terça-feira, 30 de abril de 2019

O dia em que o surfe parou


Gustavo Costa e Eduardo Júlio conversam sobre acidente com tubarão ocorrido em 1992 (foto: Joedson Silva)

Por Eduardo Júlio
Jornalista e poeta

Há quase 27 anos, Gustavo Costa sobreviveu a um ataque de tubarão na praia de São Marcos. O episódio marcou a história dele e a do esporte em São Luís. Para relembrar o caso, nós conversamos com Gustavo Costa e Marcelo Piu-Piu, que estavam juntos no mar na hora do acidente. Eles relataram com detalhes o fato e recordaram outros momentos da prática do surfe, nas praias de São Luís, no passado.

No dia 8 de julho de 1992, o jovem Gustavo Costa, à época com 25 anos, saiu da casa dos pais pela manhã, acompanhado do amigo Marcelo Bogéa Vaz, mais conhecido como Marcelo Piu-Piu, para surfar na praia de São Marcos, em São Luís. O que parecia ser mais um dia de sol e lazer sobre as ondas se transformou num episódio trágico, que marcou para sempre a sua vida e a história do surfe da capital maranhense.

Nascido no Rio de Janeiro, Gustavo era um jovem de classe média que se mudara para a ilha de São Luís dez anos antes. Seu pai trabalhava na Alcoa, multinacional de extração de alumínio, que se instalou no Maranhão no começo dos anos 80. Desde os tempos do Rio, a prática do surfe era a principal atividade desportiva do carioca.


Gustavo e Piu-Piu relembrando os bons tempos do surfe (foto: Eduardo Júlio)

Em São Luís, o surfista se deparou com ondas pouco apropriadas para a prática do esporte - se comparadas às do litoral fluminense - mas encontrou alguns jovens ávidos pelo surfe como ele, que conseguiam, com determinação e esforço, superar as limitações da natureza. Para esta turma, o hábito de pegar onda era uma atividade quase diária e a diversão era garantida.

Naquele fatídico dia, por volta das 11h, as ondas da praia de São Marcos estavam altas, convidativas para o surfe. Além disso, o mar apresentava uma cor esverdeada, algo raro em São Luís, onde as águas são, em quase todas as épocas do ano, turvas e cinzentas.

Ao chegarem à praia, Gustavo e Marcelo foram imediatamente alertados por alguns conhecidos sobre um acidente que acabara de acontecer com um surfista. A suspeita era de que a vítima, Márcio Bandeira, teria sido atacada por um tubarão e sofrido ferimentos - na verdade, o garoto perdera a metade de um dos pés. "As ondas pareciam perfeitas, e o mar estava com uma cor tão bonita, que não prestamos muita atenção ao que eles disseram e caímos logo na água", conta Marcelo Piu-Piu.

Depois de mais ou menos uma hora no mar, Marcelo estranhou a ausência de Gustavo sobre a prancha, que boiava sozinha. Em poucos instantes, o amigo reapareceu emergindo e submergindo, sendo jogado de um lado para o outro.

Gustavo havia sido atacado por um tubarão, que mordeu fortemente o seu braço esquerdo, dilacerando-o. Apavorado, perdendo muito sangue e pedindo socorro, ele foi resgatado por Marcelo e por outras pessoas que se encontravam na praia, incluindo um médico.

Às pressas, foi levado até a pista, onde rapidamente conseguiu uma carona para o Socorrão, o principal hospital público de emergência de São Luís. Na unidade, Gustavo recebeu os primeiros atendimentos. Ele sobreviveu, mas, devido à gravidade dos ferimentos, terminou perdendo o braço.

Da emergência, foi transferido para uma clínica particular, na qual permaneceu por 15 dias, em um doloroso processo de recuperação. A área do corpo atacada apresentou uma infecção e, apesar do esforço da equipe médica local, os ferimentos não cicatrizavam.

A bactéria que provocara o problema só foi identificada uma semana depois, após o envio de uma mostra do tecido para análise em um laboratório do Rio de Janeiro. "Para evitar piores consequências, tomava duas injeções especiais por dia. A primeira, ao acordar, e, a outra, na hora de dormir”, lembra Gustavo.

