sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Livro de editora maranhense é um dos vencedores do Prêmio de Literatura da Biblioteca Nacional


O livro “Gullar Gullar”, de autoria de Marcos Vinícius Quiroga e publicado pela Clara Editora em 2010, foi um dos vencedores do Premio de Literatura da Biblioteca Nacional, divulgado esta semana. A obra, que recebeu o patrocínio da Fundação de Cultura da Prefeitura de São Luís (FUNC) e foi idealizada pela escritora Arlete Nogueira da Cruz, traz poemas que retratam um profundo conhecimento da vida e da obra do poeta maranhense Ferreira Gullar, que no ano passado completou 80 anos e foi o vencedor do Prêmio Jabuti de 2011 com o livro “Em alguma parte alguma”.

“Gullar Gullar” ficou em segundo lugar na categoria “Poesia – Prêmio Alphonsus de Guimaraens”. Em primeiro lugar ficou o pernambucano Daniel Lima, de 95 anos, com o livro “Poemas” (Companhia Editora de Pernambuco). O terceiro lugar foi para Cláudia Schroeder, pelo livro “Leia-me toda” (Dublinense). O vencedor de cada categoria receberá R$ 12,5 mil — Alberto Mussa ganhou o prêmio de melhor romance, e Sérgio Sant’Anna, de livro de contos. A cerimônia de premiação será realizada na próxima quinta-feira, dia 15, às 19h, na Biblioteca Nacional.

O poeta Alexei Bueno, que integrou o júri de poesia com Antônio José Jardim e Castro e Frederico de Carvalho Gomes, disse que a escolha de Lima foi unânime, além de surpreendente por conta do desconhecimento de todos sobre o poeta. O júri recebeu cerca de 80 livros de poesia, publicados em 2010 e 2011, entre eles “Em alguma parte alguma”, de Ferreira Gullar.

A obra “Gullar Gullar” foi lançada na Feira do Livro de São Luís do ano passado, com a presença do autor. Marcos Vinicius Quiroga é poeta, professor, crítico e ensaísta. Doutor em Literatura Brasileira e membro da Academia Carioca de Letras e do Pen Clube do Brasil, Quiroga é detentor de importantes prêmios nacionais. “A poesia de Quiroga revela uma obra em ascensão, seja pela incessante renovação da busca temática, seja pelo persistente afinco com que se debruça sobre a necessidade de renovar sua expressão formal, em grande medida, avessa aos cânones consagrados”, avalia o escritor e crítico Cláudio Aguiar.

A escritora Arlete Nogueira da Cruz diz que o prêmio a Quiroga é um reconhecimento também a um trabalho de qualidade realizado no Maranhão, pela Prefeitura de São Luís e pela Clara Editora. “O livro traz uma fidelidade que se amplia para além das circunstâncias através das quais o poeta opera o próprio canto, isto é, onde a vida em seus versos palpita indelével em verdade e beleza”, frisa.

A lista completa dos premiados:

Poesia - Prêmio Alphonsus de Guimaraens
1° lugar: Daniel Lima, com "Poemas" (Companhia Editora de Pernambuco)
2º lugar: Marcos Vinicius Quiroga, com "Gullar Gullar" (Clara Editora)
3º lugar: Cláudia Schroeder, com "Leia-me toda" (Dublinense)

Romance - Prêmio Machado de Assis
1° lugar: Alberto Mussa, com "O senhor do lado esquerdo" (Record)
2º lugar: Moacyr Scliar, com "Eu vos abraço, milhões" (Companhia das Letras)
3º lugar: Rubens Figueiredo, com "O passageiro do fim do dia" (Companhia das Letras)

Contos - Prêmio Clarice Lispector
1° lugar: Sérgio Sant’Anna, com "O livro de Praga – Narrativas de amor e arte (Companhia das Letras)
2º lugar: Alessandro Garcia, com "A sordidez das pequenas coisas" (Não Editora)
3º lugar: João Anzanello Carrascoza, com "A vida naquela hora" (Scipione)

Ensaio literário - Prêmio Mário de Andrade
1° lugar: Charles Kiefer, com "A poética do conto – De Poe a Borges: um passeio pelo gênero" (Leya)
2º lugar: Rita Rios, com "Poemas e pedras: A relação entre a escultura e a poesia partindo de Rodin e Rilke" (Edusp)
3º lugar: Ricardo Souza de Carvalho, com "A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes" (Editora 34)

Ensaio social - Prêmio Sérgio Buarque de Holanda
1° lugar: Marisa Midore Deaecto, com "O império dos livros: instituições e práticas de leitura na São Paulo oitocentista" (Edusp)
2º lugar: Ronaldo Vainfas, com "Jerusalém Colonial – Judeus portugueses no Brasil holandês" (Civilização Brasileira)
3º lugar: Vera Lúcia Bogéa Borges, com "A batalha eleitoral de 1910 – Imprensa e cultura política na Primeira República" (Editora Apicuri/Faperj)

Tradução - Prêmio Paulo Rónai
1° lugar: Luís Carlos Cabral, com "Malá Strana: vestígios de Praga", de Jan Neruda (Record)
2º lugar: André Vallias, com "Heyne, hein? Poeta dos contrários", antologia poética de Heinrich Heine (Perspectiva)
3º lugar: Sergio Tellaroli, com "Jakob von Gunten – Um diário", de Robert Walser (Companhia das Letras)

Projeto gráfico - Prêmio Aloísio Magalhães
1° lugar: Gabriela Castro, com "Apreensões", de Bob Wolfenson (Cosac Naify)
2º lugar: Elaine Ramos, com "Museu do romance da eterna", de Macedonio Fernández (Cosac Naify)
3º lugar: Jonathan Shiguehara Yamakami, com "Eu vi um pavão", de autoria desconhecida (Scipione)

Literatura infantil e juvenil - Prêmio Glória Pondé
1° lugar: Nelson Cruz, com "Alice no telhado" (Comboio de Corda)
2º lugar: Manu Maltez, com "Meu tio lobisomem" (Peirópolis)
3º lugar: Luís Dill, com "O estalo" (Positivo)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sobre o mar, a brisa e o asfalto da cidade

Transcrevo aqui as minhas palavras de gratidão pelo recebimento, ontem, na Câmara Municipal, do título de Cidadão de São Luís:

Há lugares por onde apenas passamos, e deles guardamos as lembranças de uma bela paisagem, da hospitalidade de sua gente, do redemoinho das emoções ali vividas. Há as cidades grandes, as metrópoles de concreto e neon, as babilônias que seduzem pelo brilho de luz, incenso e vitrine. Há também as cidades imaginárias, as utopias da literatura universal, os jardins edênicos dos que têm fé e devoção, a Shangri-lá dos românticos incorrigíveis, a Atlântida dos argonautas.

Existem os lugares etéreos, da boa sorte, da felicidade, do prazer, da realização plena. Mas há cidades que são simplesmente definitivas, que nos completam, que se confundem com a nossa própria existência, pela sua gente, pela sua história, pelas tradições culturais, pela qualidade de vida que oferecem - ou pela soma de todos esses fatores. Assim é São Luís do Maranhão, cidade da qual recebo hoje, por honrosa deferência desta Casa, numa iniciativa do nobre vereador Batista Matos, o título de cidadão honorário.

Eu venho lá do sertão do Maranhão, caro vereador Batista Matos, das barrancas dos rios Corda e Mearim, da Barra do Corda da minha infância viva e bem vivida, da cidade dos canelas e guajajaras, do verso-berço de Maranhão Sobrinho, do balneário balsâmico, das cachoeiras dos índios, de Olímpio Cruz, o poeta encantador dos gentios. Embora nascido em Presidente Dutra, foi em Barra do Corda onde criei raízes, saltei de pontes, inventei brinquedos de lata, enfrentei a correnteza da sorte, esquivei-me dos castigos de casa, vendi frutas e jornal, comprei o meu primeiro ingresso no Cine Canecão, frequentei o catecismo e, como presidente do clube dos coroinhas da igreja matriz, por muitas vezes me dei ao luxo de devorar, escondido, toda a sobra das hóstias da missa do domingo.

Romper com a velha infância dos meus primeiros 12 anos, perdida no horizonte das raras escapulidas de férias, foi uma experiência quase traumática. Não, não foi a transumância, aquela migração sazonal típica dos trabalhadores da roça de cana, com partida temporária. Meus pais optaram mesmo pelo êxodo rural. Saímos de Barra do Corda no dia 24 de novembro de 1979 num empoeirado ônibus da viação Transbrasiliana. O sertão ficava para trás na fumaça da estrada longa, com suas colinas, rios e neblinas. Era o tempo de arribação para uma nova paragem.

Minha mãe, Dona Cely, a zelosa dona de casa, o ponto de equilíbrio, a razão para tudo, entendeu que o mundo era maior que a cidade inventada por Melo Uchôa, maior que as histórias contadas nos bancos da praça no crepúsculo de agosto. Sempre foi a mulher simples, de poucos estudos, mas de sabedoria invejável e muitos planos para a família. Senhora do português bem aplicado e das lições de boa conduta. Via nos estudos dos filhos na Capital o atalho para uma vida melhor, um futuro mais luminoso. Meu saudoso pai, Seu Eurípedes, foi o visionário, comerciante, homem interiorano, desses bravos provedores que de tudo tentou na vida para alimentar a família, para alimentar os sonhos da esperada bonança que, acreditava, não tardaria. Pai amoroso e resignado, preferia as horas calmas do lamento vespertino dos sertanejos ao embalado contratempo dos ponteiros da cidade grande. Resistiu à mudança, mas foi convencido de que da janela o tempo não acenava duas vezes. As oportunidades caducavam.

No mesmo dia 24 de novembro a família chegava a São Luís. Eu era o moleque ensimesmado, de olhar baixo, assustado com o tamanho de tudo o que via ao redor pela vidraça do ônibus, cabelos ainda embaraçados e queimados pelo sol forte dos demorados banhos de rio, cheirando a mato e poaca da estrada.

A primeira impressão, o primeiro endereço, o primeiro susto. São Luís era o porto dos retirantes do interior. Os ônibus barulhentos demais pareciam invadir como esmeris o velho casarão 609 da Rua de Santana. A cidade para mim era como aquela via estreita, de trânsito amalucado e de calçadas suspeitas, pronta a explodir em tumulto de gente e automóveis apressados que os meus olhos jamais tinham alcançado.

O segundo susto era a cidade caída, a meia cidade que restou da rebeldia de setembro de 1979. Como na poesia de T.S. Eliot, não abril, mas novembro daquele ano, quando aqui cheguei, ficou na lembrança como o mais cruel dos meses. Ali onde eu estava para inaugurar o futuro, o eldorado desenhado nos planos da família, nada mais havia para mim senão a terra desolada: ruas miúdas, lojas saqueadas, pedaços de placas de vidro e acrílico espalhados pelo chão, semáforos destruídos, policiais à espreita. Cenário de fim de uma guerra.

Senhor Presidente, Senhores Vereadores,

Há 32 anos comecei a decifrar a cidade, e até hoje ela se veste de esfinge num recorte barroco de variadas leituras e interpretações. Depois de sustos e decepções da chegada, três coisas chamaram a atenção do menino curioso, sem viagem alguma na bagagem, referências reduzidas apenas às poucas quadras do Maranhão de dentro: o mar, a brisa que dele soprava e o asfalto.

O mar era aquela imensidão de águas turvas, sem cores definidas, um rio sem fim que me permitia namorar o horizonte e, se bem navegado, até ajudava a tocar o céu com as mãos. Mar e rio então eram a mesma coisa? Passavam por baixo da ponte do São Francisco e, de uma hora para a outra, desapareciam? Simplesmente viravam lama, e eu era um menino recém-chegado e desconhecia os segredos da maré vazante. As interrogações brotavam diariamente. Prosseguem até hoje no desassossego das horas. Apenas dão trégua porque, como nos aturdem as muitas vozes do poeta, “a manhã apaga as perguntas da noite”.

