segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

1998, o ano da Mystical Roots


Primeiro CD da Mystical Roots: gravado, com capa criada por
Cláudio Vasconcelos, mas projeto foi abortado pela banda


A história da banda e do disco jamais lançado

 

Por Eduardo Júlio

 

Em uma noite de um sábado do mês de janeiro do longínquo ano de 1998, uma das principais bandas de reggae de São Luís de todos os tempos, a Mystical Roots, anunciou a produção de seu primeiro disco. A divulgação do aguardado lançamento foi feita com a promoção de um show no bar Ponta da Ilha, localizado no finzinho do bairro Ponta d’Areia.

 

O show da Mystical Roots teve como objetivo arrecadar dinheiro para ajudar no financiamento da produção do disco. Quem comprava o ingresso a R$ 8 teria direito ao CD, bastava guardar o bilhete para trocá-lo pela bolachinha quando estivesse pronta. Quem optou por pagar R$ 3, limitou-se a assistir ao show.

 

O Ponta da Ilha era uma casa noturna, localizada nas instalações do antigo Clube de Regatas, um espaço dedicado a praticantes de atividades náuticas. Depois de ter se tornado bar, o estabelecimento já havia se chamado Zion. Posteriormente, ainda ganhou outras denominações como Dreadzone e Alternativo, até se tornar o extinto Trapiche na metade dos anos 2000, famoso clube de reggae para o público de classe média.

 

Um detalhe: nos anos 90, aquela parte do litoral da ilha ainda estava longe de ser conhecida como Península da Ponta d'Areia, denominação dada por construtores e empresários do setor imobiliário, quando a área se tornou o metro quadrado mais caro de São Luís.

 

Na época, depois de várias formações, a Mystical Roots era composta por Luciana Simões (vocal), Júnior Echoes (vocal e guitarra), Dario Ribeiro (guitarra), Ricardo Jansen (baixo), Alfredo Luís (percussão) e Fran Bouéres (bateria).

 

Talvez tenha sido a formação mais coesa e madura (no âmbito musical) dessa primeira fase, que durou de 1995 a 1998, período em que a banda realizou muitos shows na capital maranhense. Em 1999, o grupo seguiria para São Paulo, quando trocou novamente de formação, permanecendo somente, entre os integrantes mais longevos, Júnior Echoes, Luciana Simões e Ricardo Jansen.

 

Ao lado da Guetos e da Conexão Rasta (embrião da Nego Bantu, que depois se chamaria Mano Bantu, liderada pelo baixista Gérson da Conceição, morto em 2019), a Mystical Roots formava a tríade de bandas de reggae da capital, que em quase todos os finais de semana animava as noites do público jovem da cidade. Nessa época, a famosa Tribo de Jah já havia conquistado o mundo.

 

SEM SOM

 

Uma curiosidade sobre o disco que motivou o show da Mystical Roots no Ponta da Ilha reside no fato de que o prometido CD jamais chegou a ser lançado. Pelo menos, não aquele que estava no forno. A gravação feita de forma analógica em um estúdio de São Luís nunca agradou aos integrantes do grupo e, após várias tentativas de salvá-lo, o projeto foi descartado.

 

O baixista da banda, Ricardo Jansen, conta que algumas tentativas de melhorar as frequências do som do álbum foram feitas, mas nenhum dos resultados foi satisfatório. “Quando gravamos, havia a tecnologia, mas não existiam técnicos especializados em São Luís. Faltava a masterização do disco e, depois de algumas interferências feitas quando já estávamos em São Paulo, ninguém mais quis mexer, porque o som esperado não veio, não saiu”, contou.

 

O disco continha alguns covers e músicas autorais conhecidas do público que frequentava os shows da banda, como Pisa na fulô (João do Vale), Ando meio desligado (Mutantes), Xeque-mateSkaindo foraNão sei Meia palavra bas.

 

Segundo Ricardo Jansen, ao longo dos anos, a matriz da gravação foi perdida e ninguém mais sabe onde foram parar os registros originais daquele álbum.

 

Júnior Echoes lembra que, no ano da gravação, em 1998, as fitas originais analógicas chegaram a ser levadas para a masterização, em São Paulo, no New Studio de Luís de Bone, tecladista de O Terço, lendária banda nacional de rock progressivo. O trabalho teria passado pelas mãos de Fábio Haddad, na época técnico de som de Rita Lee, mas ninguém conseguiu salvar o registro.

 

Quando a Mystical Roots já estava radicada em São Paulo, no ano posterior, uma nova gravação foi feita com o produtor do grupo Racionais MCs, Milton Sales (apresentado à banda pelo DJ Joaquim Zion), mas o resultado também não agradou. Na época, a Mystical dividia uma casa sem mobília em Guarulhos com a Mano Bantu, que também gravou com o referido produtor.