Ele acredita que tenha sido vítima do mesmo animal que atacara o outro jovem. “O tubarão deve ter ficado por lá rondando a praia em busca de alimento. Ao perceber a nossa presença, atacou”.

Férias

No ano do acidente, Gustavo estava residindo na Itália, na pequena comunidade de Trino, próxima às famosas e ricas cidades de Milão e Turim, no Norte do país. Na capital maranhense, ele passava as férias de julho junto à família. Um ano antes, tinha abandonado o curso de Comunicação Social no Rio, depois de estudar por quatro períodos. “Eu tinha voltado a morar no Rio, onde cursava Jornalismo. Mas surgiu a oportunidade de ir para a Itália e não pensei duas vezes. Abandonei tudo e segui rumo à Europa”.

Depois do acidente, foi obrigado a esquecer o sonho de continuar a viver na Itália e teve que se acostumar a uma nova vida no Brasil. Mas a readaptação foi rápida diante das graves consequências deixadas pelo ataque. A prática do surfe foi abandonada por ele, mas, no final do mesmo ano, voltou a ter contato direto com o mar e, em 1996, iniciou o aprendizado do mergulho. O trauma havia sido definitivamente superado.

Após a recuperação, Gustavo dividiu o tempo entre São Luís e o Rio de Janeiro, até que, em 1999, surgiu a oportunidade de sair novamente do país. Desta vez, o destino foi a cidade de Seattle, nos Estados Unidos, berço do movimento grunge, que sacudiu o rock no começo daquela década. Em terras gringas, ele permaneceu até 2010, quando retornou à capital maranhense.

Hoje, aos 52 anos, é casado, tem dois filhos: um menino de 9 anos e uma menina de 17. Empreendedor, possui um food truck, denominado Tuba Lanches, e é proprietário de um Food Park, localizado na praia do Calhau, na avenida Litorânea,por coincidência ou não em frente a um dos locais mais disputados pelos praticantes do surfe da cidade.

Calmaria

De acordo com o site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), São Luís possuía, em 1992, quase 700 mil habitantes. Era uma cidade com aspectos provincianos e com algumas opções de lazer para os mais jovens. Havia um shopping, cinco ou seis cinemas, alguns bares, restaurantes e boates.

A capital possuía praias relativamente limpas (a especulação imobiliária ainda não havia ocupado o litoral da ilha) e, nos finais de semana, o banho de mar era uma das principais opções de lazer da população, principalmente do público jovem.

O surfe era praticado desde o final dos anos 70, inicialmente na praia do Olho d’Água, onde até hoje aparecem algumas das melhores ondas. Mas o exercício, naqueles primeiros dias, exigia força de vontade, paciência, algum dinheiro e capacidade de improviso.

As primeiras lojas de surfe de São Luís só surgiram ao longo dos anos 80 - Imagination, Mano Surf e Hot Lines - em ordem cronológica. Antes disso, era difícil encontrar produtos e equipamentos para a prática do esporte. “No começo, não havia pranchas nem parafina. Tudo tinha que ser comprado fora do estado”, recorda Marcelo.

Se por um lado, a cidade carecia de infraestrutura, por outro, era muita tranquila, com poucos casos de violência, sem problemas de trânsito e muitos exemplos de respeito e solidariedade. “Muitas vezes íamos de carona, do bairro Renascença ao Olho d’Água, com prancha e tudo, e tínhamos que voltar da mesma forma. Era uma aventura, mas sempre aparecia alguém para ajudar”.

Gustavo concorda com as boas recordações do amigo em relação à atmosfera de São Luís no período. “O melhor tempo da cidade foram os anos 80. A tranquilidade era constante. Todo mundo se conhecia e havia muita confiança e companheirismo entre os jovens. Sempre encontrávamos amigos e conhecidos em qualquer lugar que íamos”.

Um dos primeiros campeonatos de surfe, realizado em São Luís, foi organizado justamente por Gustavo Costa e pelo irmão dele, por volta de 1985. O evento teve como cenário a praia de São Marcos, quando a área ainda não possuía via de acesso. “Nós fizemos o campeonato de forma improvisada. Era difícil o acesso ao São Marcos, mas conseguimos colocar um caminhão com um som e realizamos o encontro. Foi tudo muito divertido”, lembra.