Do mar também vinha a brisa leve e envolvente que a infância até então não me mostrara. O aquecimento global era uma miragem. O vento ainda balançava forte a copa das árvores e enchia de preguiça as tardes de São Luís. E tinha mais força e velocidade nas esquinas dos prédios altos como o Caiçara, na Rua Grande, e o edifício do Banco Estado do Maranhão, na Rua do Egito. Nas calçadas, as banquinhas de quebra-queixo tremulavam e deixavam mais doce o cotidiano da freguesia passante.

E em São Luís havia o asfalto. Diferentemente das ruas calçadas de blocos de pedra no interior maranhense de outrora, era o piso negro das ruas que nem sempre nos deixava jogar futebol descalço. Quente e abafado, o asfalto expunha a cidade em permanente conflito com os paralelepípedos do passado e as suas pedras de cantaria reluzentes.

Da Rua de Santana para a Rua da Alegria! Até a mudança de vez para a São Luís moderna, desbravei o centro da cidade como um bandeirante. Aprendi a amar cada recanto, ladeiras, mirantes e sobradões. Por diversas vezes cruzei com a alma da cidade presa ali entre os lençóis das sacadas da Praia Grande; sonhei com serpentes e carruagens de Nha Jança na madrugada; e me deixei hipnotizar pela geometria dos seus azulejos coloniais. Senti o chão das ruas de São Pantaleão, Santaninha, da Paz, do Passeio, dos Afogados, das Hortas, do Mocambo, do Alecrim e do Coqueiro. Joguei bola de meia na Praça Odorico Mendes e andei de mãos dadas com a primeira namorada pela Praça Gonçalves Dias. Levantei bandeiras estudantis na Praça João Lisboa e brinquei de fofão na Praça Deodoro.

Os encantamentos se multiplicaram com o peso do tempo. E soube me adaptar, me transformar num cidadão da cidade quase que por mimetismo, sem deixar rastros. Não por negar a minha origem, mas por envolvimento descontrolado. Num dos trechos do discurso do índio Japiaçu, ao saudar a chegada dos franceses a São Luís, transcrito nos relatos do Padre Claude d’Abbeville, o líder tupinambá vaticinava: “Quando te acostumares aos nossos víveres, acharás que a nossa farinha não difere muito do teu pão”.

Acostumei-me também com as experiências e encontrei semelhança nas sutis diferenças regionais. Misturei o pão francês com a farinha dos índios, o tambor dos crioulos e as especiarias lusitanas e holandesas até me entregar de vez ao arroz de cuxá e ao guaraná Jesus.

Os caminhos foram longos; as lutas, nunca veladas.

Conhecendo a sua história, bebendo na fonte da sua poesia, aprendi a amar São Luís como se aqui estivesse nascido. Descobri ainda menino os cantores e trovadores, também me fiz um apaixonado pela cultura da terra, vi-me preso ao visgo da ilha, ao magnetismo deixado pelos xamãs da velha aldeia. Mas jamais ousei me apresentar como são-luisense. Porque eu não fui, porque eu não era, embora aqui morando por 32 anos, e sem qualquer plano ou projeto de partida.

Já se vão mais de três décadas. Tempo suficiente para criar e cultivar uma rede de amigos. Amigos sinceros, fraternos, leais e, sobretudo, generosos. Amigos que, de generosidade desmedida, caminharam lado a lado, dividiram pelo caminho as alegrias e as preocupações, sofreram juntos e conquistaram comigo todas as coisas boas da vida. São laços que não se desfazem, que não se apagam.

Em São Luís conheci Adriana, o amor da minha vida, e aqui nasceram os meus maiores tesouros, os filhos igualmente amados Maria Clara, João Vítor e João Guilherme. Como, então, não amar essa cidade? Como não me emocionar ao receber o título de cidadania pouco mais de um mês antes da cidade completar os seus 400 anos de fundação? Posso dizer, com a mais sincera humildade, que também faço parte dessa história. No começo de tudo, como habitante espectador. Depois, como agente dedicado, testemunha, observador e relator da sua história recente. E, agora, como Cidadão de São Luís, ainda mais comprometido com a nossa cultura e o nosso patrimônio.

Os títulos de cidadania representam enorme responsabilidade a quem os recebe. Tenho plena consciência dos deveres e das obrigações que assumo nesta data memorável com aqueles que para sempre serão meus conterrâneos. Estejam certos de que tudo farei para continuar digno da grande honra que me concedem.

Antes de encerrar as minhas palavras, deixo aqui registrada a minha gratidão aos que estiveram e estão sempre ao meu lado: a Deus, ao meu saudoso pai Eurípedes, à minha mãe Cely, aos meus irmãos Eucélia, Sônia e Socorro. Ao meu irmão Antônio Carlos, que infelizmente não pôde vir a este evento, mas que de longe empresta o seu carinho. Com eles, que também não nasceram em São Luís, compartilho esta homenagem. À minha mulher Adriana, meus filhos e meu enteado Pedro Igor; aos meus inúmeros familiares, amigos de todas as horas; ao primo-irmão Pergentino Holanda, com quem muito aprendi os mistérios da fé nas palavras. Aos amigos de jornada na Comunicação Social, essa área vasta de profissionais do rádio, da TV, dos jornais, da internet e da publicidade e propaganda. Aos amigos do Dom Bosco, da Caixa, do Tribunal de Justiça, do jornal O Estado do Maranhão e da Clara Comunicação.

O meu agradecimento especial ao vereador Batista Matos, jovem lutador, cioso, como poucos, do papel social do político moderno, integrado. Cidadão de muitas lutas por uma São Luís melhor, espírito conciliador, conhecedor da importância da comunicação, amante do esporte, Batista Matos tem honrado o seu mandato nesta Câmara Municipal com uma atuação firme, destacada e com pronunciamentos sempre contundentes.

Agradeço, por fim, a presença de todos que aqui vieram dividir comigo este momento.

Ao presidente Isaías Pereirinha e demais vereadores desta Casa, obrigado pela homenagem.

Tenham a certeza de que este título muito me alegra, emociona e envaidece. Esta data ficará gravada indelevelmente em minha memória, porque vai muito além da sua simbologia estampada na folha de papel.

Para encerrar, deixo aqui os versos do meu amigo poeta José Chagas, que já foi vereador e funcionário desta augusta Casa e sobre quem tive o privilégio de escrever um dos meus primeiros livros:

“Sou um
Entre um milhão
Numa cidade de quatrocentos anos
E tiro da manhã o que me toca
De sol o que me cabe
De ar o que é necessário
Para manter-me sentado
Sobre lascas de solidão
E pedras de silêncio quebrado
Pela anunciação do dia”

Muito obrigado.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Aceito seu coração



A música começa com um verso sereno, suave como um final de tarde de sábado na praia: “Eu não pensava que você viesse pra ficar”. E depois a balada vem inteira, sem rodeios, tomando de assalto o ouvido com tiradas do tipo “em cada dia quero ver de novo renascer/ o amor que nunca mais senti”. É assim mesmo, de tirar o fôlego, a maranhense Rita Ribeiro interpretando “Aceito seu coração”, música de um cara chamado Puruca gravada inicialmente por Roberto Carlos em 1969.

Não há exagero. “Aceito seu coração” é uma pérola aos românticos declarados, incorrigíveis. Sem esforço algum, a voz de Rita Ribeiro alcança uma simplicidade que encanta. A regravação da música pode ser vista num belo videoclipe perdido no oceano do Youtube, ali postado desde 2008. Vale o bilhete de embarque. Dirigido por Luciano Pérez e Jean Wyllys, aquele que venceu o BBB e depois se elegeu deputado federal, o videoclipe tem a medida certa da música, meio retrô, meio casual. O filme é uma elegia desgovernada pelo mar do Rio de Janeiro, alternando com a paisagem dos transeuntes da zona sul e com um cenário caseiro misturando vinhos, incensos, iPods e fotografias em sépia.

“Aceito seu coração” deve ser incluída no próximo CD de Rita Ribeiro. É música pra ouvir, virar pro lado e beijar na boca, como a rigor deve ser a utilidade das baladas românticas. Ou pra ouvir no carro, povoar o cinzeiro, rabiscar um desenho qualquer no papel com a cabeça nas alturas, andar na calçada com o fone no ouvido, pincelar umas letras, escrever uma carta, pendurar um quadro na parede, rever o porta-retrato, beber uma ideia...

A música não é de Roberto Carlos, mas o “Rei” tem dessas manias: deixar com a voz um espólio de canções simples que atravessam o tempo e se misturam com facilidade ao cotidiano. O disco de 1969 tem ainda músicas antológicas, como “Sua estupidez”, “Não vou ficar”, “As curvas da estrada de Santos” e “As flores do jardim da nossa casa”.

Não é uma música tristonha do tipo fossa ou dor de cotovelo, mas uma canção resignada, bem resolvida, que embala com sutileza qualquer romance estremecido, adormecido, e sacoleja corações distraídos. Você pode não acreditar. Apenas sinta.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Constituição da França Equinocial

Oficialmente instalados em São Luís no dia 8 de setembro de 1612, com a fundação do Forte de São Luís, os franceses não tardaram a criar o primeiro documento que regeria a nova colônia. No dia 1º de novembro daquele ano, Daniel de La Touche, Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, e François de Razilly assinaram o documento denominado Leis Fundamentais da Colônia da França Equinocial. O texto tem um valor histórico incomensurável e é considerado por alguns como a primeira constituição das Américas. A Constituição da França Equinocial é, portanto, uma espécie de registro de nascimento de São Luís, com regras severas que estabeleceriam a convivência harmoniosa entre os ocupantes da terra nova e os nativos tupinambás.

As leis fundamentais são especialmente cuidadosas, pelo menos no papel, com os índios e os padres capuchinhos. Para tanto, estabelecem nas primeiras linhas a obediência e respeito a Deus e instituem a religião Católica, Apostólica e Romana para os silvícolas. Em um dos trechos do documento, os emissários da corte francesa ordenam que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, “pois seria isso não só a ruína da alma do cristão, mas também a da colônia”. Igual punição seria atribuída ainda aos que violassem as mulheres solteiras da colônia.

Atos desonestos praticados contra as filhas dos índios – o que provavelmente seria o abuso sexual - transformariam o infrator, na primeira tentação, em escravo na colônia por um período de um mês. Na segunda tentação, seria amarrado com ferro aos pés por dois meses. Na terceira vez, estaria sujeito ao julgamento que a missão entendesse como justo – o enforcamento, por exemplo.

A pena de forca, aliás, era atribuída a quem cometesse furto pela segunda vez – em casos de “réu primário”, o infrator era açoitado ao pé da força, ao som da corneta, e condenado à suspensão de salários e outros benefícios por um ano. Acaso o furto fosse praticado por empregado doméstico, ainda que pela primeira vez, a forca era o caminho natural.

Leia a íntegra do documento:

Leis Fundamentais da Colônia da França Equinocial

Em nome de Sua Majestade, nós, Daniel de La Touche, Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, François de Razilly, também Cavaleiro, Senhor do dito lugar e de Aunelles, procurador do alto e poderoso Senhor Nicolas de Harlay, Cavaleiro, Senhor de Sancy, Barão de Molle e Gros-Bois, Conselheiro de Estado e do Conselho Privado do Rei, loco-tenentes-generais de Sua Majestade nas Índias Ocidentais - tendo empreendido, por graça de Deus, o estabelecimento de uma colônia francesa no Maranhão e terras adjacentes, e a conversão dos habitantes ao cristianismo, de acordo com as intenções do Rei de França, nosso Soberano e Senhor, e de conformidade com o poder que nos outorgou Sua Majestade, como consta das cartas patentes que nos deu, e ainda em obediência à autoridade e à vontade da Rainha Regente, nossa Soberana e Senhora, julgamos necessário e conveniente, antes de qualquer outro alicerce, decretar, para esta colônia, as mais santas leis, e as mais adequadas, na medida do possível, ao nosso princípio, tendo por certo que sem a Justiça ordenada por Deus aos homens, sua imagem, não pode existir república alguma. Portanto, reconhecendo a graça, a bondade e a misericórdia demonstradas por Deus ao conduzir-nos tão felizmente a bom porto, começaremos pelas ordenações que dizem especialmente respeito a sua honra e a sua glória.

