terça-feira, 30 de abril de 2019

O dia em que o surfe parou


Gustavo Costa e Eduardo Júlio conversam sobre acidente com tubarão ocorrido em 1992 (foto: Joedson Silva)

Por Eduardo Júlio
Jornalista e poeta

Há quase 27 anos, Gustavo Costa sobreviveu a um ataque de tubarão na praia de São Marcos. O episódio marcou a história dele e a do esporte em São Luís. Para relembrar o caso, nós conversamos com Gustavo Costa e Marcelo Piu-Piu, que estavam juntos no mar na hora do acidente. Eles relataram com detalhes o fato e recordaram outros momentos da prática do surfe, nas praias de São Luís, no passado.

No dia 8 de julho de 1992, o jovem Gustavo Costa, à época com 25 anos, saiu da casa dos pais pela manhã, acompanhado do amigo Marcelo Bogéa Vaz, mais conhecido como Marcelo Piu-Piu, para surfar na praia de São Marcos, em São Luís. O que parecia ser mais um dia de sol e lazer sobre as ondas se transformou num episódio trágico, que marcou para sempre a sua vida e a história do surfe da capital maranhense.

Nascido no Rio de Janeiro, Gustavo era um jovem de classe média que se mudara para a ilha de São Luís dez anos antes. Seu pai trabalhava na Alcoa, multinacional de extração de alumínio, que se instalou no Maranhão no começo dos anos 80. Desde os tempos do Rio, a prática do surfe era a principal atividade desportiva do carioca.


Gustavo e Piu-Piu relembrando os bons tempos do surfe (foto: Eduardo Júlio)

Em São Luís, o surfista se deparou com ondas pouco apropriadas para a prática do esporte - se comparadas às do litoral fluminense - mas encontrou alguns jovens ávidos pelo surfe como ele, que conseguiam, com determinação e esforço, superar as limitações da natureza. Para esta turma, o hábito de pegar onda era uma atividade quase diária e a diversão era garantida.

Naquele fatídico dia, por volta das 11h, as ondas da praia de São Marcos estavam altas, convidativas para o surfe. Além disso, o mar apresentava uma cor esverdeada, algo raro em São Luís, onde as águas são, em quase todas as épocas do ano, turvas e cinzentas.

Ao chegarem à praia, Gustavo e Marcelo foram imediatamente alertados por alguns conhecidos sobre um acidente que acabara de acontecer com um surfista. A suspeita era de que a vítima, Márcio Bandeira, teria sido atacada por um tubarão e sofrido ferimentos - na verdade, o garoto perdera a metade de um dos pés. "As ondas pareciam perfeitas, e o mar estava com uma cor tão bonita, que não prestamos muita atenção ao que eles disseram e caímos logo na água", conta Marcelo Piu-Piu.

Depois de mais ou menos uma hora no mar, Marcelo estranhou a ausência de Gustavo sobre a prancha, que boiava sozinha. Em poucos instantes, o amigo reapareceu emergindo e submergindo, sendo jogado de um lado para o outro.

Gustavo havia sido atacado por um tubarão, que mordeu fortemente o seu braço esquerdo, dilacerando-o. Apavorado, perdendo muito sangue e pedindo socorro, ele foi resgatado por Marcelo e por outras pessoas que se encontravam na praia, incluindo um médico.

Às pressas, foi levado até a pista, onde rapidamente conseguiu uma carona para o Socorrão, o principal hospital público de emergência de São Luís. Na unidade, Gustavo recebeu os primeiros atendimentos. Ele sobreviveu, mas, devido à gravidade dos ferimentos, terminou perdendo o braço.

Da emergência, foi transferido para uma clínica particular, na qual permaneceu por 15 dias, em um doloroso processo de recuperação. A área do corpo atacada apresentou uma infecção e, apesar do esforço da equipe médica local, os ferimentos não cicatrizavam.

A bactéria que provocara o problema só foi identificada uma semana depois, após o envio de uma mostra do tecido para análise em um laboratório do Rio de Janeiro. "Para evitar piores consequências, tomava duas injeções especiais por dia. A primeira, ao acordar, e, a outra, na hora de dormir”, lembra Gustavo.

Ele acredita que tenha sido vítima do mesmo animal que atacara o outro jovem. “O tubarão deve ter ficado por lá rondando a praia em busca de alimento. Ao perceber a nossa presença, atacou”.