 

A banda em rápida passagem pelo Rio, no período de gravação de novela da TV Globo

Então, depois de esperar mais um tempo, a Mystical Roots realizou um terceiro registro, desta vez com a produção assinada por Reghata Mulambo e pela própria banda, cujo resultado convenceu os integrantes.

 

Assim, em 2003, a banda finalmente lançaria o seu primeiro disco de fato, intitulado Pras bandas de lá..., gravado no estúdio Space Blues em São Paulo, com repertório um pouco diferente do trabalho feito em São Luís. “Quem guardou o cupom naquela noite de 1998, recebeu o nosso disco anos depois. Pelo menos, imagino que isso tenha acontecido”, lembrou de forma bem-humorada Junior Echoes.

 

Sobre o disco Pras bandas de lá..., o baixista Ricardo Jansen comenta com satisfação: “Tenho muito orgulho desse disco. Acho que a gente conseguiu apresentar um trabalho de grande qualidade. Todas as pessoas envolvidas fizeram o seu papel”, disse.

 

O álbum foi gravado ao lado dos novos integrantes na época: Márcio Diniz (vocal e teclado), Ivan Monteiro (guitarra solo) e Giuliano Laurenza (bateria).

 

Junior Echoes também recorda com alegria o resultado do registro definitivo. “A gente entrou com tanta segurança e o estúdio era muito equipado. Tinha todos os recursos que a gente queria. Os caras gostavam de reggae e possibilitaram a gravação de faixas dub, inclusive. Daí, a gente bateu o martelo e pensou: esse disco, agora sim, a gente pode mostrar para o público com orgulho”.

 

Antes da separação, a banda ainda emplacaria, em 2004, a música Pras bandas de lána novela das sete da TV Globo, Da cor do pecado, em parte filmada em São Luís, que teve no elenco estrelas como Reynaldo Gianecchini e Taís Araújo.

 

Assim como as demais bandas de São Luís, cuja base do som era o ritmo jamaicano, a Mystical Roots possuía um repertório singular formado por composições autorais e covers escolhidos a dedo. O som misturava reggae e ska, com rock, dub e células de ritmos da cultura popular local como o cacuriá, por exemplo.

 

O grupo também conquistou um público fiel, que o acompanhava por todos os lugares por onde a banda tocava. Eram jovens de classe média, que curtiam o ritmo jamaicano, além de rock e de música brasileira. Praianos, notívagos, artistas e universitários faziam parte dos seguidores cativos da banda.

 

Uma parte era órfã do clube de reggae Espaço Aberto, localizado no São Francisco, que havia entrado em declínio justamente em 1995, ano em que o circuito de shows das bandas de reggae havia se ampliado na capital.

 

VÁRIOS SHOWS

 

Naquele sábado de pré-carnaval, o Ponta da Ilha estava lotado e a Mystical Roots retribuiu ao público, tendo realizado um dos shows mais animados e intensos daquele período, exatamente como conta Júnior Echoes: “Lembro que foi uma noite muito especial, porque a gente se preparou muito para esse show. Além disso, a casa estava lotada e quem pôde contribuir, contribuiu. A gente ficou muito feliz com o resultado e estávamos em um ritmo crescente”.

 

Em 1998, a banda ainda faria outros shows para divulgar a gravação do disco. Houve também uma apresentação antológica, no mês de setembro, na cidade de Alcântara, no bar e pousada Tijupá, durante a Festa de São Benedito, que praticamente marcou a despedida do grupo das terras maranhenses.

 

Um grande público jovem se deslocou até a cidade histórica, separada por mar da ilha de São Luís, tanto para ver a banda quanto para curtir o festejo que tem como atração principal as apresentações dos grupos de tambor de crioula, que atravessam a madrugada por todo o final de semana.

 

“Eu tenho uma ótima lembrança daquela época, porque mudou completamente a minha vida e, depois, nunca mais tive um grupo tão grande de amigos. Lembro de tudo com muita felicidade em meu coração”, completou Junior Echoes.

 

CAPA

 

Ao contrário das fitas originais do álbum, que parecem perdidas, o designer Cláudio Vasconcelos, autor do primeiro projeto da capa do disco, guardou o layout original do que seria o encarte do CD e comenta com alegria a confecção do trabalho. Inclusive, a foto da banda foi feita pelo irmão dele, o premiado fotógrafo Márcio Vasconcelos. “Foi um trabalho que fiz com muito carinho, com muito zelo, mas, na época, se não me engano, a banda não aprovou, não sei por qual razão”, contou Cláudio.


