terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Um pouco antes da trilha

A vida não é filme, mas sugere uma trilha. Eu coleciono várias. Vidas e trilhas. Mas não é uma vida a pilha que pede uma trilha. Há uma milha de distância entre uma simples música que tocou e uma trilha sonora digna de registro em HD natural. A trilha precisa de mais dias de calor que de cobertor. É necessário passar mais tempo acordado para merecer uma trilha. Não há música definitiva no compasso do sono.


Montar uma trilha sonora não exige muito esforço. Aliás, não se monta uma trilha sonora. Ela surge. Insuspeitada e anacrônica, às vezes surge anos depois. Você olha pra trás e lá está a canção te martelando o ouvido com a rima colegial. A trilha sonora daquele verão certamente não foi mais intensa que os dias de bossa dessa chuva que molha a areia da praia. No horizonte, mar e pedaços de nuvem se fundem numa balada de amor que não tem fim. A vida embaça pelo retrovisor do carro. É a trilha da estação.

Do romance mais prosaico ficou pelo menos um refrão de carnaval, dessas marchinhas que não se governam e saem por aí atravessando o tempo e a multidão. O refrão sem dono não chega a ameaçar os amores de agora nem os concertos de afeto que embalaram os passos de ontem.

Não se perdem na lembrança os programas de rádio, o vinil emprestado, a coletânea em fita K7, os CDs gravados com a alma impregnada em cada faixa, os trechos de músicas rabiscados na blusa desbotada no final de ano da escola, o baião preferido do meu pai, a luz negra do salão de reggae, os lamentos sertanejos que minha mãe entornava como se fossem canções de ninar e o beijo partido na platéia do show de rock que ainda hoje ressoa.

A trilha da infância vai das orquestras que compensavam certas brutalidades nos filmes de bang-bang às cantigas de padre Zezinho que do alto da torre da igreja enchiam de ternura as manhãs de domingo da cidade pequena. Há trilha para certas coisas e acontecimentos e pessoas e lugares e viagens.

Não me incomodam as músicas de gosto duvidoso, tampouco me assustam os boleros e calipsos que jamais dancei. Se vale a pena saber da Carolina, da cajuína, da ópera de Catirina, não se pode fechar os olhos para o abajur cor-de-carne que te assombra o passado. Há quem faça da vida uma trilha que se completa nas evoluções do Rebolation, por exemplo. E daí?

Existe uma trilha que ainda não foi aberta, sem pecado ou preconceito, regada a candomblé, arrasta-pé ou cabaré. Sem roteiro. Como um rolo de filme, um dia ela vai se revelar.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sob o céu de Lisboa

A boa dosagem de lirismo em Portugal não está associada apenas aos cantos de fada de Amália Rodrigues, aos contos e fados da Alfama ou aos cafés boêmios do Chiado. Está no azul profundo do céu que cobre Lisboa. É o azul do céu que dá as boas-vindas a quem ali chega. De barco, balão, trem ou avião. O encanto é inevitável.

É domingo de Carnaval em Lisboa e a cidade ainda adormece. Nem mesmo o inverno intimida o sol em sua ventura solitária de pintar essa imensa tela de azul. As ruas despertam lentamente. A paisagem cresce em cada esquina, nos becos e ruas mais estreitos, na jóia rara da coroa de Queluz, nas sacadas dos sobradões que de dia viram varal.

Estar em Lisboa é reinventar o passado, dando a ele o valor necessário. É o revés do descobrimento, distraída navegação da nau tempo, sem cartografia ou GPS. Como no filme de Wim Wenders (Lisbon story, 1994), vejo-me perdido na via pública e saio a filmar com os olhos o mundo sem som da cidade muda porque dorme.

Lisboa é inteira ficção do poeta em pleno gozo do desassossego. A alma de Fernando Pessoa parece vagar pela cidade, ora em versos de música, ora na arquitetura dos passantes, na sisudez das fachadas reais. Poeta e poesia tomam café na Brasileira e brincam de ciranda para o flash dos turistas insones. Breve tertúlia literária com pastel de napa que se estende da Alfama à Mouraria, sem livro ou roteiro.

Do alto do castelo de São Jorge não se sabe onde termina o mar e onde começa o rio. Dizem que, todas as manhãs, o mar se enche de Tejo e beija o cais de Lisboa. Olhando de cima os telhados da cidade-velha, suspeita-se que a época moderna adoece o olhar dos homens, como um mal presente na retina de Alberto Caeiro.

A melancolia do fado em nada lembra as alegorias esparsas numa cidade de Carnaval sem batucadas e bambas. A um oceano do barulho, crianças saem de casa fantasiadas de alegria. Belas moças colorem o corpo com pinturas extravagantes para lembrar que samba é um estado de espírito. Nada mais.

O olho molha quando cai a noite e o fado suplicante acende meia-luz de qualquer coisa. Ao fundo, alguém cantando a vida em excesso, o desengano, a dor, a saudade. Ali há sempre alguém cantando Lisboa, que não sonha em ser Paris, que não vai ser moderna porque dura a tradição.
À primeira vista Lisboa parece assim: onde o mar finda. Pressa e preguiça de um olhar distante. Vinho e bacalhau. O lirismo que começa na capital ecoa pelo Alentejo e se espalha pelas colinas de Sintra e ruelas do Porto. Vai pelo céu. Um azul que se eterniza na memória. De cidade em cidade.