertou a rota. A parceria com os ucranianos no projeto Cyclone Space resultou em grande prejuízo financeiro ao programa espacial brasileiro e, em 2011, foi parar na teia internacional do WikiLeaks.

Alcântara tenta dar certo agora como o novo Eldorado para os americanos; feito uma Fênix que rapidamente se refaz das cinzas de um foguete; ou – quem sabe! – qual uma Troia e seu grande cavalo escondido entre as ruínas da praça, o presente majestoso pronto a nos surpreender.

Quem, ao fim da próxima corrida espacial, vai lembrar de Alcântara? Talvez uma caixeira branca, de olhos azuis, com seu tarol de ladainhas ao Divino. Em inglês.

(foto: portal penaestrada)