Férias

No ano do acidente, Gustavo estava residindo na Itália, na pequena comunidade de Trino, próxima às famosas e ricas cidades de Milão e Turim, no Norte do país. Na capital maranhense, ele passava as férias de julho junto à família. Um ano antes, tinha abandonado o curso de Comunicação Social no Rio, depois de estudar por quatro períodos. “Eu tinha voltado a morar no Rio, onde cursava Jornalismo. Mas surgiu a oportunidade de ir para a Itália e não pensei duas vezes. Abandonei tudo e segui rumo à Europa”.

Depois do acidente, foi obrigado a esquecer o sonho de continuar a viver na Itália e teve que se acostumar a uma nova vida no Brasil. Mas a readaptação foi rápida diante das graves consequências deixadas pelo ataque. A prática do surfe foi abandonada por ele, mas, no final do mesmo ano, voltou a ter contato direto com o mar e, em 1996, iniciou o aprendizado do mergulho. O trauma havia sido definitivamente superado.

Após a recuperação, Gustavo dividiu o tempo entre São Luís e o Rio de Janeiro, até que, em 1999, surgiu a oportunidade de sair novamente do país. Desta vez, o destino foi a cidade de Seattle, nos Estados Unidos, berço do movimento grunge, que sacudiu o rock no começo daquela década. Em terras gringas, ele permaneceu até 2010, quando retornou à capital maranhense.

Hoje, aos 52 anos, é casado, tem dois filhos: um menino de 9 anos e uma menina de 17. Empreendedor, possui um food truck, denominado Tuba Lanches, e é proprietário de um Food Park, localizado na praia do Calhau, na avenida Litorânea,por coincidência ou não em frente a um dos locais mais disputados pelos praticantes do surfe da cidade.

Calmaria

De acordo com o site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), São Luís possuía, em 1992, quase 700 mil habitantes. Era uma cidade com aspectos provincianos e com algumas opções de lazer para os mais jovens. Havia um shopping, cinco ou seis cinemas, alguns bares, restaurantes e boates.

A capital possuía praias relativamente limpas (a especulação imobiliária ainda não havia ocupado o litoral da ilha) e, nos finais de semana, o banho de mar era uma das principais opções de lazer da população, principalmente do público jovem.

O surfe era praticado desde o final dos anos 70, inicialmente na praia do Olho d’Água, onde até hoje aparecem algumas das melhores ondas. Mas o exercício, naqueles primeiros dias, exigia força de vontade, paciência, algum dinheiro e capacidade de improviso.

As primeiras lojas de surfe de São Luís só surgiram ao longo dos anos 80 - Imagination, Mano Surf e Hot Lines - em ordem cronológica. Antes disso, era difícil encontrar produtos e equipamentos para a prática do esporte. “No começo, não havia pranchas nem parafina. Tudo tinha que ser comprado fora do estado”, recorda Marcelo.

Se por um lado, a cidade carecia de infraestrutura, por outro, era muita tranquila, com poucos casos de violência, sem problemas de trânsito e muitos exemplos de respeito e solidariedade. “Muitas vezes íamos de carona, do bairro Renascença ao Olho d’Água, com prancha e tudo, e tínhamos que voltar da mesma forma. Era uma aventura, mas sempre aparecia alguém para ajudar”.

Gustavo concorda com as boas recordações do amigo em relação à atmosfera de São Luís no período. “O melhor tempo da cidade foram os anos 80. A tranquilidade era constante. Todo mundo se conhecia e havia muita confiança e companheirismo entre os jovens. Sempre encontrávamos amigos e conhecidos em qualquer lugar que íamos”.

Um dos primeiros campeonatos de surfe, realizado em São Luís, foi organizado justamente por Gustavo Costa e pelo irmão dele, por volta de 1985. O evento teve como cenário a praia de São Marcos, quando a área ainda não possuía via de acesso. “Nós fizemos o campeonato de forma improvisada. Era difícil o acesso ao São Marcos, mas conseguimos colocar um caminhão com um som e realizamos o encontro. Foi tudo muito divertido”, lembra.

Em 1992, no ano do acidente, a praia de São Marcos já tinha se tornado o principal ponto do esporte na capital. Antes quase inacessível, passou a ser muito frequentada após a terraplanagem da via que, dois anos depois, se tornaria a avenida Litorânea. Naquele tempo, o local também chegou a ser chamado de praia da Marcela, denominação que, na atualidade, parece devidamente esquecida.

Pioneiros

A primeira geração de surfistas de São Luís foi formada por nomes como Coelho, Zé do Valle, os irmãos Fábio e Pablito, Cícero e Cabeleira, pioneiros do esporte nos anos 70. Em seguida, figuraram o lendário Roberto Castro (Cachaça), João Marcelino, Nestor e Rogério Piolho. E foi justamente no meio desta geração que surgiram Marcelo Piu-Piu e, logo depois, Gustavo Costa. Também não se pode esquecer do jovem Bacana, que foi buscar a profissionalização em Santa Catarina, no começo dos anos 90.