Com fotos de Márcio Vasconcelos,
encarte do disco que não vingou


Junior Echoes nega a rejeição à capa. “Nós adoramos. A questão é que aquele disco não chegou a ser lançado. Então, tivemos que optar depois por outro projeto”.

 

A capa do primeiro projeto teria uma foto do grupo em forma de Shiva, o deus indiano de muitos braços e apresenta os rostos de todos os integrantes, com o de Luciana Simões ao meio, em destaque.

 

A imagem também remete à capa do primeiro disco dos Secos e Molhados.

 

JAMAICA BRASILEIRA

 

Nos anos 90, São Luís respirava reggae. O ritmo tocava em todos os lugares: nas rádios, nas paradas de ônibus, nos botecos de esquina, nas casas noturnas, nos estacionamentos. Era um gênero musical ouvido por quase todos os segmentos sociais

 

O embrião da banda foi o grupo Pitty e o Som da Jamaica, cujo vocalista era o cantor e compositor Pitty de Alcântara, falecido recentemente durante a pandemia. Ele permaneceu pouco tempo no grupo, sendo substituído pelas vocalistas Luciana Simões, que cantava na banda de rock Bota o Teu Blues Band, e Adriana Miranda, atualmente em carreira internacional com o nome Danna Miranda.


Foto da formação inicial da banda, com Adriana, Luciana e Júnior Echoes 

Curiosamente, o nome Mystical Roots foi dado por um andarilho jamaicano de nome Steve Jackson, que chegou a acompanhar a banda quando o grupo ensaiava no casarão do Laborarte, no Centro Histórico de São Luís.

 

Logo após as primeiras mudanças de formação, a banda passou a se apresentar de forma constante nos bares de São Luís da época. Cronologicamente, passou pelo La Rotisserie (São Francisco - 1995), Kingston (Ponta do Farol – 1995), Peixe na Telha (Ponta do Farol – 1996), África Brasil (Litorânea – 1996), Antigamente (Praia Grande - 1997), Ponta da Ilha (Ponta d’Areia – 1998), Bar do Nélson (Litorânea – 1998), Creòle (Ponta d’Areia), entre outros.

 

Além dos integrantes já citados, vários músicos e artistas passaram pelo grupo, a exemplo de Vicente Belaglovis (teclado); Celsinho Leal (teclados); Augusto Junior (guitarra); Athos Lima (guitarra); Marinaldo Marques (percussão) e André (percussão).

 

A Mystical Roots se apresentou em vários estados do Brasil e foi destaque na programação da segunda edição Maranhão Roots Reggae Festival, em 2003.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Com auroras no coração


Ilustração de Fernando Mendonça

Como deixa bem claro logo na primeira piscadela, Antônio Carlos Alvim traz na bagagem do livro O silêncio dos olhos a trincheira de impressões que acumulou na dura caminhada, como as lições da pedra cabralina, os minérios vingativos de Drummond e as bananas podres de Gullar, dentre outros utensílios inescapáveis de uma viagem que pode durar uma vida, uma guerra ou – quem sabe? – uma pandemia interior. São ferramentas que ajudam a compor o calcanhar errante do autor. 

No primeiro livro de poemas, Floresta de signos (Ed. Penalux, 2019), estão as pegadas de um andarilho que se perdeu do bando, mas que jamais abriu mão da poética, mesmo quando o mínimo que se apanhava do chão era o lirismo. Este segundo livro é um segundo passo, mais firme, de quem faz do verso um recomeço a cada dia.  

Mas a origem da poesia de Alvim está no ventre soturno da Akademia dos Párias, na irreverência, no controverso. Por mais que tente se desgarrar, restará por perto uma ponta solta, um fio desencapado, uma combustão a moldar a pena, como no poema Silêncio: ‘meu coração/ é um arsenal de pavores/ não receio a morte/ a vida me dá luto’.  

É provável que o leitor desconfie que por trás do poema exista uma cilada quase biográfica, mas, como em todas as imbricações da poesia, ficará preso nesse labirinto malsão da desconfiança. Por entre as linhas que povoam a íris silenciosa, introvertida, do poeta, haverá um luminoso sol debruçado na arrebentação das manhãs. 

Como quem prefere andar por aí à margem, pelo acostamento, com sua polaroide imaginária a tiracolo; como quem observa a rua, a alma dos passantes, o mundo ao redor, pelo buraco da fechadura, Alvim tem um estilo peculiar de apreender o poema com a voz baixa de um velho sábio. O silêncio dos olhos é uma elegia ao poeta qualquer que, sob o incenso de muita inventividade, prefere enxergar a vida de soslaio.    