Ordenamos, pois, expressamente, a todos, quaisquer que sejam qualidades e condições, que temam, sirvam e honrem a Deus, observem seus santos mandamentos e prometam não estimar nem empregar senão os que souberem ter essa santa e reta intenção;

Ordenamos que não blasfemem em Seu santo nome, sob pena de multa para os pobres de França arbitrada pelo Conselho de conformidade com a qualidade das pessoas, até a terceira vez, devendo na quarta ser punido corporalmente o blasfemador, segundo sua qualidade;

Ordenamos a todos e a quem quer que seja, que honrem e respeitem os reverendos padres capuchinhos, enviados por Sua Majestade a fim de implantarem entre os índios a religião Católica, Apostólica e Romana, sob pena de serem punidos os infratores segundo o caso e a ofensa perpetrada;

Ordenamos que ninguém, qualquer que seja a condição, embarace ou perturbe os ditos capuchinhos no exercício da religião ou de sua missão de conversão das almas dos índios, isso sob pena de morte;

Depois de estabelecido nos artigos supramencionados o que diz respeito principalmente à glória de Deus, determinamos agora o que se relaciona com a honra de nosso Rei, o qual houve por bem distinguir-nos com sua escolha para representá-lo neste país. Ordenamos, pois, que ninguém atente contra nossas pessoas ou contra a vida da colônia, por meio de parricídios, atentados, traições, monopólios, discursos feitos no intento de desgostar os habitantes, e cousas semelhantes, e isso sob pena de ser o infrator considerado criminoso de lesa-majestade e condenado à morte, sem esperança de remissão;

Ordenamos expressamente aos que tiverem conhecimento de atos tão perniciosos, que os revelem incontinente, sob pena de igual castigo;

E como os membros de um corpo não podem existir sem um chefe que os dirija, ordenamos que cumpram todos os seus deveres para conosco e nos prestem a obediência que nos é devida, de acordo com a intenção de Sua Majestade, e empreguem suas forças e disponham de suas vidas em benefício desta colônia, em todas as ocasiões, empresas e descobertas necessárias, que porventura ocorram, sob pena de serem considerados covardes e tratados segundo sua infidelidade e desobediência.

Depois de estabelecido o que diz respeito à honra e ao serviço do Rei, representado em nossas pessoas, assim como ao bem-estar e à segurança desta colônia, ordenamos, para manutenção desta companhia e da sociedade, que vivam todos em paz e amizade, respeitem-se mutuamente, segundo as condições e qualidades pessoais, e desculpem uns aos outros suas fraquezas, como Deus manda, e isso sob pena de serem considerados perturbadores do sossego público;

Ordenamos que o edito relativo aos duelos, baixado pelo invicto monarca de feliz memória, Henrique o Grande, nosso falecido Rei, que Deus haja, seja estritamente observado em sua plenitude; e juramos nós jamais fazer algo em contrário, quaisquer que sejam as considerações, bem como não perdoar aos infratores. Por isso, proibimos expressamente aos principais de nossa companhia que jamais intercedam a favor dos faltosos, sob pena de nos desagradarem e passarem pelo vexame de uma negativa;

Ordenamos que o autor de qualquer homicídio, a menos que perpetrado comprovadamente em legítima defesa, seja punido de morte para exemplo;

Ordenamos que quem quer que seja, convencido de falso testemunho contra quem quer que seja, sofra a pena que caberia ao acusado;

Ordenamos que quem quer se encontre furtando, seja, da primeira vez, açoitado ao pé da forca, ao som da corneta, e sirva durante um ano nas obras públicas, com perda, nesse espaço de tempo, de todas as dignidades, salários e proveitos; da segunda vez, seja o infrator enforcado. Em se tratando de criado doméstico, seja já no primeiro roubo enforcado;

Depois de estabelecido o que diz respeito a esta companhia, tanto com referência aos bons costumes, relações mútuas, proteção de suas vidas e honras, como à segurança de seus bens, ordenamos, para a conservação dos índios entregues a nossa proteção, e também para atraí-los pela doçura ao conhecimento de nossas leis humanas e divinas, que ninguém os espanque, injurie, ultraje, ou mate, sob pena de sofrer castigo idêntico à ofensa;

Ordenamos que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, pois seria isso não só a ruína da alma do cristão, mas também a da colônia; igualmente ordenamos, sob pena idêntica, que não se violem as mulheres solteiras;

Ordenamos que não se pratiquem quaisquer atos desonestos com as filhas dos índios, sob pena, da primeira vez, de servir o delinqüente como escravo na colônia por espaço de um mês; da segunda, de trazer ferros aos pés por dois meses; da terceira, de ser conduzido a nossa presença para o castigo que julgarmos justo;

Proibimos ainda quaisquer roubos contra os índios, seja de suas roças, seja de outras coisas que lhes pertençam, sob as penas supramencionadas.

E para que tudo fique claro e bem acertado de uma vez por todas, ordenamos sejam estas ordenações lidas e tornadas públicas na presença de todos e registradas como leis fundamentais e invioláveis na secretaria geral deste Estado e colônia, para serem consultadas quando necessário. Em testemunho do que assinamos as presentes ordenações com o nosso próprio punho; e serão subscritas por um de nossos conselheiros, secretário ordinário. Forte de São Luís, Maranhão, dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1612, (aa) Raverdière - Razilly. Pelos meus senhores: (a) Abraão.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Tá ligado?


Humor e criatividade em pleno sol do meio-dia numa das ruas do Renascença. Apesar do trabalho pesado no frete de entulho e material de construção - e do calor intenso - olha a tirada na traseira da carroça: “Se bater o pau quebra. Tá ligado?”. Tá lá o número do telefone de contato na lateral da carroça e na blusa do carroceiro para quem quiser crer. Ou contratar!

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre ontem à noite

Não há comparação. A dor dos outros nunca será como a nossa. Apenas uma noção vaga é o que se vai ter. É como a alegria de ganhar um filho: difícil alguém saber exatamente o que é isso sem viver a experiência. Pode até imaginar, mas jamais sentir. Assim é com a dor, como se dor e felicidade se encontrassem e se desentendessem em algum lugar do infinito. À distância, é possível até ter a sensação nos ombros, mas jamais o sentimento de uma coisa ou outra.

Ninguém vai saber o quanto dói uma saudade no peito alheio. É impossível saber o quanto vai doer uma lembrança de um afago que não se alcança mais, pois ficou preso no esconderijo do passado. É improvável perceber a alma de alguém que chora por dentro, que se derrama em prantos toda vez que os sinos da memória dobram bem lá no fundo.

Quem vai sentir ainda uma vez o cheiro do banho tomado, do aroma de talco como quem acabou de chegar do barbeiro? Quem haverá de passar a mão sobre o cabelo ralo e molhado penteado para trás, tingido com fulgor para espantar o prateado dos anos? Ninguém vai lembrar da pele corada pelo sol do mundo, dos olhos tristinhos fitando o horizonte dos sonhos que não vingaram, do sorriso raro da noite passada, da paciência já em fim de linha, das manhãs de março pelos chãos das feiras, do cheiro de pão quentinho no final da tarde. Ninguém vai lembrar, senão aqueles que dividem a mesma dor.

Talvez no mercadinho reparem a falta, quem sabe no banco percebam o silêncio da conta. Mais cedo ou mais tarde vão notar o vazio que ficou no ar. Como aquela brisa que não volta, como um lamento que alguém canta ao longe, como a voz terna e cansada que repousa a oeste do peito, de tudo fica apenas o norte da saudade.

Não tem tamanho. Não é o fim, mas também não tem remédio ou prazo de validade. É a dor dos outros que não se enxerga a olho nu, mas que fala alto e atormenta, que não cessa e cresce da noite pro dia. Às vezes é um grito lancinante, noutras um gemido calado de alguém que ficou esperando a companhia na poltrona de tevê ou na cama de dormir. Ninguém vai saber ou domar. Essa dor vai longe, mas um dia brinca de ciranda com as pequenas alegrias da vida.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Cordel dos encantados


O começo da história não difere de muitos casos que acontecem no cotidiano das cidades e que ilustram os boletins de ocorrência de inúmeras delegacias. Um cidadão comum, taxista, numa noite de plantão na praça, tem a vida abreviada por dois tiros à queima-roupa e uma punhalada no peito. José Vieira da Silva foi morto no próprio táxi por Vanderlei Teixeira Batista, numa emboscada entre as cidades de Imperatriz e Açailândia, no Maranhão. Era 4 de abril de 1993. O taxista deixou filhos, esposa e um Corcel II que lhe servia de escritório.

Na cidade grande, o caso certamente ganharia as páginas policiais e seria servido como aperitivo em programas de rádio e TV que exploram os dramas urbanos, na faixa de audiência do chamado mundo cão. No interior nordestino, porém, casos como a morte de José Vieira ganham vida nos cordéis de artistas anônimos – poetas populares que sobre destroços, brigas, morte, religião, seca, casamento e política erguem versos. A história poderia estar estendida no varal da vida sob o título de “A peleja do taxista Zé Vieira e o desalmado Vanderlei”.

No Maranhão, o cordel nunca foi o forte. Mas, como em terra de poetas ter uma estrofe na manga é lei, o desfecho dessa história está num ensaio de cordel. O crime foi parar nas barras da Justiça e, curiosamente, acabou em poesia. Vanderlei Teixeira Batista foi a julgamento e condenado a 18 anos de reclusão pelo Tribunal do Júri Popular, em Imperatriz, no dia 24 de junho de 1993. A sentença, que recebeu o título de “Vistos etc.”, assinada pelo juiz da 2ª Vara Criminal, José de Ribamar de Castro Ramos, encerra o processo de número 78/93. “Vistos etc.” é uma decisão judicial peculiar porque não há registro anterior de outra que tenha sido proferida em versos no estado.

“Sou juiz, não sou poeta/ Mas faço verso e canção/ Na beira do Tocantins/ Imperador da região/ Hoje em forma de poesia/ Vou proferir esta decisão”. Assim começa a sentença do juiz Ribamar Ramos, mais conhecido como Baial. Os versos causaram estranheza entre os membros do conselho de sentença, o advogado, a promotoria, o próprio réu e a comunidade. Ninguém esperava que do julgamento de um crime bárbaro pudessem sair rimas.

Baial, hoje juiz aposentado, conta que a ideia inicial de proferir uma sentença em versos não foi bem digerida por seus colegas de magistratura. Naquele mês de junho, Baial havia participado de 16 júris e as sentenças em prosa, segundo ele, já não despertavam inspiração alguma. Restava, porém, a dúvida sobre a legalidade da sentença em verso. Depois de algumas consultas bibliográficas, decidiu apostar na força da métrica. “Se não há nada que proíba, por que não arriscar?”, ponderou à época.

Poeta é quem se considera

Ao longo da poesia o juiz vai construindo a sua sentença. Ainda nos primeiros versos ele dá o tom da decisão: “O réu em seu ato criminoso/ Feriu artigo do Código Penal/ Sendo, portanto, denunciado/ Pela sua ação ilegal/ Tirando a vida do semelhante/ Sem motivo para tal”. Baial apresenta na peça todos os ingredientes exigidos por lei, como relatório, fundamentação e dispositivos. Tece a pena baseando-se no artigo 121 do Código Penal e ainda abre uma fenda para o lamento. “O dolo foi intenso/ Praticado sem piedade/ Mediante pagamento/ Com requinte de crueldade/ Oh! Meu Deus que mundo cão/ Para quê tanta maldade?”.

Baial diz não ter ficado preso a estilos quando da criação do verso – ou da redação da sentença. Foi uma inspiração de momento, segundo relata, “que não coube a métrica perfeita”. Poetas populares mais exigentes dirão que a peça de Baial está cheia de “pé quebrado”. Há um fio tênue entre o cordel e o repente, na avaliação de estudiosos como a professora Marlyse Meyer. O poeta de cordel, também conhecido como poeta de banca, é mais dado a exigências na métrica, o que já não acontece com o repentista – ou cantador de viola. Este prende ou solta a voz no momento conveniente para acertar, macio, a rima e empolgar o espectador. Já o leitor de cordel quer a precisão da rima no ato, ou seja, os versos de uma estrofe devem coincidir no número de sílabas. Faltou uma sílaba, caiu no “pé quebrado”, algo imperdoável para o homem simples do interior nordestino, exímio conhecedor do poema de banca.