Em 1992, no ano do acidente, a praia de São Marcos já tinha se tornado o principal ponto do esporte na capital. Antes quase inacessível, passou a ser muito frequentada após a terraplanagem da via que, dois anos depois, se tornaria a avenida Litorânea. Naquele tempo, o local também chegou a ser chamado de praia da Marcela, denominação que, na atualidade, parece devidamente esquecida.

Pioneiros

A primeira geração de surfistas de São Luís foi formada por nomes como Coelho, Zé do Valle, os irmãos Fábio e Pablito, Cícero e Cabeleira, pioneiros do esporte nos anos 70. Em seguida, figuraram o lendário Roberto Castro (Cachaça), João Marcelino, Nestor e Rogério Piolho. E foi justamente no meio desta geração que surgiram Marcelo Piu-Piu e, logo depois, Gustavo Costa. Também não se pode esquecer do jovem Bacana, que foi buscar a profissionalização em Santa Catarina, no começo dos anos 90.


Piu-Piu pegando uma onda no auge do surfe no Maranhão (foto: arquivo pessoal de Marcelo Piu-Piu)

“No início, éramos poucos. Inclusive, teve um curto espaço de tempo em que havia somente três surfistas na cidade: eu, o Billy e o Cachaça. Mas, no início dos anos 90, o surfe estava em alta. Centenas de jovens praticavam o esporte. Havia campeonatos, alguns atletas promissores e outros de grande talento”, conta Marcelo Piu-Piu, que naquela altura já era um dos mais respeitados surfistas de São Luís, tendo conquistado importantes troféus dentro e fora do Maranhão.

Hoje, aos 53 anos, Marcelo permanece como uma das principais referências do surfe na cidade, e divide a paixão pelas ondas – surfa quase todos os dias - com as atividades da Fisioterapia, área que escolheu para atuar profissionalmente.

Repercussão

O triste episódio com Gustavo Costa ganhou destaque nacional, com a veiculação de matérias sobre o assunto no Jornal Nacional e no Jornal da Globo, além de reportagens nas emissoras de TV e jornais impressos de São Luís. O assunto também foi registrado em importantes revistas nacionais de surfe, como a Trip e a extinta Fluir.

Especialista em tubarões, o biólogo Otto Bismarck Gadig, professor da Universidade Federal da Paraíba, veio à ilha, na semana posterior ao ataque, analisar o fenômeno da aproximação deste peixe da área de arrebentação.

Na época, algumas teorias foram levantadas sobre a causa do problema. Uma delas apontava a intensa movimentação de navios, no canal da baía de São Marcos, para o Porto do Itaqui. Resíduos de alimentos despejados no mar atrairiam os tubarões e as correntes marinhas conduziriam esses peixes até as praias.

Logo depois dos casos na capital maranhense, tubarões começaram a vitimar surfistas em Recife, onde muitos foram atacados. Na capital pernambucana, até hoje o problema ameaça os praticantes. Lá, surfar continua sendo uma atividade de intenso risco. Felizmente, em São Luís, não houve mais registros de ataques a surfistas.

Ruptura

A repercussão do incidente com Gustavo foi grande em São Luís. O caso sensibilizou a população, especialmente os jovens, e abalou profundamente a geração de surfistas da época. Dali em diante, o surfe praticamente deixou de ser praticado. Poucos se atreviam a entrar no mar. “O surfe parou e só voltou quando o episódio caiu no esquecimento e uma nova geração começou a ocupar as praias”, ressalta Gustavo.


Gustavo nunca perdeu o contato com a prancha, mesmo depois do acidente (foto: Joedson Silva)

Marcelo também confirma a ruptura na história do esporte na cidade. “Depois do acidente, não tinha mais quase ninguém com prancha na água. As pessoas ficaram com medo. Demorou algum tempo para o surfe voltar com regularidade e com um número significativo de atletas”.

Ele acrescenta que atualmente a quantidade de praticantes é muito grande. “Vivemos um momento especial com o surgimento de uma nova geração. Há muitos jovens pegando onda hoje em dia, dando continuidade à prática do surfe”.