O tempo, ao que parece na poesia de Alvim, é uma armadura inútil que insiste em tatear a página: ‘Toda casa envelhece/ com seus donos/ paredes/ venezianas/ taco/ sótão’. A casa é o próprio poeta reencontrando-se com o espelho depois de uma jornada intensa na estiva de horizontes recortados por realidades quase mortas, como no poema Idade: 

 

(...)

quase não tenho notado

essa transformação

que devagar

constante

e eternamente

do espelho 

vem esmaecer

o meu rosto

 

Com O silêncio dos olhos, o poeta está de volta ao jogo, abrindo, sem temores, a porta de sua casa, dobrando as esquinas do mundo de cabeça erguida. Ao lado de seus guias, gurus e xamãs, ele só quer percorrer o dia com auroras no coração, para depois, quando enfim vier o crepúsculo, tirar um fino na esperança. Ouça o que tem a dizer o olhar translúcido de Antônio Carlos Alvim. 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Boi de Pindaré e os 50 anos de uma toada que rompeu preconceitos



Antes cultuados apenas como objeto de estudo e admiração por intelectuais, professores e artistas, os cordões de bumba meu boi passaram a ocupar um lugar de destaque no cenário da cultura do Maranhão em finais da década de 1960. Mas foi no ano de 1972, com a gravação do LP Bumba meu boi sotaque de Pindaré, no Rio de Janeiro, que a manifestação rompeu barreiras e preconceitos sociais e raciais e alcançou as ondas do rádio, especialmente com a toada Urrou do boi, de autoria de Bartolomeu dos Santos, o Beto Coxo, popularmente conhecido como Coxinho, e por ele cantada.

 

Com o sucesso do disco, o Boi de Pindaré – que surgiu em 1960 de uma dissidência do Boi de Viana – começou a participar de apresentações em outras capitais do País, Coxinho conquistou a fama e a toada Urrou do boi, ao longo desses 50 anos, ganhou algumas regravações, dentre elas a do grupo Boca Livre, em 1980, no LP Bicicleta.

 



Coxinho deixou o Boi de Pindaré com a morte do dono da brincadeira, João Câncio dos Santos, no início dos anos 1980, voltou a cantar no Boi de Viana e começou a travar uma luta inglória pelos direitos autorais sobre suas composições. No disco do Boi de Pindaré de 1972, por exemplo, não há qualquer menção aos autores e cantadores das toadas. 

 

Com dificuldades financeiras e a saúde debilitada – a visão comprometida e feridas nas pernas –, Coxinho passou a pedir esmolas na calçada do antigo Cine Éden, na rua Grande. Foi o apresentador José Raimundo Rodrigues quem se compadeceu da situação e iniciou campanhas na TV e no rádio de solidariedade a uma das figuras mais emblemáticas da cultura do Maranhão. 

 

Em janeiro de 1991, José Raimundo lançou, na praça Deodoro, o LP Raízes, uma coletânea de 14 toadas em homenagem aos principais cantadores de boi. No disco, produzido pela JBG e gravado no estúdio Sonato, estão Humberto do Maracanã, João Chiador, Zé Olhinho, Inaldo, Donato, Zé Alberto e, claro, Coxinho, entre outros.   

 

Pouco mais de dois meses depois do lançamento do LP, Coxinho não resistiu aos problemas de saúde. Morreu no dia 3 de abril de 1991, pobre, com uma modesta aposentadoria de funcionário público estadual e sem o devido reconhecimento de seus direitos autorais. 

            

No dia 12 de dezembro de 1993, em projeto de iniciativa do então deputado Benedito Coroba, o governador Édison Lobão sancionou lei que confere à toada Urrou do boio título de Hino Cultural e Folclórico do Maranhão. Pela lei, todos os eventos culturais em território maranhense ficam obrigados a tocar a toada de Coxinho, nos ritos de abertura e encerramento.

 

Tantos outros trabalhadores pretos do interior do Maranhão, estivadores e iletrados como ele, descendentes de famílias de camponeses da Baixada ou dos arredores da Ilha de São Luís, encontraram no auto do bumba meu boi – e também no tambor de crioula, no tambor de mina – uma janela de oportunidade para a expressão de suas agruras e alegrias. 

 

A história do bumba meu boi é também a história de vida de Coxinho, nascido em 1910, no povoado de Lapela, município de Vitória do Mearim, filho de remanescentes de escravos, que fez do seu urro musical o berro de muitos maranhenses. Salve, grandes e pequenos! Fora da lei, ficou mesmo a voz como um gemido, rouco e triste, desses que se reconhecem ao longe. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Os caminhos de Péricles


 

Péricles Rocha compõe parte significativa da história das artes plásticas no Maranhão das últimas quatro décadas. É um artista em tempo integral, disciplinado, intenso, e que não faz concessões para manter viva a exuberância de traços e cores inconfundíveis, abrolhados no sertão do imaginário popular, ainda na infância da pequena Benedito Leite.