“No salão deste plenário/ Dou a presente por publicada/ Às dezenove e dez minutos/ E as partes intimadas/ Registre-se e comunique-se/ A sessão está encerrada”. Nesta estrofe, com a qual Baial conclui a sentença, há versos de oito, nove e dez sílabas. O segundo, o quarto e o último versos não coincidem no número de sílabas. Nas 29 estrofes de “Vistos etc.” há trechos de seis, sete e oito versos - predominam as sextilhas.

Se pisou na métrica, Baial não sabe dizer. Afirma que à época não conhecia a regra. O certo é que o juiz poeta conseguiu o que queria. A sentença virou notícia e entrou para a história. José de Ribamar de Castro Ramos figura hoje entre os poucos magistrados brasileiros que ousaram na pena. A inspiração ele diz ter brotado de suas andanças pelo interior do Maranhão e do canto pungente de Patativa do Assaré. Nasceu em Barreirinhas e, como juiz, morou em Urbano Santos, Penalva, Vitorino Freire, Imperatriz, Santa Inês e São Luís. Deixou a comarca de Imperatriz depois de conduzir processos polêmicos. Ele foi o responsável pelo julgamento dos envolvidos no assassinato do prefeito Renato Moreira; e reabriu, 10 anos depois de interrompido, o caso da morte do padre Josimo Tavares. “Muita gente foi presa e tive de deixar a cidade após algumas ameaças de morte”.

O passo seguinte foi Santa Inês. Lá, o advogado Leonel Marinho, conhecendo a fama do juiz poeta, decidiu partir para a provocação. Ao ser procurado pela cliente Arlete Gama de Lima, que pretendia receber do ex-marido pensão alimentícia para o filho, Marinho abriu mão da prosa e resolveu versejar na petição. “A maior ignorância do homem/ Além de romper a aliança/ É fazer pirraça com a ex-mulher/ Impondo-lhe uma vingança / E inclusive fazendo sofrer/ Uma pobre e indefesa criança”. O advogado queria, na verdade, despertar a veia poética de Baial, que não se fez de rogado e soltou o verbo no despacho: “Fixo os alimentos provisórios/ Em 20% do salário do requerido/ De seus rendimentos integrais/ E tudo mais que é devido/ Devendo de seus vencimentos/ Todo mês ser abatido”.

E o “desalmado” Vanderlei? Distante da poesia daquele amargo São João de 1993, hoje cumpre o restante da pena em regime semi-aberto. Durante o dia tenta a vida como vaqueiro no Parque Independência e à noite segue para dormir em Pedrinhas, na companhia de outros sentenciados.

Versejar: verbo intransitivo

Os versos na seara do Direito ainda são parcos e somente alguns ganharam registro definitivo na memória popular, como é o caso de um pedido de habeas corpus para um inócuo violão. Em 1960, um juiz da cidade de Campina Grande, na Paraíba, decidiu proibir as serestas que se estendiam até altas horas da noite. Numa madrugada daquele ano, a pedido de beatas insones, o delegado resolveu cumprir a medida judicial e levou presos um seresteiro incorrigível e o seu violão. O boêmio conseguiu safar-se da cadeia no dia seguinte, mas o delegado decidiu manter o violão atrás das grades.

“Todo mundo na Paraíba conhece essa história”, diz, orgulhoso, o ex-governador paraibano Ronaldo Cunha Lima. Em 1960 ele era apenas um jovem advogado em começo de carreira, tão boêmio quanto o seresteiro transgressor. Por conta de sua intimidade com a noite e a boêmia, Cunha Lima fora convidado para defender a causa do seresteiro, inconsolável com a prisão do violão.

Cunha Lima entrou com uma petição pitoresca na Segunda Vara da cidade, denominada “Habeas pinho”. Com argumentos de deixar qualquer juiz suado na toga, o advogado invocou inspiração e desferiu 10 implacáveis estrofes. “O instrumento do crime que se arrola/ Neste processo de contravenção/ Não é faca, revólver, nem pistola/ É simplesmente, doutor, um violão”. No sétimo ato o advogado implora: “Mande soltá-lo pelo amor da noite/ Que se sente vazia em suas horas/ Pra que volte a sentir o terno açoite/ De suas cordas leves e sonoras”. O juiz, diante da petição, não teve outra escolha. Recorreu à poesia e, em verso ligeiro, decidiu pela “soltura” do violão.

domingo, 7 de agosto de 2011

Restos de poesia e carnaval

Ferreira Gullar e Joãosinho Trinta relembram, 60 anos depois, a partida de São Luís para o Rio e a confluência de temas em suas obras definitivas

Há 60 anos eles trocavam São Luís pelo Rio de Janeiro. João Jorge Clemente Trinta deixava para trás a família e o berço de menino gauche. Aos 18 anos levava para longe, a bordo do vapor Ita, o tempero da encantaria. José Ribamar Ferreira carregava o espanto na bagagem e, pelo retrovisor da viação Estrela Dalva na estrada comprida, o olho fitava o último pedaço de ilha estirado sobre o oceano. Tinha 21 anos quando partiu a vida em duas metades – parte vertigem, para sempre impregnada na alma; parte linguagem, construída, negada, renovada ao sabor do tempo. Era 1951, o ano da greve que inventou a rebeldia na Ilha de São Luís. Eles não estavam na praça, não carregavam bandeiras. João e José mal se conheciam e sequer desconfiavam que no futuro um reluziria daquilo que é lixo, outro imortalizaria a sua pena naquilo que é sujo.


Joãosinho Trinta e Ferreira Gullar ganharam o Rio de Janeiro para depois ganhar o Brasil, ganhar o mundo. Jogaram o jogo da arte, que nem sempre permite os sete erros. João abriu mão do Clemente e do Jorge no nome. Trocou o “z” pelo “s” e foi viver o Joãosinho Trinta que o Carnaval não esquece. Como um José que não era e um Ribamar que não foi, Ferreira juntou-se ao Goulart da mãe Alzira até se revelar o poeta que é. E assim seguiram o rito de passagem. Dois personagens divididos bem no centro do século 20. Uma cidade pacata e miúda e amada, uma ilha recortada pela água turva do Anil. Outra cidade densa e bela e imperfeita, da Guanabara caprichosa, da então capital dos brasileiros, do retiro de bandeirantes nordestinos. Era São Luís. Era o Rio.


A timidez da velha aldeia tupinambá fazia crescer a vontade de partir. O plano na bagagem era um só: abrir caminhos. Se ficassem, talvez não restassem caminhos ou planos, talvez o chão da cidade encolhesse ainda mais. Se partissem, deixariam a incerteza submersa na baía de São Marcos, morta por afogamento. O visgo eram a família, a casa quieta, a praça Gonçalves Dias, os amigos, as ruas da Paz, da Alegria, de São Pantaleão, a pelada depois das quatro no campo do Ourique, os encontros fortuitos, as bronhas reveladas nos buracos das fechaduras das meia-moradas (o “cuspo morno no membro”), o mar lambendo a soleira dos casarios.

Joãosinho Trinta conta que alimentava uma paixão arrebatadora por uma garota chamada Lígia, filha de Silvestre Fernandes, diretor da escola onde estudava. O sonho era partir com ela para o Rio. “Nosso plano não vingou, éramos muito novos, paixão de adolescente”. Lígia ficou. Joãosinho recebia as primeiras lições de teatro na escola, mas o que o fascinava mesmo era a dança. Conspiração do destino, desembarcou no Rio no domingo de Carnaval, Praça Mauá, roteiro inicial da festa carioca. Aturdido com tanta informação, saiu em busca do primeiro endereço, um pensionato no Flamengo. “Embora admirado com tudo o que vi, ali o Carnaval ainda não pulsava em mim definitivamente. Saí de São Luís em busca da dança, do teatro e da ópera”.
Gullar e Joãosinho desceram num Rio desconhecido, sem qualquer carta de recomendação, sem as bênçãos da Corte, o apadrinhamento político, a mão estendida de parentes. Cara e coragem. Eram jovens, filhos de famílias simples, e por isso mesmo enfrentaram dificuldades no primeiro ciclo da travessia.

O salário minguado no emprego de auxiliar de escritório ajudava Joãosinho a pagar as aulas de dança clássica. Aprovado no concurso para o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio, antes mesmo de assumir a nova atividade pediu as contas do escritório. Sem salário, foi despejado da pensão e viveu um dos períodos mais difíceis de sua vida, segundo relata, até se iniciar na carreira de bailarino profissional. Chegou a dormir em trens do subúrbio e a comer as sobras das amêndoas que caíam na Praça Paris, como relata o publicitário Fábio Gomes no seu livro “O Brasil é um luxo – trinta carnavais de Joãosinho Trinta” (2008).

Ferreira Gullar chegou ao Rio em agosto, bairro da Glória. Deixou em São Luís o primeiro testamento, a investida inaugural na literatura, o livro “Um pouco acima do chão” (1949), depois abjurado pelo poeta. Só mais tarde descobriria que o poema não estava exatamente acima do chão, mas no rés dele, no fundo, quem sabe apodrecido feito restos no monturo, na lavagem, no ferro retorcido. Não levou planos de colação de grau, diploma de universidade, uma graduação qualquer acadêmica. Mas havia nele o impulso para a leitura devoradora. Fez dela um sacerdócio. A incursão pelos livros de filosofia indicados pelo amigo Mário Pedrosa e a sensibilidade de poeta deram a Gullar a água tônica do discurso sobre as artes, despertaram nele a verve de crítico tenaz do trabalho de artistas plásticos. Logo passou a escrever para jornais e a fazer parte da roda de artistas como Lígia Clark, Hélio Oiticica e Amílcar de Castro, além do próprio Mário Pedrosa.


Vergonha do Maranhão

Gullar diz que conheceu Joãosinho logo que chegou ao Rio, por intermédio do amigo em comum Kléber Fernandes. Encontraram-se outras vezes e até se visitaram. Cada um com o seu traçado. Joãosinho entrou de vez para o corpo de baile do Municipal. Obstinado no ofício da dança e do teatro, dedicou-se a acompanhar a montagem da cenografia dos espetáculos. Foi dando pitacos aqui e ali que conheceu os cenógrafos Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, com quem se envolveria tempos depois na engrenagem colorida do Carnaval carioca. Primeiro como aderecista de Pamplona e Rodrigues, influências generosas e definitivas. E logo em voo solo, como maestro principal da alegria.

Depois de “Um pouco acima do chão”, Gullar pôs em conflito a sua linguagem de poeta até “entender” o que de fato era poesia. Encontrou resposta ainda em São Luís numa leitura de versos assombrosos, segundo ele, contidos no livro “Elegias de Duíno”, de Rilke. Passou a ler em outra direção experimentando nos sebos os solavancos de Valéry, Rimbaud, T.S.Eliot e Hoffmann até chegar em Drummond e Bandeira. Descobriu que, aos 20 anos, era um poeta novo empunhando uma linguagem velha, fruto de uma base parnasiana rigorosa. Foi nesse transe que já chegou ao Rio carregando as primeiras tintas de “A luta corporal”, livro-ruptura lançado em 1954, mesmo ano em que se casa com a atriz Thereza Aragão. Gullar, aos 24 anos, chegara à conclusão, com a publicação de “A luta corporal”, de que a sua poesia havia chegado ao fim, a linguagem havia se desintegrado. A conclusão perturbadora o levaria à poesia concreta dos irmãos Campos, com quem romperia pouco depois para lançar o “Manifesto da Poesia Neoconcreta”.

Assombros recorrentes deixaram Ferreira Gullar e Joãosinho Trinta afastados de São Luís em dado período. Gullar, pelo conflito permanente com a poesia e o instinto natural da sobrevivência em terra nova, passou cerca de dez anos sem voltar ao Maranhão. Foi ainda estudando dança nos galpões da União Nacional dos Estudantes (UNE), por onde passavam alguns maranhenses em visita ao Rio, que Joãosinho enfrentou um dos seus maiores dissabores. Certo dia um cunhado o viu dançando no palco e esbravejou:

- Você é a vergonha do Maranhão!

