terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sarrar, verbo imprescindível


Não viveu quem passou por essa vida sem ter sarrado. Não viveu quem não experimentou ainda que fosse aquele sarro às pressas, interrompido ao meio por um susto, um flagrante, uma luz acesa. Sarrar é orgânico. Vem de muito longe. Está lá no velho Aurélio que, mesmo com aquele jeitão antiquado de explicar as coisas, conta que sarrar é uma espécie de bolinação da humanidade que vem desde a civilização pré-romana. 

 

Nossos ancestrais enchiam a cara de vinho e aos poucos iam se encostando uns nos outros até passarem a noite em rituais de sarro. 

 

Muitos de vocês já nasceram vítimas de um sarro. Sarro mal calculado, é verdade! Coisa de amadores! Porque o sarro mesmo mora na pureza humana. Não tem penetração! É algo quase bíblico e regulado por um código de ética que te impede de perder a cabeça mesmo nas circunstâncias mais tentadoras.  

 

Sarro não tem absolutamente nada a ver com preliminares. Sarro é sarro. E ponto. Romeu e Julieta não foram além do sarro, mas sarraram tanto que acabaram mortos, reféns da incompreensão de suas famílias e da má vontade de Shakespeare. Cleópatra, a mocreia egípcia, sarrou com metade da população da Antiguidade. Ironicamente, morreu de uma picada.

 

Sarro e morte sempre caminharam próximos, mas não necessariamente juntos. Sarrar sempre foi perder a noção do perigo, correr riscos, desde os tempos de Madame Bovary, Anna Kareninna e Capitu. Sarro é mais tradição que traição.   

 

Sarrar é uma arte que exige dos incautos certas habilidades, como controle emocional e coordenação motora – e o nível intermediário de um curso de contorcionismo, claro. Sarrar dentro de um Fusca, por exemplo, em empreitadas malsucedidas poderia causar danos irreversíveis ao corpo. Conheci pessoas que já chagaram ao pronto-socorro com o pé enganchado no porta-luvas ou uma alça do intestino presa no freio de mão.



O tema parece saudosista, mas é que o sarro anda meio esquecido pelas novas gerações. O sarro raiz, aquele no pé do muro ou debaixo da mesma goiabeira onde Damares viu Jesus pela primeira vez, corre o risco de extinção. 

 

Sarrar era o prelúdio do sexo. Mas não era o sexo. Era o estado da arte do tesão. O sarro tinha algo a ver com refinamento do humor, euforia da carne, fome do corpo. Sarrava-se no corredor da escola, na cantina, no quarto da prima, no escuro do cinema, no portão da casa da namorada, naquele mergulho a dois na piscina ou no mar. Sarrava-se com as amigas do colégio vestidas naquelas calças de tergal cafonas.

 

Todo mundo sarrava. Sarrar era fazer poesia a dois – na vertical, na horizontal – e deixar o cheiro de versos lúbricos impregnados na roupa. Feito epidemia.

 

Hoje não há mais sarro. Eles chamam de pegação. Pegação é o sarro Nutella, sem criatividade ou rumor! Não é a mesma coisa. Sarrava-se na base do consentimento. Pegação é quase assédio! 

 

Sarro é menos pé no chão. Sarro é mais Vera Fischer e menos Regina Duarte!

 

Sarrar nunca foi tão humano e necessário como nos dias atuais! Um ato revolucionário capaz de curar almas sebosas, intolerantes! Um dia, quem sabe, pentecostais arrependidos ainda hão de pregar nas redes sociais a redenção do sarro. 


Porque o sarro salva!     


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