 

“Meus caminhos” é uma exposição que mapeia a alma peregrina de Péricles Rocha, que revela a imensidão de alegorias que vem pavimentando o destino do artista. De Codó a São João dos Patos. De São Luís a Alcântara. Do Rio de Janeiro a Florença. As impressões do andejo estão em toda parte, nessa comunhão de mitos e lendas e nas delicadas epifanias entre o sagrado e o profano que povoam a maturidade do artista, agora impregnada em trinta telas de rara harmonia estética. 

 

Péricles Rocha conhece como poucos as belezas e as agruras do Maranhão profundo. Aprendeu ainda muito cedo a alquimia das cores que nascem do urucum, da tabatinga, do toá. O ocre, o amarelo telha, o verde sutil, o vermelho sangue e o azul discreto iluminam cazumbás, guarás, inhaúmas, garças, paisagens, santos e quilombolas que desfilam nesse celeiro de inventividade do artista. 


 

Ora lúdico, ora sincrético, o pintor cria suas próprias cores – as cores de um Maranhão barroco, incorpóreo, às vezes de um Piauí ancestral – para alcançar, sem freios, a sua literatura de cordel numa tela de tecido ou esticada numa lona de caminhão de beira de estrada. Nos trabalhos dessa exposição há o mundo onírico contado pelas pretas velhas do interior, as padroeiras, os santos do pau oco, os bichos de assombração, as brincadeiras de menino, a fé sem cabresto.  

 

Como um São Sebastião açoitado pelas flechas do acrílico sobre a tela, o artista está aprisionado na hierarquia sacrossanta dos anjos de catedrais em ruínas de Alcântara. A arte é o mangue. São os olhos de neon do bumba meu boi de Santa Fé. É a Festa do Divino. É o Barrica de Godão. É o Pai Francisco com a máscara do mestre Abel.

  

“Eu pinto a gente que crer”, diz ele. E nessa exposição de agora estão histórias colecionadas pelo tempo. Para cada tela há um enredo, uma vida, um segredo, uma adivinhação, um degredo. “Meus caminhos”, portanto, é essa engenhosa profissão de fé. Péricles Rocha é meio Maranhão, meio norte. Arte emaranhada no mundo.

 

Zé Limeira, o surrealista bárbaro

 

Em 1980, a gráfica do Senado trouxe a lume, pela Coleção Machado de Assis, a quinta edição do livro Zé Limeira, poeta do absurdo, de Orlando Tejo (a primeira edição da obra é de 1973), com capa e ilustrações de um Péricles Rocha ainda em início de carreira. Hoje essa edição é uma raridade, encontrada somente em alguns poucos sebos do País.  



A primeira exposição individual, de 1977, na Galeria Sérgio Milliet, no Rio, ainda fazia eco quando Péricles recebera o convite do jornalista e poeta paraibano Orlando Tejo, intermediado pelo então senador José Sarney, para ilustrar o livro sobre o lendário cordelista Zé Limeira. À época, o artista maranhense era servidor público da gráfica do Senado. 

 

Foi tudo muito rápido e Péricles teve pouco mais de um mês para entregar treze desenhos em bico de pena a partir da leitura dos versos de Zé Limeira. “Entreguei os originais ao Orlando Tejo e nunca mais os recebi de volta”, conta o artista. Embora naquele momento sem muita intimidade com a obra do cordelista analfabeto nascido em Teixeira (PB), Péricles não encontrou dificuldades para traduzir a explosão de delírios nos versos de Zé Limeira.




Único surrealista bárbaro perdido nos sertões do Nordeste, como observa Tejo, Zé Limeira ainda hoje exerce fascínio entre os estudiosos da cultura popular brasileira, por seu sotaque provocador, brejeiro e universal, pelas corajosas inflexões de andarilho mítico, num período que precede vocações transgressoras no Brasil. 

 

‘Ano passado eu morri/ mas esse ano eu não morro”, os versos que em 1976 ficaram famosos na canção Sujeito de sorte, de Belchior, em verdade pertencem na essência ao rico acervo de cantorias de Zé Limeira inventariado – ou mesmo fantasiado, reinventado – por Tejo. 