Aquilo soou como uma sentença para Joãosinho, condenado por alguém de casa a se manter distante de sua terra, de sua gente, porque vestia uma malha apertada ao corpo e calçava as sapatilhas da desonra. Dança, para o parente envergonhado, era coisa de mulher ou de veado. E assim cumpriu uma pena dolorosa, de mais de 40 anos, acreditando ser, de fato, a vergonha do Maranhão. Só voltaria a São Luís em meados dos anos 1990 para receber uma homenagem do governo estadual, convencido enfim de que nunca fora motivo de vergonha para os maranhenses, mas de orgulho. “Aquilo ficou guardado, me remoendo como uma doença sem cura. Eu já era tímido, e aquela atitude me tornou uma pessoa ainda mais reservada”.

A timidez, contudo, não cortou as asas do artista que trocou o palco do Theatro Municipal pelos barracões incandescentes do Salgueiro e ali começou a escrever a história do maior carnavalesco que o Brasil já conheceu. Como alinhava Fábio Gomes, de 1974 em diante, quando tomou a frente dos desfiles do Salgueiro, “foram nove títulos, mas poderiam ter sido dez, onze, até quinze, caso houvesse maior isenção e os jurados tivessem feito justiça a Carnavais memoráveis”.

A obra de Joãosinho Trinta, segundo Fábio Gomes, não pode ser analisada somente pelos títulos conquistados. Os melhores carnavais, aqueles mais impactantes e provocadores, não levaram o campeonato. Do Salgueiro para a Beija-flor e depois Viradouro e Grande Rio. Em cada uma dessas escolas deixou a marca do inventor incomum de cores e luzes. Alucinado, usou o delírio para fustigar os seus monstros com lampejos de genialidade. Da passarela resplandeciam suas visões de paraísos e infernos. Joãosinho fazia um espetáculo não para a televisão, mas para o asfalto, como se tablado de teatro o asfalto fosse. Era mais enredo, menos samba.


Samba, descaminhos e estilhaços da memória

Foi Thereza Aragão quem acabou juntando um pouco mais Joãosinho e Gullar no Rio. Ela era muito ligada ao samba e participava de uma ala no Salgueiro. “Eu também gostava de samba, de assistir aos desfiles, e íamos juntos aos ensaios, primeiro no Salgueiro e depois na Beija-flor. Thereza e o samba acabaram me aproximando do Joãosinho”, relata, por telefone, o poeta.

Do neoconcretismo para o Centro Popular de Cultura da UNE. De um ponto a outro, Gullar fundiu poesia e política, cordel e comunismo, teatro e clandestinidade até lançar, em 1975, “Dentro da noite veloz”, seu livro mais denso, carregado, o verso subvervo. Com o país sob a nuvem do Ato Institucional nº 5 da ditadura militar, o engajamento político ensejou a prisão do poeta. O exílio o levou ainda para mais longe de São Luís: Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. Tão distante, bafejado pelo mundo grande que ao mesmo tempo “espanca e comove”, o poeta deixou-se levar pela explosão de sentimento como se estivesse exorcizando, por meio da acidez da palavra, a infância e a juventude vividas em São Luís, até então latentes em sua obra. “Poema sujo”, lançado em 1976 no Brasil sem a presença do autor exilado, é o livro definitivo de Gullar, o anti-hino derradeiro, brasileiro e universal, de quem grita ao longe a sua cidade velha e nua, parida no garrancho de uma Remington.

“Ah, minha cidade suja
de muita dor em voz baixa
de vergonha que a família abafa
em suas gavetas mais fundas
de vestidos desbotados (...)”


Os estilhaços da memória se espalharam na resma de papel de maio a outubro de 1975. Ao escrever as primeiras linhas de “Poema sujo”, num só fôlego, Gullar estava convencido do peso de cada palavra, da força do moinho das reminiscências. Não era um réquiem à saudade, mas uma sinfonia em retalhos alternando êxodo (São Luís) e exílio (a Via Láctea, naquele instante): o azul da cidade úmida, o moedor de pimenta da tia Bizuza, o quintal da casa, o cheiro do jasmim ainda que sujo, o bordado das toalhas de mesa, a dor silenciosa da gente humilhada, o pouco dinheiro, o perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno. Uma canção de exilado sem pássaro ou palmeira, um grito de socorro. Quando tudo parecia chegar ao fim, o homem acossado em Buenos Aires encontrou a porta de saída no horizonte brumoso do poema, na imunda platibanda vista da varanda, nas dobras da brisa dos 45 anos de idade. “Estou certo de que o poema me salvou: quando a vida parecia não ter sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, inventei, através dele, outro destino”.

O poema sujo de Joãosinho Trinta viria a lume 13 anos depois do lançamento do livro-espasmo de Gullar. De intensidade similar, porém de vida efêmera como deve ser uma festa de Carnaval, a poética de Joãosinho vestiu-se de mendigo e invadiu a passarela do samba carioca com o tema “Ratos e urubus, larguem a minha fantasia”, em desfile antológico da escola Beija-flor. O carnavalesco maranhense já havia ousado em outras apresentações, mas não de forma tão polêmica. E a ousadia era mesmo o excesso de beleza nas fantasias, na caracterização do enredo, no banho de criatividade das alegorias. Acuado pela crítica por abusar do luxo nos adereços em desfiles anteriores, com “Ratos e urubus” Joãosinho dera a resposta em grande estilo aos seus detratores, uma espécie de inventário da sobrevivência, como fora o poema na vida de Gullar.

“Ratos e urubus”, de 1989, foi um soco na desatenção, um olhar instigante sobre as mazelas de um país vice-feliz. No lugar do luxo escancarado, o lixo. Restos da rua, farrapos humanos, material em decomposição. Do desperdício, da sujeira de homens e máquinas, do descartável foi montado um dos maiores espetáculos de Carnaval no Brasil. Uma imagem do Cristo Redentor, apesar da contra-ordem da Igreja Católica, provocou euforia no público e repercussão na imprensa ao entrar na avenida, coberta por sacos de lixo e uma faixa com a mensagem “Mesmo proibido, olhai por nós!”. Joãosinho Trinta juntou no mesmo tacho o lixo do sexo com a sujeira da política, o lixo das trevas com a descrença em templos e catedrais de fachada, o lixo dos loucos e a podridão de cartolas do futebol. O mais memorável de todos os desfiles de Joãosinho, contudo, ficou em segundo lugar no somatório das notas do júri. Para o público, aquele fora o enredo mais vibrante, inteligente e provocador. Ou “escandaloso, criativo e profundo”, como proclamou o “Jornal da Tarde”, de São Paulo. “Quando fiz aquele Carnaval, no Brasil ainda nem se falava em reciclagem. Certamente foi um trabalho de vanguarda. Ali nasceu uma ideia de transformar o lixo em algo útil e belo”, explica o carnavalesco.


No primeiro desfile solo de Joãosinho Trinta, em 1974, ainda no Salgueiro, o Maranhão estava presente no enredo “O Rei de França na Ilha da Assombração”, primeiro lugar entre as escolas do grupo especial. Outra homenagem ao torrão natal viria em 2002, já na escola Grande Rio, com o enredo “Os Papagaios Amarelos nas Terras Encantadas do Maranhão”. Mesmo distante por longos anos, Joãosinho alimentou uma relação de cumplicidade com São Luís em sua obra. Por meio de amigos, por meio de lembranças fugidias. “Sempre estive por perto. Nunca tirei certas pessoas do meu coração, mesmo sem vir a São Luís”.

Nos últimos 12 anos, Gullar adquiriu um certo temor de viajar de avião em roteiros longos. “Acabei me afastando da minha cidade em decorrência disso, coisa que lamento muito”. Ele diz que se não tivesse nascido em São Luís não seria poeta, mas certamente outra coisa, outra pessoa. Não teria crescido com o cheiro na memória de fruta passada da quitanda do pai Newton Ferreira. Ou compartilhado o desassossego da primeira juventude e o gozo de descobertas traquinas com os amigos Esmagado, Espírito da Garagem da Bosta e Canhoteiro. “São referências que não se apagam. São Luís faz parte de mim, do meu sangue, da minha alma; é onde está a minha família”. O poeta que nasceu na rua dos Prazeres, esquina com a rua dos Afogados, e virou nome de avenida em São Luís, recebeu em 2010, aos 80 anos de vida, o Prêmio Camões, o mais importante reconhecimento a um autor de língua portuguesa.

Somente depois de instigados é que um e outro se dão conta de um paralelo acidental em suas vidas. O eixo? São Luís e Rio. Poema lixo e carnaval dos sujos. “Ambos, cada um com os seus fantasmas, pegamos aquilo que estava à margem, podre, e transformamos em matéria-prima da arte”, constata o menino-luz encantador de plateias, que voltou a morar na velha aldeia de ontem. “Ferreira Gullar é para mim o encantado”, diz ele. Gullar considera Joãosinho também um poeta. “À maneira dele, mas é um poeta”. “Logo ali no início, quando passamos a conviver no Rio, eu já tinha a certeza da estrela de Gullar”, devolve Joãosinho.

Ferreira Gullar e Joãosinho Trinta. Nenhum dos dois se prende ao particular, ao saudosismo de partida e chegada de qualquer cais. Trocaram de mar em 1951. Como marinheiros de penúltima viagem, se confundem com o próprio farol. Sem guizo, são senhores de upaon a sul.

Fragmentos de entrevista

“Além da admiração por Gullar, existem entre nós laços de amizade muito fortes. É como se ele fosse um irmão para mim”

Joãosinho Trinta

“Por diversas vezes escrevi sobre Joãosinho Trinta nas minhas crônicas. Uma delas foi quando ele provocou aquele choque com o desfile sobre o lixo. Esse enredo foi formidável”

Ferreira Gullar

“Nesse convívio com o grupo de Gullar, com a turma do grupo Opinião, com o estudo de dança, a vivência no teatro, a ópera gritando dentro de mim... Foi esse conhecimento da época que me fez dar o salto para o Carnaval”

Joãosinho Trinta

“Foi em São Luís onde eu cresci, vivi a minha infância e parte da juventude. Isso ninguém esquece. Esmagado, Espírito, Canhoteiro, a quitanda do meu pai, as praças. Essas são referências que não se apagam. O Poema Sujo nasceu disso tudo”

Ferreira Gullar

“O mundo, na verdade, é um espanto! É uma surpresa extraordinária. Eu não sou poeta. Poeta é Gullar. Só ele fala como ninguém, como ninguém, como ninguém!”

Joãosinho Trinta

“Mesmo distante, mantenho ligação afetiva com a minha cidade, onde mora boa parte da minha família. Sempre falo com meus irmãos, tenho notícias daí. Dificilmente poderei voltar, e eu lamento”

Ferreira Gullar

“Poucas pessoas compreendem tanto Ferreira Gullar como eu, por mais que a linguagem dele seja universal”

Joãosinho Trinta


Trechos de "Poema sujo", recitado por Ferreira Gullar

Trechos do desfile "Ratos e Urubus", de Joãosinho Trinta

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A luz no fim do conto e outros unguentos de Augusto Pellegrini


“O Bruxo de Concepción” é o mais novo título do selo Clara Editora. O livro de contos de Augusto Pellegrini será lançado no próximo sábado, dia 30, às 20h, no restaurante Cumidinha de Buteko, no bairro do Cohajap. A noite de autógrafos inclui pocket show de blues e jazz interpretados pelo autor com acompanhamento dos músicos Celson Mendes (violão), Júlio Marins (guitarra) e Miranda Neto (trompete).

Concepción del Oro é uma pequena cidade encravada na parte norte do estado mexicano de Zacatecas, terra natal de Emerenciano Ycaplán, um meio índio asteca, meio obeso, de baixa estatura, que desfrutou de certa fama de milagreiro em homéricas viagens pelo México até ser apanhado de calças curtas por doutores do Conselho de Medicina. A história do bruxo Emerenciano é um dos oito contos que brotam da inventividade de Augusto Pellegrini no seu quinto livro do gênero.

Pellegrini conta que optou pelo conto fantástico em decorrência da narrativa leve, carregada de surrealismo e fantasia. Tudo pode acontecer, segundo ele, para aguçar a imaginação do leitor. Pessoas, animais e coisas se travestem de espíritos ruins, objetos iluminados criam vida, mortos ressuscitam, sons e sombras se juntam no colorido âmbar do cenário e o absurdo se sobrepõe à lógica.