Rádio

Na época do acidente, o jornalista que vos escreve era produtor musical do programa Ondas & Lombras, que ia ao ar todas as noites de sexta-feira, pela Mirante FM, sendo apresentado pelo cantor, compositor e jornalista Jorge Thadeu, que hoje reside em Salvador.

O Ondas & Lombras tocava rock e era dedicado ao surfe local. Todas as semanas um surfista da ilha era entrevistado no programa. Daí, o acidente com Gustavo repercutiu por, pelo menos, duas edições. Inclusive, o biólogo Otto Bismarck Gadig foi um dos entrevistados e fez algumas considerações sobre as supostas causas do ataque dos tubarões.

Assim como parte da juventude de São Luís da época, nós que produzíamos o Ondas & Lombras ficamos muito tristes e perplexos com o ocorrido. Tendo ou não motivo para continuar existindo, o programa deixou de ir ao ar no final de 1992.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Elegante sinfonia de "Filarmônica para fones de ouvido"



Maristela Sena
Jornalista

Se é pra falar do tempo contínuo, lembro que um intervalo de quatro anos separa os livros de poesia O que me importa tanto agora e Filarmônica para fones de ouvido do jornalista e escritor, Félix Alberto Lima. Pergunto-me se somos os mesmos. Sem me preocupar com respostas percebo que estamos mais tristes do que um dia pudemos ser. E talvez por isso a poesia é e esteja aqui. “Uma página em branco é tudo o que tenho agora” para “o poema raivoso hoje em dia é bem mais elegante”. Arrancando imagens do mundo estéril, a letra generosa nos preenche a falta no pretérito, no hoje e naquilo que chega já amanhã cedinho. É esse ofertório de conforto para almas no tempo de ruptura, violências e autoritarismo, entre assombrações e a réstia de esperança no dia novo e bom, que transformamos outra vez em passado.

A página aberta informa a estação “da luz negra” com um pedido de “desacelera a vida”. A literatura é invenção que pede não necessariamente o tempo, mas a engrenagem da hora que passa e pertence ao homem que ainda vê “o menino galopando o jumentinho”, àquele que escreve e lê o verbo-verso sem ter de provar nada da letra criada e refeita: “amanhã estarei à frente do meu tempo. como um maquinista”.

Filarmônica contém dez estações, passagem sugestiva para “além das paredes que ouvem e transpiram” ou que ousam conter imaginação. “Debaixo da minha pele há um só palito de fósforo cambaleando prestes a correr o risco da alumiação”. Porque palavra acesa incensa a noite escura dos homens. “Vamos ver a lancha nova que do céu caiu do mar” e “cruzaremos o sertão que há dentro dos peixes”.

Félix Alberto não está sozinho ao construir a palavra. O grego Aristóteles nos ensina que o fazer poesia surge da recriação da realidade na obra literária. Não à toa dizemos que a vida imita a arte em um movimento cíclico de espelhamento. O historiador Henrique Borralho explica essa relação coletiva em que estão em jogo a realidade, o pensamento e a linguagem. “Para Aristóteles, o processo contínuo de imitar, leva a um processo de inventar. A invenção se dá pela imitação, logo a poesia se encarregaria de reverberar aquilo que universalmente é sentido por homens e mulheres, quer dizer, independentemente do lugar ou da situação histórica da humanidade, tudo o que for preceituado por estes pode ser intuído, transformado em linguagem poética”.

A ordem é que habitemos poeticamente o mundo, então vamos ao encontro de Filarmônica. A obra é uma publicação da editora carioca 7Letras, formada por 80 poemas e 116 páginas.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Filarmônica para fones de ouvido



Joãozinho Ribeiro
Poeta e compositor

Na antessala do dentista ou do urologista todo poeta sempre treme, ou se prepara pra ser um fingidor posteriormente, como profetizava o Pessoa. Estava numa destas situações, numa tarde do fevereiro último, levando comigo um exemplar do “Filarmônica para fones de ouvido”, que havia recebido de presente das mãos do próprio autor pela manhã, com direito a autógrafo e um pouco de cumplicidade compartilhada com o ineditismo da obra.