A canção de Belchior, que virou quase um hino desses anos soturnos com as dores da pandemia, e também de obscurantismo no cenário político brasileiro dos últimos meses, nasce de um jogo de palavras do homem simples dos confins nordestinos que faz tremer a verossimilhança, que confunde realidade com fantasia:    

 

Em já cantei no Recife,

Dentro do Pronto Socorro,

Ganhei duzentos mil réis,

Comprei duzentos cachorro,

Morri no ano passado,

Mas esse ano eu não morro!

 

Foi com as imagens captadas nesse playground mágico, de luminosa estroinice, que Péricles Rocha começou a urdir a sua teia de ilustrações para o livro sobre o poeta do absurdo. O artista materializou em desenhos ilógicos as pelejas de repentistas alados, o truque das escrituras sagradas, o humor improvável, o coice da besta-fera, o homem em permanente estado de mutação, a viola reencarnada. 

 

Quando Dom Pedro Segundo

Governava a Palestina

E Dona Leopoldina

Devia a Deus e ao mundo,

O poeta Zé Raimundo

Começou a castrar jumento,

Teve um dia um pensamento:

Tudo aquilo era boato,

Oito noves fora quatro,

Diz o Novo Testamento!



Forjada nesses surtos da imaginação humana, desde as primeiras leituras dos versos de Zé Limeira, a obra de Péricles Rocha há muito flerta com o surrealismo, a loucura, o mimetismo do medo com as memórias da infância, a poesia que causa solavancos. O cordel telúrico do artista maranhense é uma vastidão de lembranças picotadas a cada nova exposição, a cada novo projeto. 

 

A obra de Péricles Rocha é uma bela corrente de invenção. Como um dia também inventado talvez tenha sido o personagem Zé Limeira.  

 

terça-feira, 12 de julho de 2022

De Daomé à Casa das Minas, a rota de escravidão da rainha


Rio - Ao perceber a presença de maranhenses na fila de autógrafos do terceiro volume da série Escravidão (editora Globo Livros), o historiador Laurentino Gomes foi logo chamando a atenção para um capítulo especial do livro dedicado a Nã Agotimé. Na noite de ontem estávamos eu, o poeta Salgado Maranhão e meu filho João Vítor com a namorada Jorgeanna na Livraria da Travessa, no lançamento da obra que fecha a trilogia e faz um recorte temporal da Independência do Brasil à Lei Áurea.  

 

Laurentino bebe nas fontes do historiador Alberto da Costa e Silva e dos antropólogos Pierre Verger (também etnógrafo e fotógrafo) e Sérgio Ferretti para associar a história da rainha africana Nã Agotimé às origens do Querebentan de Zomadonu, a popular Casa das Minas que resiste ao tempo na rua de São Pantaleão, no Centro de São Luís. 

 

Não obstante o volume de segredos e mistérios guardados nos rituais de culto afro no Brasil, respeitados na maioria dos estudos antropológicos, Nã Agotimé teria fundado a Casa das Minas no Maranhão depois de ser vendida ao Brasil como escrava durante guerra familiar pela sucessão do trono de Daomé (atual Benim) no final do século XVIII.

 

Oficialmente, a Casa das Minas foi fundada por Maria Jesuína, em nome de quem está a escritura mais antiga do imóvel, datada de 1847. Há quem diga, porém, que Maria Jesuína nunca teria existido. Seria apenas um codinome para esconder “a verdadeira responsável pela criação desse local de culto, cuja identificação por razões obscuras se manteria até hoje como um segredo muito bem guardado pelas suas sucessoras”.   

 

Nã Agotimé foi uma das muitas esposas do rei Agonglô. Nã tomou partido de um dos filhos para assumir o reinado após a morte de Agonglô. Mas a guerra civil levou ao trono Adandozan, um rei vingativo e sanguinário que governou Daomé por duas décadas. A Casa das Minas seria, portanto, um pedaço do reino daometano – exatamente aquele em contraposição a Adandozan – transportado para o outro lado do Atlântico pela rainha exilada.

 

Laurentino Gomes chama a atenção, com essa e outras histórias da trilogia, para o fato de que a escravidão afetava não somente pobres, mas pessoas ricas e poderosas. “A perversa engrenagem do tráfico negreiro não poupava ninguém”. Segundo ele, a exemplo do caso de Nã Aglotimé, uma fatia representativa da nobreza africana foi lançada nos porões de navios “rumo a um destino muitas vezes anônimo e misterioso no cativeiro no Brasil”.     

 

Em 2005, o terreiro da Casa das Minas fora tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ao longo do tempo, sem a renovação de filhas e mães de santo, os rituais e segredos – como o culto aos chamados vuduns – deixaram de ser passados de uma geração para outra. Em 2015 morreu a última chefe da casa, Deni Prata Jardim, aos 89 anos.    