Em “O Bruxo de Concepción”, adverte Pellegrini, os contos não pretendem ser rigorosamente apavorantes. O autor explora certas particularidades de personagens e locações usando o expediente corriqueiro do humor e da ironia. Valendo-se aqui e ali da cumplicidade do leitor, Pellegrini escapa sorrateiro das conclusões óbvias e, ao longo de 125 páginas, surpreende com suas oferendas imaginárias, quebra-cabeças aterradores e unguentos alucinantes.

Augusto Pellegrini é paulista radicado em São Luís há mais de 30 anos, autor de “Coisas”, “O Fantasma da FM”, “À noite, todos os gatos” e “Jazz, das raízes ao pós-bop”. É cronista esportivo do jornal “O Estado do Maranhão”, foi produtor e apresentador do programa de rádio Mirante Jazz, premiado em 1984 pelo New York Radio Festival, e atualmente tem se dedicado a apresentações como cantor de jazz e bossa nova.

“O Bruxo de Concepción”, prefaciado por Ronald de Almeida Silva, é o 22º título do selo Clara Editora, que tem livros publicados de Milson Coutinho, Fernando Abreu, Clóvis Cabalau, Guttemberg Araújo, Joaquim Campelo, Sérgio Brito, Antonio Carlos Lima, Cidinho Marques, Carlos de Lima, Mário Meireles e Kátia Bogéa.

O evento de lançamento de “O Bruxo de Concepción” e o pocket show no Cumidinha de Buteko levam a assinatura da Satchmo Produções.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Diários de fotografia


Foram quase dez mil quilômetros percorridos pelo interior do Maranhão. Fotógrafa paulistana, Bianca Cutait saiu em busca do improvável, do imprevisível. Homens, mulheres, crianças, brancos, pretos, índios, paisagens, objetos e tudo o mais que a lente da câmera alcançasse. Depois de cinco anos de estrada, encantamento, prosa e pesquisa, tudo isso revelaria em 252 páginas as imagens da poética fotográfica de Bianca. Ela visitou cada um dos 217 municípios do estado clicando do chão ao céu, com uma infinidade de anotações distraídas que ajudam a decompor o “olhar distante” sobre a maranhensidade. O resultado da odisséia está no livro “9.357 km de segredos pelo Maranhão”, lançado pela editora Décor na FIESP, em São Paulo, no mês de abril, e com previsão de lançamento em São Luís até o mês de setembro.

Correr atrás do improvável é puro eufemismo. A pressa de São Paulo ficou para trás em 2004, quando Bianca Cutait decidiu fincar bandeira no Maranhão. E qual uma bandeirante da modernidade, entregou-se à missão de desbravar terras cada vez mais distantes e desconhecidas. A primeira visita a São Luís ocorreu em 1999, numa viagem rápida com o pai, o médico Raul Cutait. Retornou seis anos depois para passar o Carnaval. Ficou quase um mês e fez a primeira série de fotos do Maranhão.


Bianca Cutait tem formação em relações públicas e alguns trabalhos realizados na área do marketing político. Começou a fotografar aos 11 anos por influência de Mohamed Bassiouni. “Ele é o meu mestre, ensinou-me muita coisa e mostrou-me os caminhos da fotografia”, diz ela. O que parecia ser apenas uma simples brincadeira acabou virando encantamento. Tudo começou a passar pela lente da fotografia.

Dos vários lugares visitados, alguns de difícil acesso, houve sempre uma história para contar, algumas reveladas nas páginas em papel couchê do livro, e tantas outras para guardar na memória. A realidade, nem sempre atraente aos olhos e lentes da fotógrafa, ora assustava, ora deslumbrava. “Às vezes a realidade é tão crua que dói na alma. Noutras é puro deleite”. Bianca constatou, nos seus diários de fotografia, que no interior do Maranhão a mendicância é uma miragem. Os meios de sobrevivência, pela grande angular de Bianca, estão ao alcance de qualquer um, e talvez bem longe das estatísticas. Mas a fartura, segundo ela, cria o ócio. “A letargia toma conta da vida das pessoas de maneira impressionante; é como se não houvesse horizonte ou terra nova para conquistar”, diz.

Chamou a atenção de Bianca um lugarejo conhecido como Currais, povoado de São Bernardo. Ela encontrou naqueles confins o lugar mais lindo do mundo. O “lugar mais lindo do mundo” faz parte da poética fotográfica de Bianca. A foto poética, de acordo com o conceito da própria autora, é aquela que vai dizer por si alguma coisa. “Se não diz aos outros, diz a mim”, conta. “E como sempre quero dizer mais, resolvi escrever algo sobre aquilo que vi e fotografei”.

Bianca, que morou a vida inteira em São Paulo – com pequenos hiatos fora do País – identificou-se com a atmosfera do Maranhão. Libanesa de sangue, ela foge da estética do trivial. Busca inspiração nos detalhes, nas pequenas coisas. Esquiva-se, por exemplo, das paisagens arquitetônicas que, via de regra, despertam a curiosidade dos fotógrafos que aportam no cais da sagração. “O que me fascina é esse conjunto de coisas que me fazem, a todo instante, abrir os olhos e o coração; são as pessoas, o cheiro, os costumes, a fala, a comida, a expressão no olhar dos maranhenses”.

Além de ter fotografado lugares que considera especiais, Bianca Cutait guarda com devoção fotos que fez de B.B. King, de quem se tornou amiga. Fez também fotos memoráveis dos músicos do Buena Vista Social Club. O alvo pode ser um artista famoso ou um ilustre desconhecido do sertão maranhense. O que importa para ela são os movimentos e os tons de luz.

O maestro João Carlos Martins é uma das principais influências da fotógrafa paulistana. Nele Bianca conseguiu fundir som, imagem e movimento. “Fotografá-lo é a coisa mais incrível do mundo”. Ela fez o trabalho de assessoria de imagem para o maestro. “João Carlos passa um movimento que me fascina; a vida dele é totalmente inspiradora”, define.

A viagem pelo Maranhão foi longa e cheia de aventuras. Mas havia São Luís como porto seguro. Na bagagem, uma máquina digital, uma analógica com filme P&B e uma filmadora.

Os percalços da viagem foram batizados de “bianquices”. Ainda que fosse uma mancada, tudo valeria a pena para tirar uma boa foto, diz ela. Num dos roteiros, em que percorreu a região sul maranhense, Bianca foi parar no hospital de Imperatriz. Tudo por conta do melhor ângulo para tirar a foto de uma índia Krikati, em Montes Altos, que convalescia nua numa rede. Ela quis fazer uma foto sem banalizar a imagem da índia. “Só que eu me inclinei tanto que caí de costas”. A queda lhe valeu uma distensão muscular e dores pelo corpo. Por coincidência, a índia da foto era a curandeira da tribo. “Ela me benzeu, me deu um colar e a dor passou”, conta a fotógrafa. Com a perna imobilizada, Bianca interrompeu a viagem por alguns dias.

Influências místicas acompanharam a trajetória de Bianca Cutait pelo Maranhão. Desembarcou em São Luís em 2004 numa cadeira de rodas e com uma sacola de remédios para tratar forte crise de labirintite. “Na primeira viagem aos Lençóis, esqueci os remédios em casa e nunca mais tive qualquer sinal de labirintite”.

A fotógrafa viveu experiência ímpar em cada trecho, cada pedaço de chão batido. As confissões ganhavam forma de diário no encontro com o inesperado. O caderno de anotações serviu de guia e companhia. “Saía por aí colecionando minhas impressões e coisas escritas por amigos que ganhava, inclusive rabiscos e desenhos de crianças”, comenta. De tudo ficou um enorme laço afetivo. “É tudo tão forte que às vezes tenho a sensação de que já vivi aqui em outra vida”.

O livro do desassossego de Bianca, que ganhou vida em cada esquina das cidades do interior, é farto de material fotográfico e simplicidade. Não espere dele o primor em estética, mas uma carga forte de arrebatamento. De alguém que, de uma história ou outra contada na calçada, sob a luz da lua, tem um encontro fortuito com o destino.


Fragmentos do diário de Bianca

“De longe, ouvi a senhora dizer que minha sina era ter ido para lá, que Deus quis que eu visse tudo aquilo, e que estava marcado no meu destino. Todos se surpreendem com a realidade distorcida, e tantos olhos incrédulos. Mistérios que não se apagam mais. A cada passo, marco dentro de mim um território imaginário”

“As crianças gostam de me seguir. Vou me banhar e tenho bastante companhia. Vou comer e tenho muitos espectadores. Vou dormir e vários me vigiam. É engraçado. Elas me seguem com os olhos, eu as sigo com o coração”

“Já aprendi a fazer xixi de cócoras. Demorou, mas aprendi. Sinto que aprender coisas simples às vezes pode ser difícil. Redundante, não? Aprendi até a ver o sol nos dias mais chuvosos. Nem a picada de marimbondo me deixou nervosa. Nada me incomoda, talvez essa seja a sina sobre a qual a senhora se referia”

terça-feira, 5 de julho de 2011

Britânico no Caburé

O jornalista britânico Alex Robinson, autor de guias de viagem de destinos no mundo, como o “Brazil Handbook”, desembarca em São Luís nos próximos dias numa press trip organizada pela Embratur.

Robinson fará a cobertura do Festival do Bumba Meu Boi, em São Luís e São José do Ribamar, e embarcará num roteiro de aventura pela Rota das Emoções, que inclui os estados do Maranhão, Piauí e Ceará.

No trajeto do jornalista, estão o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, a praia do Caburé, Parnaíba (pequenos lençóis), Parque Nacional do Delta das Américas, Jericoacoara e Fortaleza.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Maio oito meia (4) - Enterrando os primeiros fantasmas

O corte epistemológico vaticinado por Althusser nas aulas de Teoria da Comunicação abriu a fenda entre os livros oficiais apreciados ainda na escola e a literatura arejada, deliberadamente desgovernada, encontrada nos corredores, emprestada de mão em mão ou vendida nos sebos e bancas a preço módico. Era lendo "Utopia e paixão", do escritor e psicanalista Roberto Freire (com Fausto Brito), que meninos e meninas desabrochavam para o movimento estudantil na universidade. O velho anarquista vendia livros como água pelo campus. Tinha uma pegada proposital para cutucar jovens em início de vida acadêmica, atormentados com tanta ciência e filosofia no lombo. Fazia dos títulos dos livros uma deliciosa provocação: "Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu", "Sem tesão não há solução", "Ame e dê vexame" e por aí vai.

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domingo, 26 de junho de 2011

Maio oito meia (3) - O rito de chegada

Brasil Novo, Plano Cruzado, velho clientelismo, preços congelados, explosão do consumo. O rock brazuca pulsava dentro e fora das universidades. A fumaça tomava conta da Área de Vivência do campus do Bacanga enquanto as calouradas se multiplicavam pelas sextas-feiras do semestre. Era o meu primeiro período de Economia, escolha pouco iluminada que tomou quase três anos de vida acadêmica, talvez alimentada pela boa lábia de Dílson Funaro, João Sayad, Edmar Bacha e pelo choro copioso e terno de Maria da Conceição Tavares. Confesso que insisti, e havia tolerância recíproca – um pacto de mediocridade sem firma reconhecida -entre mim e os professores Orlando Furioso, Magalhães, Flávio Farias, Benjamim, Eliseu e tantos outros alcançados pelo meu desencanto tardio.

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sexta-feira, 24 de junho de 2011

Maio oito meia (2) - No templo das provações

Aquele homem de chapéu de palha, mal vestido, pele suada e gestos largos falava diferente. O timbre da voz e o discurso eram diferentes. Uma oitava acima, falava com emoção sobre campesinato, reforma agrária, sangue na luta pela posse da terra, grilagem e revolução. Bem articulado, usava as palavras mais simples, às vezes desconexas, e tropeçava na gramática, mas ganhava a plateia pelo discurso inflamado. Setembro de 1985. O Grêmio Estudantil Coelho Neto, do Colégio Marista, convidara alunos de outros escolas para o debate com os candidatos à prefeitura de São Luís. Era a primeira eleição para prefeito com o carimbo da Nova República, depois de 20 anos de regime militar. Na plateia do auditório do Marista estavam secundaristas ávidos por embates, informação e festa.