Com a mente impregnada de uma música do parceiro Zeca Baleiro, intitulada “Muzak”, preenchia o tempo de espera na antessala com a leitura dos versos cometidos pelo poeta Félix Alberto Lima. Àquelas alturas, tentava entender a sutileza de “estou aqui em Arari em Nova Iorque...”, da música. Não consegui me descolar da leitura, materializada numa espécie de decálogo, que o poeta arquitetou como divisão, para conduzir os leitores incautos, ou nem tanto, para um território em que a palavra sempre tem razão – o da linguagem dos sentidos.
Iniciando com DA LUZ NEGRA até o encerramento, com DO LINHO QUE HÁ NA PALAVRA. Entre o ponto de partida e aquele que deveria ser o de chegada não há tréguas poéticas, o que há são açoites, como na provocação inicial de AMOR DE NUNCA MAIS:

“O que vai durar não é o capricho/mas a pirotecnia/da paixão destrambelhada/um beijo da boca pra fora/sem gozo ou estardalhaço”

Açoites que não chegam a ferir, mas que parecem lamber algumas cicatrizes da existência comum, assim como um cimento a colar os caquinhos das paixões ensandecidas de outrora; substituídas, hoje, pela mansidão manifesta na contemplação de um cais, acariciado pela sinfonia das vagas errantes.

A palavra que nos apedreja também comete inusitados afagos na poética de Félix, e distribui afetos, a barganhar alguma peraltice de meninos marotos, cantarolando CANTIGA DE RODA e de rodar as águas da memória:

“Ovo não tem pelo/alma não tem pena/aqui nesse pé de página/o macaco pula/e a pomba gira/é a ciranda do poema”

É da memória, talvez de uma gaveta entreaberta, esquecida no tempo, com cheiro das águas de infância e saudades, que o poeta resgata e costura uma das paisagens mais bonitas em MEMÓRIA AO REDOR DA CASA...

“Há um velho/na cadeira de balanço,/uma coleção de relógios/tristes sobre a mesa da sala/e o tempo fustigando/samambaias/suspensas nos cobogós”

O elemento vazado, pra efeito de decoração e carinho das samambaias, parece costurar também na tarde que frequento, na antessala do consultório médico, todas as possibilidades que a poesia ainda é capaz de introduzir em nossas almas céticas e desencantadas. Assim como atesta a existência de “...um ponto cego entre um ouvido e outro”, extraído DO OCO DO MUNDO.

De Arari a Nova Iorque, o Muzak da antessala agora se traduz em outras geografias e distâncias poéticas, percorridas pelo autor; de Barra do Corda a São Luís; de São Luís para o mundo, levando consigo toda a infinitude das estrofes, e a finitude da passagem por esta breve estação terrena. Na conversa DE ÁGUA E SAL tenta fixar uma espécie de pacto com os elementos, e se aventura nos desenhos, por ONDE CAMINHA O SOL À TARDE...

“abre uma página em branco na areia/percebe a imensidão de lamento no longo apito das/embarcações”

Do ofício de viver e dos seus diversificados vícios, difícil encontrar exatidão geométrica nas escolas literárias para enquadrar estilo ou métrica das construções concentradas no canteiro desta obra inacabada denominada “Filarmônica para fones de ouvido”. Em alguns momentos nos insere em sonetos, como em TUDO ERA QUIMERA...

“essa canção que toca no rádio agora/bem que poderia falar do nosso amor/do primeiro bilhete deixado no guardanapo/molhado pela chuva de tanto desejo”

Tarefa ingrata essa reservada a um poeta, falar da poesia e de uma determinada obra de um outro poeta, desafiando os mistérios e os limites, dos quais Goethe já nos alertava, ao descrever sua relação com a sua própria elaboração criativa: “O início e o fim de toda atividade literária é a reprodução do mundo que me cerca por meio do mundo que está dentro de mim.”

A tarde vai trucidando as horas, e eu vou mergulhando num Rio Corda imaginário, na inútil tentativa de decifrar este mundo reproduzido pelos versos do poeta Félix Alberto Lima, provocando as nascentes que estão dentro de mim e dele, como O TEMPO DEPOIS DO ALUVIÃO...

“a vida era quase um bolero/nos arrebóis dos olhos do menino/que via estrelas correrem sem pressa/no céu do seu primeiro ano ginasial”

No livro que está exposto à minha frente, diante dos meus olhos de poeta, os versos irrompem como as águas de uma barragem recém rompida e preenche todos os espaços da antessala, fazendo com que fiquem despercebidos todos os objetos e pessoas que estão compartilhando o lugar comigo.