 

De acordo com pesquisas de Laurentino Gomes, em seis anos de viagens por doze países, no período de chegada da rainha Nã Agotimé ao Brasil o Maranhão era uma das principais rotas do comércio negreiro no continente americano. De 1741 a 1842, aproximadamente 100 mil africanos desembarcaram em São Luís.  

 

Como na definição de José Bonifácio de Andrada e Silva, destacada em boa hora no livro de Laurentino Gomes – que lança um olhar de estudioso, mas também de agudeza crítica, sobre triste período da história da humanidade – a escravidão era “um cancro que contaminava e roía as entranhas da sociedade brasileira”. 

 

Por fim, ao finalizar a leitura do capítulo recomendado por Laurentino, sobre a rainha Nã Agotimé, deixo aqui o registro de uma composição memorável da música produzida no Maranhão que retrata com poesia e engenho melódico o eco dos tambores de choro da Casa das Minas. Trata-se do enredo Do Daomé à Casa das Minas – a origem de um povo, de Betto Pereira e Augusto César Maia, um dos mais belos da história dos carnavais maranhenses defendido em 1980 pela escola Flor do Samba.  

 

Foi Dã quem deu origem a Daomé

E de lá pra cá a África se transportou

Guardadas no comé da Casa das Minas

Memória de um povo exaltada ao som de um tambor

 

Uma família Davice

Aqui impõe sua cultura e tradição

Acolhe escravos, cresce forte

E a nação gege rompe a aurora dos seus deuses

Pra Zomadonu com todo seu panteão

Negro dança a noite inteira

Cantando lamentos, de pés no chão

 

Toca o tambor de choro

É mais um negro que se vai

Morre um negro nasce outro

Deixa o negro em sua paz

 

Negra Fulô era feirante do amor

E o negrinho Cosme se fez barão dos bem-te-vis

E ostentou toda uma raça, Catarina Mina

Negros brotaram das raízes do reinado de Abomei

Mãe Andreza encheu de amor todo Querebentan

Evoca o teu orixá e oferenda abobó, caruru e cuxá

 

Roda saia preta mina

Que o atabaque ecoou

Mostra a beleza e a nobreza

Que o povo fon te deixou

 

sexta-feira, 27 de maio de 2022

A elegância em sépia na mochila

Aqui e ali ainda haveremos de encontrar o sopro da quarentena nas folhas desses livros de agora – agora que parece uma eternidade! Inevitável. O cheiro de dentro da casa persevera em meio a sustos, anseios, os lírios no quintal, o café morno, os gatos na varanda, a solidão em trova e uma nesga de esperança. Mas a poesia, ainda bem, vai além do aqui, do ali e do agora, porque viceja fora da caixa. 

Este terceiro livro de poemas de Eduardo Júlio, O sopro do lugar junto ao tempo, respira e transpira fora do quarteirão da quarentena. Nele, o autor, com sua rajada de versos, irrompe a espessa casca do espaço-tempo: de um lado, uma nuvem sobre a sala, as cidades que habitam o poeta, a montanha à espreita e o mar além; de outro, a miragem líquida de anteontem, a poeira no deserto dos olhos no presente e o atalho nefando para o amanhã que não ri, que não rima. 

Em Alguma trilha além, o livro de estreia (2005), Eduardo Júlio visitou os poemas de acampamento, a beira da estrada, as pegadas na areia e os ponches da mocidade. Em 2020, com O mar que restou nos olhos, o poeta deu um salto quase olímpico – não por acaso o livro foi um dos finalistas do festejado Prêmio Jabuti – ao fundir memória e maresia, a Chapada Diamantina e uma praia selvagem de Alcântara, a melancolia do exílio e algumas janelas de afeto. 

O sopro do lugar junto ao tempo é uma extensão em cinemascope do engenhoso livro anterior, com planos abertos e imagens mais nítidas, quase balsâmicas, mas que ainda preservam aquela elegância em sépia dos versos de outrora. Não há passadismo algum na poesia de Eduardo Júlio, mas uma nostalgia rara, franca, de uma velha modernidade que se esconde por trás da decantada primavera digital. O poeta, ‘observando o declínio sistemático/ da existência’, espicha os olhos por entre as antenas de telefonia até alcançar bianas enfeixando amores no oceano que corre logo ali depois dos telhados da cidade antiga. 