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quarta-feira, 22 de junho de 2011

Maio oito meia (1) - No templo das provações

Caía uma chuva leve no Campus e revolução já não havia naquela segunda metade dos anos 80. O Brasil atravessava a década da melancolia pós-ditadura, da falta de bandeira, da rebeldia sem causa, da fragilidade dos discursos, do bacanal político, da insolência roqueira no Planalto Central, da tempestade em copo d'água nas praças e ruas. Era uma outra luta, agora sem o chumbo das armas, pelos direitos humanos à luz do dia, nas fábricas, no trabalho, no consumo, no comportamento.

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quinta-feira, 16 de junho de 2011

Testemunha afirma que foi coagida por delegado




EDISON LUIZ
FÉLIX ALBERTO LIMA
O Estado de São Paulo
18.06.1999

Prefeita diz que policiais a ameaçaram, na frente de Campelo, para forçá-la a depor contra ex-padre

A prefeita pefelista de Belágua (MA), Rosalina Costa Araújo, confirmou ontem que foi coagida moral e fisicamente pelo delegado João Batista Campelo, atual diretor-geral da Polícia Federal, para depor contra o ex-padre José Antônio de Magalhães Monteiro, em 1970. Segundo Rosalina, os policiais, na frente de Campelo, diziam que iriam “esbofeteá-la” e um deles chegou a apertar seu braço tentando fazê-la confessar que Monteiro era subversivo.

Ela contou que o atual diretor da PF, que assistia a tudo sem nada fazer, modificou todo o seu depoimento para comprometer o ex-padre, que acusa o delegado de tê-lo torturado. “Nada do que eu disse na PF estava no inquérito”, disse a prefeita, que foi arrolada como testemunha de acusação de Monteiro.

Rosalina não gosta de falar muito sobre sua prisão, ocorrida no mesmo dia que a de Monteiro. Segundo relatou, os policiais federais, comandados por Campelo, interceptaram seu carro quando ela ia de Urbano Santos a São Luís, obrigando-a a voltar para o município, onde o ex-padre seria preso horas depois. “Monteiro estava algemado mas, em nenhum momento, vi seus pulsos feridos, como diz o delegado Campelo”, explicou Rosalina. O diretor da Polícia Federal assegurou que os ferimentos em Monteiro teriam sido causados pelas algemas. “Elas estavam até frouxas”, acrescentou Rosalina.

A prefeita parece esconder algo mais grave que possa ter ocorrido no interrogatório de uma hora a que foi submetida. “Não gosto de lembrar disso”, desconversou, alegando que não recordar mais dos acontecimentos. Sua filha Laura, de 27 anos, entretanto, confirmou que alguma coisa ainda permanece oculta. Como a mãe, preferiu não falar, mas chorou ao lembrar daquilo que supostamente seja fato. “O delegado Campelo era um homem duro, grosseiro”, admitiu Rosalina, assegurando que, por algumas vezes, ele permitiu que seus agentes gritassem com ela e até mesmo lhe apertassem o braço, tentando arrancar uma confissão.

“Eu falava que não sabia de nada, e eles [os policiais] afirmavam que, caso não contasse a verdade, seria pior”, comentou Rosalina. Segundo ela, o que impediu uma agressão maior por parte dos três policiais que estavam na mesma sala de Campelo foi a presença de sua família, que a aguardava no primeiro andar do prédio onde ficava a Polícia Federal. Entre os seus parentes, estava o coronel Eduardo Mota, um cunhado. “Se minha família não estivesse lá, talvez eu teria sido agredida”.

Reconhecimento – Rosalina contou que até hoje não sabe porque foi arrolada como testemunha de acusação contra Monteiro, já que não tinha ligação com o ex-padre. Ela era tabeliã do cartório de Urbano Santos. “Campelo me disse que, caso eu não falasse que Monteiro era subversivo, iria perder o meu cartório”, recordou. “Só fui tomar conhecimento do que havia assinado na PF depois que o caso já estava na Justiça Militar”, acrescentou a prefeita, hoje com 66 anos.

As afirmações de Rosalina coincidem com a conclusão tirada pelos juízes da Auditoria da 10ª Região Militar, que inocentou o ex-padre por falta de provas. Segundo a sentença proferida em outubro de 1970, dois meses depois da prisão de Monteiro, os juízes confirmaram que os depoimentos das testemunhas revelam a coação física e moral pela qual passaram durante a fase do inquérito. Os auditores asseguraram, ainda, que o inquérito havia sido feito de forma errada pelo delegado Campelo.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Testemunha da tortura – entrevista com o bispo Dom Xavier Gilles


FÉLIX ALBERTO LIMA
O Estado do Maranhão
16.06.1999

O bispo dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, do município de Viana (MA), a 240km de São Luís (MA), mostra-se inconformado com a nomeação do delegado João Batista Campelo para o comando da Polícia Federal. Dom Xavier Gilles é formado em Teologia e Filosofia na França, foi ordenado padre em 1962, na cidade de Le Mans, e chegou ao Maranhão em 1963. Em entrevista a “O Estado”, dom Xavier nega que tenha participado de guerrilhas na Argélia, quando serviu ao exército francês, e confirma as denúncias de tortura sofridas pelo ex-padre José Antônio de Magalhães Monteiro. “Estive preso com o padre Monteiro e pude ver as marcas e as escoriações deixadas pela Polícia Federal. O bispo afirma que só não chegou a ser torturado na prisão porque o então arcebispo de São Luís, dom João Mota, fez sérias advertências ao delegado da PF.

Como foi sua experiência na Argélia? Há alguma ligação sua com guerrilhas da Frente de Libertação, como o acusaram na época da ditadura?

Dom Xavier Gilles - Como todo mundo sabe, [aquele período] era a guerra de independência da Argélia. Havia a Frente de Libertação Nacional tentando conseguir a independência da Argélia. A França considerava aquele país como território nacional. Não tenho nenhuma participação em guerrilhas. Não é nada disso. Apenas a polícia federal me acusou de ter participado de centros de treinamento de guerrilhas com a Frente de Libertação Nacional da Argélia. Coisa absolutamente falsa, quando na verdade eu era do exército francês e não da FLN.

Como aconteceram as prisões sua e do ex-padre Monteiro?

Dom Xavier Gilles – Fomos nomeados, eu e o Monteiro, respectivamente, pároco e vigário paroquial, em Urbano Santos e São Benedito do Rio Preto. Chegamos juntos em maio de 1960. Começamos a fazer um trabalho de pregar a palavra de Deus, organizar as comunidades eclesiais. O trabalho era fazer a ligação entre o trabalho e a vida. E aí olhávamos para outros aspectos, como a situação agrária e a vida dos trabalhadores. Havia muita injustiça. Com as comunidades, denunciamos algumas injustiças. Refletíamos sob a luz do Evangelho essa realidade agrária.

Vocês dois foram acusados pela polícia de estarem envolvidos em atividades subversivas?

Dom Xavier Gilles – A fé, o testemunho e a mensagem de Jesus Cristo invertem os valores da sociedade. A sociedade se firma nos valores ter, poder e prazer. E Jesus disse: “Seja misericordioso, acolhe o teu irmão, liberta o pobre das cadeias da escravidão”. Havíamos recebido da igreja uma missão. Não havia, portanto, como parar uma missão recebida por nós sacerdotes só por medo.

Vocês receberam ameaças antes da prisão?

Dom Xavier Gilles – Um pouco. Por causa de problemas agrários no Maranhão. Muitas vezes, os verdadeiros proprietários de terra são expulsos por gente que trafica nos cartórios e até na justiça, que consegue títulos de propriedade que não deveria ter. Então, recebemos ameaças desses falsos proprietários de terra. Só não chegamos a ser ameaçados diretamente pela polícia.

O que exatamente associava o trabalho de vocês à subversão?

Dom Xavier Gilles – Não havia nada nas cartas que nos comprometesse como subversivos. Quando o padre Monteiro foi preso, por exemplo, levaram junto a escrivã Rosalina [Rosalina Costa Araújo], de Urbano Santos, sem razão nenhuma. Talvez apenas porque ela não era do mesmo lado político do pessoal que tinha feito as denúncias contra nós. E a Polícia Federal, sem verificar nada, prendeu essa escrivã, acusando-a de ser secretária da Paróquia. Vai perguntar por que, naquela época, o João Batista Campelo fazia isso, por que razão ele monta um processo sem sentido.

Qual a alegação da Polícia Federal para a sua prisão?

Dom Xavier Gilles – Éramos vigários juntos. A polícia invadiu a Casa Paroquial, o padre Monteiro foi trazido para São Luís e torturado. Rapidamente a polícia viu que não poderia acusar o padre Monteiro, que era vigário auxiliar, sem me acusar. Então foram atrás de mim. O arcebispo de São Luís, que era dom João Mota, foi falar comigo e disse que era preciso eu me entregar porque o processo do padre Monteiro estava bloqueado. Os motivos de minha prisão só fui saber algum tempo depois. Diziam que era por causa da Lei de Segurança Nacional.

Vocês dois ficaram presos na mesma cela?

Dom Xavier Gilles – Só depois de terminar o inquérito. Fomos, depois de terminar o inquérito na Polícia Federal, presos os dois no quartel da Polícia Militar, no atual Convento das Mercês. Foi o Campelo quem fez tudo. Era ele o delegado da Polícia Federal. Ele e o agente faziam as perguntas. Ficamos três semanas na mesma cela.

E com relação às torturas?

Dom Xavier Gilles - Eu não fui torturado. Mas o padre Monteiro foi torturado, sim. Vi tudo logo depois, as marcas, as escoriações e, principalmente, o laudo tanto dos médicos do Estado como do médico do arcebispado, que era o padre João Mohana. Os laudos provam as torturas. Cheguei a ser forçado a provar coisas sem nexo.

E por que só o padre Monteiro foi torturado?

Dom Xavier Gilles – O padre Monteiro foi preso 48 horas antes de mim. Foi trazido para São Luís, interrogado e torturado. A polícia percebeu que não podia acusar o padre Monteiro sem me acusar, pois eu era pároco dele. Tínhamos o mesmo escritório, a mesma biblioteca, as mesmas finanças. Então ele me prendeu. Quando me entreguei, fui acompanhado à polícia pelo arcebispo dom Mota. Ele, como já sabia das torturas ao padre Monteiro, disse à polícia que estava entregando o padre Xavier em bom estado físico e mental. Então, o delegado Campelo perguntou: “O que o senhor está querendo dizer?”. E dom Mota respondeu: “O senhor sabe muito bem o que estou querendo dizer”. Jornalistas, que muitas vezes criam coisas, inventaram na época que não fui torturado porque fui oficial do Exército. Mas nada disso. Não fui torturado porque as torturas ao padre Monteiro foram denunciadas rapidamente e o arcebispo reagiu. Foi graças à lucidez de dom Mota.

O delegado João Batista Campelo assumiu ontem o comando da Polícia Federal. Como o senhor avalia essa nomeação diante das acusações de tortura?

Dom Xavier Gilles – Fico profundamente triste com a nomeação de um homem com o passado como o dele. Num momento como este, mais do que nunca o País precisa de uma Polícia Federal honesta. Fico chocado, mas não posso fazer absolutamente nada. Os testemunhos de um ex-padre e professor de universidade e de um bispozinho lá do interior do Maranhão, para o presidente da República isso e nada são a mesma coisa. Antes de nomear, o presidente já sabia disso tudo e nomeou João Batista Campelo assim mesmo. O próprio presidente, que foi perseguido pelo regime militar, nomeia quem o teria torturado se ele tivesse preso.

Cartas, SNI, igreja e subversão

FÉLIX ALBERTO LIMA
O Estado de São Paulo

Em ofício encaminhado ao então presidente Emilio Garrastazu Médici no dia 12 de setembro de 1970, o então presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Agnelo Rossi, confirma que “o padre José Antônio de Magalhães Monteiro sofreu realmente torturas e maus tratos, quando esteve detido na Polícia Federal”.