A chuva castiga lá fora, inundando as ruas, as pedras e as ladeiras da cidade, anunciando os rigores de um inverno, tempo propício para a embriaguez de versos, tal como avisa o poema RIBAMARES...

“chove a essa hora da manhã/na rua duvivier/chove em volta do apartamento/chove dentro da sala/no vão de uma calçada qualquer/em são Luís”

Estamos no ano de 2019, que carrega consigo signos indecifráveis e sombrios, a poesia se faz mais do que necessária para expurgar milhões de demônios que regateiam as almas dos poetas. Com todo o afeto das canções, que por vezes nos separam e mais generosamente nos unem, o poeta se revela em MEU LADO ALADO, com a precisão de um menino, armado de baladeira pra não deixar de ser de aqui e de agora, e de todos os tempos repassados da memória...

“sou mais passarinho/que cometa/vivo entre coisas/e isso me basta/sou da terra e me alimento das águas/e do mato/rasgo o céu e me farto/na imensidão”

Com certeza, nem moderno nem eterno, apesar de o terem declarado imortal, o poeta seguirá combinando essas pequenas diabruras poéticas, do seu quintal ludovicense para as avenidas do universo, sem direito a um último BACKUP...

“não sou de vergar./se for preciso/eu ponho/o meu poema/na nuvem,/engulo teu sorriso/de mil likes/encomendados/e sumo por aí.../pode apostar./e aí eu quero ver:/sofrer/será teu próximo post”.

terça-feira, 23 de abril de 2019



A afinação poética de Félix Alberto Lima

José Neres
Professor, escritor, membro da AML e da Sobrames

Reconhecido como uma das boas referências nos campos do jornalismo, da publicidade e da pesquisa, o escritor e acadêmico Félix Alberto Lima, nos últimos anos, tem mostrado para o público um outro talento que, embora cultivado há bastante tempo, era mais conhecido entre seus familiares e seus círculos de amizade: o dom para a Poesia.

Em 2015, ele publicou o livro O que importa agora tanto, que foi muito bem recebido pelo público em geral e mereceu alguns elogiosos comentários por parte da crítica especializada. Como bons textos acabam atraindo bons leitores, o contato com os poemas de Félix Alberto Lima acabou criando nas pessoas a expectativa sobre possíveis outras publicações no âmbito da Poesia. Para felicidade dos amantes das boas letras, o poeta acaba de brindar seus leitores com a chegada do livro Filarmônica para fones de ouvido (Editora 7 Letras, 2018, 114 páginas).

Dividido em dez partes temáticas que se completam (1. Da luz negra, 2. Do oco do mundo, 3. Dos livros que falam, 4. Do fio da navalha, 5. Do retrato em sépia, 6. De agora em diante, 7. Do rito de passagem, 8. De água e sal, 9. Do mar e ilha, 10. Do linho que há nas palavras), o livro conta também com o prefácio do poeta e crítico literário Tom Farias e traz em seu bojo um arranjo harmônico entre a forma, o ritmo e o conteúdo de cada um dos textos. Não se trata de uma coletânea de poemas soltos que se enfeixam em um livro que o autor deseja publicar por publicar, mas sim de um trabalho minuciosamente articulado em busca de um conjunto imagético e melódico que casasse com cada um dos ritmos inerentes à grande partitura poética que é o próprio livro.

Cada uma das dez partes do livro é marcada por uma melodia própria e em cada bloco de poemas o autor faz um passeio pelos diversos matizes da musicalidade, indo da toada à cantiga e passando por blues, ópera, jazz, rock e muitos outros ritmos, mas isso não é por acaso. Essas escolhas vão muito além da simples variedade lexical e citação de tendências e gostos. Em cada ritmo explorado nos poemas é possível perceber as angústias, sofrimentos, apreensões, dúvidas e acasos que cercam o eu lírico, que se multiplica em vários e ao mesmo tempo torna a expressão do uno, de todos os seres humanos que se bifurcam nas encruzilhadas dos problemas pessoas que são compartilhados para (e por) todos nós.