Piu-Piu pegando uma onda no auge do surfe no Maranhão (foto: arquivo pessoal de Marcelo Piu-Piu)

“No início, éramos poucos. Inclusive, teve um curto espaço de tempo em que havia somente três surfistas na cidade: eu, o Billy e o Cachaça. Mas, no início dos anos 90, o surfe estava em alta. Centenas de jovens praticavam o esporte. Havia campeonatos, alguns atletas promissores e outros de grande talento”, conta Marcelo Piu-Piu, que naquela altura já era um dos mais respeitados surfistas de São Luís, tendo conquistado importantes troféus dentro e fora do Maranhão.

Hoje, aos 53 anos, Marcelo permanece como uma das principais referências do surfe na cidade, e divide a paixão pelas ondas – surfa quase todos os dias - com as atividades da Fisioterapia, área que escolheu para atuar profissionalmente.

Repercussão

O triste episódio com Gustavo Costa ganhou destaque nacional, com a veiculação de matérias sobre o assunto no Jornal Nacional e no Jornal da Globo, além de reportagens nas emissoras de TV e jornais impressos de São Luís. O assunto também foi registrado em importantes revistas nacionais de surfe, como a Trip e a extinta Fluir.

Especialista em tubarões, o biólogo Otto Bismarck Gadig, professor da Universidade Federal da Paraíba, veio à ilha, na semana posterior ao ataque, analisar o fenômeno da aproximação deste peixe da área de arrebentação.

Na época, algumas teorias foram levantadas sobre a causa do problema. Uma delas apontava a intensa movimentação de navios, no canal da baía de São Marcos, para o Porto do Itaqui. Resíduos de alimentos despejados no mar atrairiam os tubarões e as correntes marinhas conduziriam esses peixes até as praias.

Logo depois dos casos na capital maranhense, tubarões começaram a vitimar surfistas em Recife, onde muitos foram atacados. Na capital pernambucana, até hoje o problema ameaça os praticantes. Lá, surfar continua sendo uma atividade de intenso risco. Felizmente, em São Luís, não houve mais registros de ataques a surfistas.

Ruptura

A repercussão do incidente com Gustavo foi grande em São Luís. O caso sensibilizou a população, especialmente os jovens, e abalou profundamente a geração de surfistas da época. Dali em diante, o surfe praticamente deixou de ser praticado. Poucos se atreviam a entrar no mar. “O surfe parou e só voltou quando o episódio caiu no esquecimento e uma nova geração começou a ocupar as praias”, ressalta Gustavo.


Gustavo nunca perdeu o contato com a prancha, mesmo depois do acidente (foto: Joedson Silva)

Marcelo também confirma a ruptura na história do esporte na cidade. “Depois do acidente, não tinha mais quase ninguém com prancha na água. As pessoas ficaram com medo. Demorou algum tempo para o surfe voltar com regularidade e com um número significativo de atletas”.

Ele acrescenta que atualmente a quantidade de praticantes é muito grande. “Vivemos um momento especial com o surgimento de uma nova geração. Há muitos jovens pegando onda hoje em dia, dando continuidade à prática do surfe”.

Rádio

Na época do acidente, o jornalista que vos escreve era produtor musical do programa Ondas & Lombras, que ia ao ar todas as noites de sexta-feira, pela Mirante FM, sendo apresentado pelo cantor, compositor e jornalista Jorge Thadeu, que hoje reside em Salvador.

O Ondas & Lombras tocava rock e era dedicado ao surfe local. Todas as semanas um surfista da ilha era entrevistado no programa. Daí, o acidente com Gustavo repercutiu por, pelo menos, duas edições. Inclusive, o biólogo Otto Bismarck Gadig foi um dos entrevistados e fez algumas considerações sobre as supostas causas do ataque dos tubarões.

Assim como parte da juventude de São Luís da época, nós que produzíamos o Ondas & Lombras ficamos muito tristes e perplexos com o ocorrido. Tendo ou não motivo para continuar existindo, o programa deixou de ir ao ar no final de 1992.

18 comentários:

  1. Bela matéria, Edu! Aquela época de volta numa história dramática que marcou a ilha. Seu texto é de quem surfa nas ondas da palavra. Abraço!

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  2. Já vi o Gustavo pela Av. Litorânea e jamais poderia imaginar o ocorrido e o seu exemplo de superação! Comentei essa semana com minha namorada do baixo número de ataques em nossas praias, só tinha conhecimento de um fato que meus pais relataram-me e hoje, encontro esse texto! Parabéns pelo texto.