Como nos primeiros livros, Eduardo Júlio segue errante escavando a vida pela margem, com a pá da palavra e suas sementes de guaraná e girassol, sempre decidido a se perder, feito um mochileiro que se recusa a enterrar as últimas quimeras de Ginsberg & Kerouac & Burroughs. Em ‘Um dia antes do fim do mundo’, talvez um dos poemas mais certeiros do livro, o poeta desembainha a sua toada: 

pela manhã 
tentei atravessar o continente 
da minha janela 

O autor recria imagens que nos parecem familiares, muito próximas de uma realidade coletiva. Parecem. Porém, revirada a carapaça do poema, há de se reconhecer que são imagens só dele, de tessitura muito particular. ‘O rio parecia correr ao contrário/ desde sempre’. Em algum momento, sem bilhete de embarque, transportamo-nos com o autor para Basra, ali no começo do mundo, no sopro mesopotâmico que ele nos proporciona, embalados por esse sussurro célere de encantamento metafórico, polifônico. 

O livro de Eduardo Júlio abre caminhos improváveis e alimenta presságios como se o ‘para sempre’ fosse apenas uma questão de ‘abraçar o mar por instantes’. No poema ‘Inventário’ ele revisita um velho baú de saudade e madeira, como que se reencontrando com o pai, e em silêncio desfia uma oração feito salvaguarda de um tempo que não findará. Em ‘Alento’, ouve-se em certa frequência alguém cantando sob os escombros. E escuta-se a tinta clareando o céu de ‘Van Gogh’: 

resta a noite estrelada 
pronta para devolver algum fulgor 
aos girassóis 

Os sopros de lirismo estão em toda parte. Nas marés imprecisas de uma juventude que não secou (‘de três dias ou cinquenta anos/ nunca vou saber ao certo’). Nos uivos de um poeta convidando outro poeta a se lançar na tormenta. E na ventura de querer olhar o mundo outra vez com os pés. Mas nem tudo leva a crer que a poesia não suporta vicissitudes do futuro. O livro apenas sugere um lugar possível, um tempo verossímil, em que a inércia do leitor possa bater asas.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Celso Borges, Chico Maranhão e uma oração ao tempo imóvel

 

Uma pena que a pandemia ainda persista e nos mantenha ilhados. Mas a saída, como de costume, é pela ponte. Ou pelas pontes, como a que o poeta e jornalista Celso Borges nos acalanta hoje ao publicar o livro Lembranças lenços lances de agora – memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão, com o selo da editora Palavra Acesa. 

 

Para saber como tem pulsado a ilha nesses últimos cinquenta anos é preciso atravessar essa ponte. E Celso Borges usa como pretexto para a travessia episódios e personagens que ainda gravitam no imaginário cultural maranhense, com as gravações do antológico disco Lances de agora, do cantor e compositor Chico Maranhão, na sacristia da Igreja do Desterro, em 1978.


 

De costura poética envolvente, muitíssimo bem ilustrado com fotografias (algumas delas inéditas) que revelam diferentes facetas de uma cidade antiga e do espírito libertino de seus artistas, o livro tem o mérito de juntar pesquisa minuciosa, fundamentada, com um inapelável desleixo lírico –  sutilmente necessário, para uma obra que tem na roda um dos poetas mais engenhosos da música produzida no Maranhão.

 

Em Lembranças lenços lances de agora, Celso Borges sai por aí inventando outro mapa, revirando terras mal socadas, flanando por fontes e pontes paralelas, no encalço de um Chico Maranhão arredio, desconfiado, até dar no mar, na lenda, no tambor, na arquitetura dos afetos, no descampado da poesia... 

 

Celso Borges mergulhou nesse projeto por conta e risco, apaixonado, mas não como sacristão preocupado em servir um prato feito ao leitor e muito menos ao personagem estudado. Foi fiel tão somente ao seu instinto de poeta, de artista, de alguém no meio dessa usina. 

 

São lenços e lances de agora – as trupiadas políticas, o reggae e algumas contradições de Chico. São também lembranças que remetem a um momento distante, ao selo Discos Marcus Pereira, aos festivais de música, à Gabriela, ao Bandeira de aço, ao Pedra de cantaria, ao Laborarte, à Fonte nova e a outras nuvens. Remetem ainda a nomes como Dona Camélia Viveiros, Maestro Nonato, Antônio Vieira, Ubiratan Sousa, João Pedro Borges, Turíbio Santos, Pixixita, Valdelino Cécio, Nélson Brito, Sérgio Habibe, Chico Saldanha, Zezé Alves, Ronald Pinheiro e a tantos mais.  

 

Se o LP Lances de agora vale uma missa, o que dizer então de um livro que é quase uma celebração ao tempo? Ao tempo imóvel – dos discos, do Chico, do Maranhão, da aldeia mínima. Talvez uma oração ao tempo do próprio autor. E por tudo isso vale a liturgia da leitura.