No texto que dá nome ao livro, o poeta sintetiza parte das angústias humanas e chama a atenção para um ser que mergulha em si e em diversas músicas selecionadas de acordo com seu estado de espírito, servindo também como uma espécie de fuga da realidade em meio a um mundo pós-moderno que muito cobra e pouco oferece. Essa mesma sensação de vazio existencial pode ser sentida em diversos outros poemas do autor. Nos versos de Félix Alberto Lima é possível sentir tanto um pouco do incômodo gauche drummondiano quanto o desejo de fuga emanado pela Pasárgada idealizada por Manuel Bandeira. Nos versos desse jovem poeta maranhense é possível também sentir as brisas de Macondo, de Antares e de Comala e de Santa Maria e de tantas outras cidades literariamente imaginadas e edificadas em monumentos verbais e que se solidificam em versos dedicados à terra natal.

Essa profusão de temas ocorre por que o poeta optou por mesclar em seu livro variadas nuances que percorrem desde o mundo suprametalinguístico de um poema como Hoje não é todo dia (p. 39) até o contundente teor realista de alguém que “aprendeu a mentir juntando sílabas / e nunca mais parou” (p.20), com espaço para “tirar os fones de ouvido e escutar a paisagem” (p. 88, adaptado) ou mesmo para o eu lírico sentir-se como “um refugiado de deus” (p. 89). Os seja, nesse livro, o escritor se preocupa tanto com esfera metafísica do Ser quanto com as questões sociais, uma vez que um Ser acaba sendo o somatório infinito de outros seres e olhares.

Não importando qual seja o ritmo adotado, o que fica claro na poética de Félix Alberto Lima é que o Ser Humano (não como matéria, mas sim como essência) é o que realmente importa. Independentemente do Tropel de cores (p. 110), de uma Febre terçã (p. 81), de Uma noite longa (p. 30) ou mesmo do Juízo final (p.22), é o lado humano que prevalece nas páginas desse livro, e mesmo diante da Ânsia de um homem comum (p. 37) e até mesmo da Compaixão cívica (p. 107), tudo pode ser visto como um grande Ensaio sobre a irrelevância (p. 66) das coisas passageiras.

Filarmônica para fones de ouvido é um livro que pode ser lido por pessoas de todas as idades, independentemente das tendências sociais, políticas, religiosas ou musicais. Em cada página fica a certeza de que do olhar atento do poeta “nada passa despercebido” (p.37) e que, embora haja “gemidos que não cabem num soneto” (p. 102), os versos de qualidade sobrevivem para alegria de olhos e ouvidos ávidos da indelével suavidade da Poesia.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Mapas para utopias



Jozias Benedicto*

Frente às crises e desafios de nosso tempo, a poesia ainda representa uma das formas de resistência, uma nave que tira o homem da aridez do dia a dia para transportá-lo para novos mundos, para a possibilidade de viver e cantar utopias. Penso nesta palavra, resistência, ao ler – depois de mais um dia bombardeado pela algazarra das redes sociais – os livros recém lançados de dois poetas maranhenses, “A sagração dos lobos”, de Salgado Maranhão, e “Filarmônica para fones de ouvido”, de Félix Alberto Lima, ambos publicados, com trabalhos gráficos primorosos, pela editora 7Letras (Rio).

Félix Alberto Lima é membro da Academia Maranhense de Letras, e este livro vem se juntar ao “O que me importa agora tanto” (7Letras, 2015), também de poemas. Jornalista e escritor, com bem sucedidas incursões na música e em cinema, Félix tece, com os versos livres e melódicos de seu novo livro, caminhos que passeiam por mares e pela cidade antiga e eterna (“o azulejo velho / na parede / da rua portugal”), por trilhas urbanas e periferias do terceiro mundo, por paisagens áridas e pelos sentimentos humanos (“essa canção que toca no rádio agora / bem que poderia falar do nosso amor”). Na “ciranda do poema”, em cada janela ou cada praia alguém nos espreita – “um refugiado de deus”. É impossível deixar de caminhar com o poeta por estas passagens; sua voz de “o último junkie do ocidente” nos envolve e nos exorta a querer ser também “aquele menino / que vendeu carvão e alegria / no desvão do tempo que embrutece”.