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  3. Excelente reportagem autoral do jornalista Eduardo Júlio.

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  4. Parabéns Eduardo, texto primoroso.
    Pra nós que vivemos o surfe como cultura e estilo de vida, foi uma ruptura gigantesca que ainda não conseguirmos recuperar.

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  5. Meu pai Ney Cutrim me falou sobre esse acidente e disse que nesse dia ele estava na praia


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  6. Realmente, praticamente todo mundo parou de surfar nessa época, por muito tempo

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  7. Parabéns, Eduardo pela belíssima repostagem, neste dia do incidente estava no olho d’água surfando com outro amigos. O Gustavo que além de uma grande surfista era também um grande jogador de vôlei, sempre estava em São Luís ele ia ao Jaguarema jogar um voleibol de altíssimo nível técnico, pois os grandes atletas da época estarem presentes nas noites esportivas, comandado pelo ilustríssimo Sr. Carlos Ribeiro, pai de 3 grandes jogadoras de vôlei do Maranhão. Pessoas como você Eduardo que faz um exemplo a ser seguido por muitos.

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  8. Mergulhei com o Gustavo, no Parcel Manuel Luíz, em 1998. Operação Dive Parcel. Excelente mergulhador. Um forte abraço a ele!

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  9. Guga Tuba que figura encantadora. Ser humano incrível. Adorei conhece -lo. O mais incrível é que ele adora tubarão.

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  10. Conheci o Gustavo pessoalmente desde a época que ambos trabalhavamos no shopping , um cara fenomenal, de bem e soube do acidente com o tubarão. Bom saber que ele esta na ilha.

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  11. Márcio Bandeira de Melo, meu primo.
    Foi trágico, contudo, hoje tá bem, morando ainda no Rio e com uma bela família.
    Os tubarões estão em seu habitat natural, puro instinto animal pela sobrevivência. Não são vilões, são vítimas da ambição humana, da caça e matança predatória para sourvenirs e comércio descontrolado.
    Vejam o documentário exibido pela Netflix.

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  12. Agora sim fiquei sabendo a verdadeira história sobre o único ATAQUE que ocorreu na ilha .👏👏

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    1. Na verdade foram 3 ataques. Além de Gustavo, o surfista Márcio Bandeira e o Bodyboarding Marcos André tiveram lesões graves

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  13. Vale lembrar que além de Gustavo, tiveram mais dois ataques: o surfista Márcio Bamdera e o Bodyboarding Marcos André, ambos com lesões graves

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  14. Aloha! Sou Aníbal mas nos anos 70 na praia do Olho D'água era conhecido como BAIANO fiquei muito feliz de relembrar os nomes da galera do surf da aquela época apenas pra enriquecer os dados do Surf Maranhão o 1° campeonato de surf foi feito por mim na praia do Olho D'água onde o 1° foi Roberto Cachaça e 2° eu "baino" teve uns 10 participantes e 03 troféus coisa de amigos de surf do bairro foi minha a 1° oficina de prancha e um dos primeiros skates da cidade estou com 62 anos hoje sou salva vidas em um município da Bahia se a rapaziada das antigas quiser da um alô!Valeu.

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  15. Eu lembro dessa episódio, me recordo de estar na água com outro surfista na época se não me engano alguém da família Marão,e aí veio uma Kombi do s Bombeiros pedir pra gente sair e depois uma lancha tbm apareceu mais a frente. Nós saímos e fomos informados que tinha ocorrido possíveis ataques de tubarão. Me lembro que o bombeiro falou q uma mulher tbm tinha sentido uma fisgada no pé com ferimentos leves mas ninguém suspeitava de tubarão até o ocorrido com o rapaz.
    Por incrível que pareça eu o vi na praia no domingo e ele estava com uma prancha grande e colorida. Nunca tinha visto um modelo daquele em São Luís.
    Eu costuma pegar algumas ondas no São Marcos na enchente e na vazante descia para a praia ďo olho dagua.
    Nesse dia preferi ir direto para o olho dagua pois estava menos o mar estava mexido.
    Quando cheguei em casa vi no jornal a tragédia, inclusive com mau gosto publicaram a matéria com o braço do rapaz numa mesa ou pia sei lá.. num take rápido.. mas muito inapropriado pela situação.
    Enfim graças a Deus ele está vivo.
    Infelizmente o mar é deles e as vezes eles atacam mesmo..
    Morei em Recide de 2013 a 2019 e vi vários ataques de adolescentes a idosos e com muitos casos de falecimento. Lá sim a história é de ataques fatais.. graças a Deus em São Luís ninguém morreu.
    Deus abençoe a todos

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