De acordo com o documento, a constatação se baseia não apenas no depoimento de Monteiro, mas nos laudos médicos e em circunstâncias curiosas, como “proibição ao arcebispo de São Luís de falar com o padre durante a detenção, a posição arrogante das notas divulgadas pela Polícia [Federal] e a referência a algemas que explicariam as escoriações nos braços do sacerdote”.

Dom Agnelo Rossi mostrava-se também surpreso com a afirmativa da Polícia de que “o padre Xavier Gilles de Maupeou participara de guerrilha na Argélia”. A presença do sacerdote na Argélia, segundo o ofício da CNBB, fazia parte de uma missão do governo da França, “na qualidade de oficial do Exército francês”.

O documento de Agnelo Rossi pede, por fim, providências para que seja evitada a divulgação de notas, por parte da Polícia Federal, que ponham em dúvida a conduta de “pessoas merecedoras de respeito”, numa alusão ao caso dos padres Xavier e Monteiro.

Nota oficial - Em uma das notas divulgadas pela Polícia Federal sobre o episódio da prisão dos padres José Antônio de Magalhães Monteiro e Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, o então subdelegado regional do DPF no Maranhão, João Batista Campelo, faz questão de afirmar a importância da repressão no combate de atividades subversivas.

Em nota divulgada no dia 26 de agosto de 1970, o subdelegado explica didaticamente à opinião pública que “o que se procura é impedir, prevenir e reprimir, dentro dos postulados da Constituição do Brasil, dos Direitos do Homem, da Lei de Segurança Nacional, os crimes cometidos contra as nossas tradições e costumes”.

Campelo contesta as acusações, na época, do envolvimento da Polícia Federal com tortura. “São infundadas. Tais manifestações visam tão-somente confundir a opinião pública e ao mesmo tempo aliciá-la para que se volte contra a Polícia Federal”.

A nota da subdelegacia confirma o laudo expedido pela Divisão Médica da Secretaria de Segurança Pública do Maranhão sobre a ausência de lesão corporal no padre Xavier Gilles. O subdelegado, porém, faz questão de transcrever tecnicamente os dados do laudo referente a José Antônio Monteiro. “Constataram escoriações no terço interior do antebraço esquerdo de dois centímetros de extensão por um de largura, e do antebraço direito de um centímetro de extensão por um e meio de largura”. A conclusão da nota da Polícia Federal é quase patética: “Isto demonstra que os suplícios e torturas que os inimigos do nosso regime nos acusam não passam de uma velha tática comunista de sensibilizar os menos avisados”.

Os menos avisados, no caso, eram os leitores da nota que, devido à imposição da censura na época, não tomavam conhecimento, pelos jornais, do que se passava nos porões da ditadura militar.

SNI - A prática de subversão dos padres José Antônio Monteiro e Xavier Gilles estava associada basicamente a correspondências, envolvendo os sacerdotes e amigos, confiscadas pela Polícia meses antes da prisão.

Um relatório do Serviço Nacional de Informações (SNI), datado de 20 de outubro de 1970, esboça de forma cronológica o “crime” cometido pelos padres. O relatório é uma espécie de prestação de contas do general Carlos Alberto da Fontoura, chefe do SNI, ao padre João José da Motta e Albuquerque, arcebispo de São Luís.

Em uma das cartas anexadas ao relatório do SNI, um remetente que assina apenas como Bernardo (provavelmente padre) fala a José Antônio Monteiro de um seminário de estudos políticos que estaria acontecendo em Meruoca, no Ceará. “O movimento tomou uma nova linha de ação que não será mais aquela linha reformista, mas sim uma linha de ação revolucionária, uma ação no engajamento, em prioridade nos meios de produção”, diz a carta.

As oito correspondências anexadas ao relatório são criteriosamente analisadas pelo chefe do SNI. “O teor das cartas permite deduzir, com segurança, que os padres José Antônio de Magalhães Monteiro e Xavier de Maupeou têm ideias socialistas e estão comprometidos com o chamado movimento progressista da igreja”. Segundo a avaliação do general Fontoura, os amigos de Monteiro “vão aos lugares-comuns das lutas pela libertação do povo oprimido e da contestação política”. Pela análise do chefe do extinto SNI, a correspondência “deixa ainda claro que as ideias socialistas estão bastante infiltradas entre os seminaristas do Nordeste”.

A tortura, o jornalismo e a queda do delegado

No dia 15 de junho de 1999, há exatamente 12 anos, o então presidente Fernando Henrique Cardoso empossara o delegado João Batista Campelo como diretor-geral da Polícia Federal, numa cerimônia relâmpago, que gerou um grave problema de imagem para o governo tucano. No centro da crise estava o ex-padre maranhense José Antônio de Magalhães Monteiro que, ao ouvir rumores da provável nomeação na PF, resolveu abrir a caixa-preta que escondia certos segredos da carreira policial de Campelo.

Monteiro contou que fora torturado por Campelo em 1970 durante interrogatório na subdelegacia da Polícia Federal em São Luís (MA). A confissão do ex-padre abriu o apetite da imprensa sobre o assunto. As informações de Monteiro foram ratificadas inicialmente pelo bispo de Viana (MA), dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, em entrevista publicada no jornal “O Estado de São Paulo” e reproduzida no jornal “O Estado do Maranhão”. As denúncias de tortura ao ex-padre também foram confirmadas pela então prefeita de Belágua (MA), Rosalina Costa Araújo, em reportagem especial publicada com chamada de capa no “Estadão”. Rosalina admitiu pela primeira vez, depois de 29 anos de silêncio sobre o episódio, que fora coagida moral e fisicamente pelo delegado Campelo a prestar depoimento acusando Monteiro.

E o que pesava sobre o maranhense? Monteiro, ao lado de dom Xavier, era tido pela Polícia Federal como integrante da ala progressista da Igreja Católica, responsável por acobertar “movimentos subversivos” pelo Nordeste, o que em tese representava uma ameaça ao regime militar. O trabalho das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) era acompanhado de perto pelo aparelho repressor do Estado. Por ter servido ao exército francês, dom Xavier foi acusado pela polícia de participar da guerrilha que encampou a Frente de Libertação Nacional da Argélia.

Monteiro e Xavier foram vigários na mesma paróquia de São Luís. Após o cerco do regime, ambos ficaram durante três semanas presos na mesma cela, no quartel da Polícia Militar, no atual Convento das Mercês. Monteiro foi detido primeiro, e provavelmente torturado antes da prisão de Xavier. Contra os padres, segundo contou em entrevista dom Xavier, a PF alegou a Lei de Segurança Nacional. Xavier escapou da tortura graças à intervenção do então arcebispo de São Luís, dom João Mota, que já havia constatado escoriações em Monteiro.

José Antônio de Magalhães Monteiro, que é irmão do presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Luís, Leonardo Monteiro, mesmo morando fora do Maranhão, não deu trégua à nomeação de Campelo para o posto principal da Polícia Federal. De Viana, Dom Xavier Gilles também deixou o silêncio de lado e levantou a voz contra a sombra da tortura. Por pressão da imprensa e da opinião pública, João Batista Campelo foi defenestrado do cargo três dias após a posse.

Quem eram os torturadores?


Todos os documentos que deram origem ao projeto e ao livro “Brasil: Nunca Mais” estão de volta ao Brasil, depois de alguns anos mantidos no exterior pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e pelo Center for Research Libraries (CRL). O acervo foi montado numa ação clandestina durante os primeiros anos da década de 1980 para identificar violações aos direitos humanos durante a ditadura militar brasileira. A repatriação do acervo foi anunciada oficialmente nesta terça-feira, dia 14, em ato público organizado pela Procuradoria Geral da República da 3ª Região, em São Paulo.

Os documentos foram enviados aos Estados Unidos por cautela, para evitar que informações importantes sobre a história recente do País – inclusive inúmeras provas e evidências de tortura - fossem confiscadas e até mesmo destruídas por agentes ou grupos ligados ao regime militar. Todo o material foi digitalizado e o acervo reúne 707 processos do Superior Tribunal Militar, um milhão de cópias de documentos e 543 rolos de microfilmes.

“Brasil: Nunca Mais” foi idealizado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, e desenvolvido entre 1979 e 1985. Durante seis anos, uma equipe de 30 pesquisadores vasculhou toda a documentação militar de uma das fases mais sombrias da história política do País (1961 a 1979). Uma síntese da pesquisa foi editada pela Vozes e resultou no livro “Brasil: Nunca Mais”, lançado em 15 de julho de 1985, quatro meses depois do início da fase de abertura política no Brasil.

E o que o Maranhão tem a ver com esse período nebuloso de torturas, desaparecimento de presos políticos, perseguição e morte? Vamos falar sobre isso mais adiante.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Letra no forno

Há de tudo na prateleira da internet. É preciso saber apreciar. O tempo é uma fortuna. Para fugir do variado cardápio de iguarias indigestas, recomendo o Cuscuz Delivery (cuscuzdelivery.blogspot.com), blog do jornalista Reinaldo Barros. O texto tem sabor e abre o apetite para a informação despretenciosa.

Reinaldo Barros escreve sobre temas variados - vai da literatura à política com insuspeitada desenvoltura, por exemplo -, sempre com uma linguagem picante, às vezes ácida, como pedem os bons banquetes na oferta de sabores da blogosfera. Não, ele não é mais um blogueiro ofegante atrás do furo jornalístico. Tem maturidade o suficiente para deixar que outros brinquem por aí de pega-pega.

Cuscuz Delivery é prato cheio para quem tem fome de inventividade.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O lamento das toadas, a alegria dos batalhões


O São João não é exatamente a festa da carne, como é o Carnaval na sua essência. Mas em terra onde quem rodopia sorrateiro é o boi, a carne não pode ser reduzida a uma simples alegoria. Quando o pandeirão se agita em noite de guarnicê, o couro treme e o pêlo eriça. No apito final da festa (São Marçal, capítulo 30, mês 6, versículo do meio-dia, bairro do João Paulo) a carne se expõe e, sob o sol, a pele vira do avesso. Homens tocam o tambor como se fosse a última vez, a mão sangrando, a avenida em transe.

Mas o rito do boi está apenas começando. O mês de junho anuncia a fé do povo nos santos que rezam na cartilha da cultura popular maranhense. Santo Antônio faz o casamento da tradição com os apetrechos da modernidade, link entre o pretérito perfeito e o acolá indecifrável. São João, do alto do seu paiol de crendices, arrenega a escuridão e acende a fogueira em praça pública. Fiat lux! São Pedro faz chover no piquenique eletrônico das boates e dos shows de música baiana, mas mantém a chama/trama que nasce no riscar das matracas, renascimento temporão do fogaréu primata.

As festas juninas do Maranhão transitam entre o singular e o plural, linha tênue entre a língua do boi e a multidão. Um vaqueiro aprisionado no visgo que separa o curral do arraial. Comer a língua é uma mistura de propósito, pretexto e desejo de Catirina, a mulher engravidada por Francisco. No fundo, ela pressente a ressurreição da carne. Vaqueiros amotinados fazem a pajelança em volta do boi morto-vivo que perdeu a língua. O fazendeiro ouve de longe a batida dos chocalhos. O novilho desperta e a fazenda em festa dança. O que era língua agora vira sotaque.

O colorido papel de seda encobre de luz o céu da cidade. São Luís é um carrossel de bandeirinhas espichadas no cordão. Cheiro que sai da pólvora nas bombinhas de rua. Canutilhos na paisagem. Cenário que nasce dos batalhões de gentes simples, herança das raças que não se regra nem mesmo nos tempos de sequidão do pote oficial. Foco no maracá! Amo e toada juntos, público à espreita. Anônimos que se transformam em amos, senhores que ganham vida no meio da noite junina.

O maranhense se rende todos os anos aos personagens que fazem a história do bumba-meu-boi, capítulo especial da nossa cultura popular. Fusão de etnias que mexe com o imaginário coletivo. Vai começar o bumbar do bombo que se estende até a mais alta hora da madrugada. Nas praças, nos bairros, nos terreiros. Humberto, Chiador, Chagas e tantos outros que fazem do lamento um canto de esperança; que com a voz sentida fazem tremer o chão e a alma. A eles, a nossa reverência.