“A sagração dos lobos”, do poeta Salgado Maranhão, vem se somar à sua extensa obra literária, consagrada através de prêmios como o Jabuti (por “Mural dos ventos”, em 1999, e “Ópera de nãos”, em 2016) e o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras (“A cor da palavra”, em 2011). Neste livro mais recente, o poeta toma como norte e epígrafe uma lenda dos índios Cherokee que nos coloca a questão: que lobo dentro de nós vamos alimentar? – o animal interno do medo, da cólera, da mentira e de outros sentimentos negativos – ou o da paz, da fé, do amor e das qualidades positivas? Esta interrogação perpassa as belas imagens dos poemas – que nos contam de “mamíferos / que colidem com o pó”, de um “rio de açúcares / e vocábulos”, de comer “flores de pólvoras / e constelações de sílabas” – e para a qual não há uma resposta única e dogmática. Como uma obra aberta, o livro nos indica um caminho possível, a transcendência, ao se encerrar com “o poema pede silêncio / para sonhar”.

Somente com o sonho – e a arte, sua irmã – podemos calar esta barulheira do quotidiano deste século que mal atingiu a maioridade e já se tornou velho e, transformando a resistência em resiliência, olhando firme para o futuro, voltar a construir nossas utopias.

* Escritor e artista visual

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Quando a poesia é música clássica e popular

Jorge Abreu



Do título ao último poema, o livro Filarmônica para fones de ouvido, de Félix Alberto Lima, é instigante e encantador. Em tempos de extremismo em todas as esferas, e do que costumo chamar de imbecilidade generalizada que assola o planeta, Félix Alberto nos dá lições de como a simplicidade é, realmente, o último grau da sofisticação, como muito bem a definiu o gênio Leonardo da Vinci. Uma simplicidade que só se consegue através de muito trabalho, de acordo com a sempre profunda e visceral Clarice Lispector.

Na sinfonia clássica e mais que contemporânea e popular da filarmônica de Félix Alberto Lima temos a dor da solidão do provável suicida (“Uma noite longa”, pag. 30), e a confissão do contentamento do autor, que se nega ao poema raivoso, mesmo sendo ele, hoje em dia, bem mais elegante (“Destempo”, pag. 43).

Como o título sugere, é um livro musical, esse do Félix Alberto. Que vai do mais puro rock and roll (“Back up”, pag. 47) à “Cantiga de roda”, título do curto e ousado poema da página 44. Ao longo da sua leitura, confesso que me senti como se ouvisse de Bach a Beethoven, passando por Rolling Stones e Zeca Baleiro.

Mas, sem spoiler dos poemas, eu digo que Filarmônica para fones de ouvido vai mais além: nele tem lembranças de infância e juventude que remetem à poética dos inevitáveis Ferreira Gullar e Nauro Machado; e à grandiosidade de Aluísio de Azevedo e José Chagas (“Cartografia dos mares de dentro”, “Resinas resignadas”, “Insulano” e “Ribamares”).

Impossível não lembrar de Antônio Carlos Jobim e Machado de Assis ao ler/ouvir a potente e delicada Filarmónica de Félix Alberto Lima. Imprescindível ressaltar que o livro tem uma pegada de crônica de costumes que considero sensacional (“A mesa quando vai ser posta”, pag. 33; e “Ânsia de um homem comum”, pag. 37, para ficar em apenas dois poemas).

É um livro para ser lido de uma vez só, esse do Félix Alberto Lima. De preferência no silêncio de uma madrugada pós noite de chuva, como eu o fiz. Foi assim que mergulhei na identidade do poeta, no cerne da sua escrita, que me levou de Barra do Corda a São Luís do Maranhão, do Rio de Janeiro a Nova York, embriagado pela poesia de um autor em sua plenitude. Um poeta consciente de que a poesia é para provocar. É para gerar sentimentos e emoções. Fazer o leitor pensar e viajar. Eu senti, e fiz tudo isso, meu caro Félix Alberto Lima. E tenho mais é que dizer: muito obrigado, poeta! Todos os meus aplausos à tua Filarmônica para fones de ouvido!

[Jorge Abreu, 15 de janeiro de 2019]