quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O padre e a revolta dos cordiais



Em outros tempos, o Padre Antônio Vieira teria o dia de seu nascimento [6 de fevereiro] festejado pela quase unanimidade dos portugueses. Mas não hoje. A imagem do aclamado orador, filósofo, diplomata e missionário jesuíta, como essa escultura em frente à Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, nos últimos anos virou alvo de arranhões e manifestações públicas.

Há quatro dias, em longo artigo publicado no jornal “Público”, as historiadoras Inês Barreiros e Patrícia Marcos, o professor Pedro Pereira e o arqueólogo Rui Coelho desfiaram um rosário de ataques à cultura da hegemonia lusotropical – segundo eles, na consciência de muitos, Portugal ainda hoje padece de um complexo de império – e ao missionário da Companhia de Jesus, que chegou ao Brasil ainda criança, viveu no Maranhão entre 1653 e 1661 e por lá cometeu alguns de seus sermões mais célebres.

A estátua de Vieira ao lado de três curumins, encomendada pela Câmara Municipal de Lisboa e esculpida pelo artista Marco Fidalgo ao custo de quase 100 mil euros, foi inaugurada em 2017 e reproduz a narrativa até então consensual sobre a trajetória do jesuíta: de um homem à frente do seu tempo, humanista e em permanente luta contra a escravização de índios por colonos portugueses no Brasil.

Tão logo inaugurada, a escultura foi atacada por pichadores e o Largo Trindade Coelho, onde encontra-se instalada, virou palco de manifestantes anticolonialistas que classificavam o Padre Antônio Vieira como “escravagista seletivo”. De acordo com o panfleto do grupo, mais de 6 milhões de africanos foram escravizados com apoio da Igreja Católica; a colonização portuguesa, em fins do século XVI, já havia dizimado 90% da população indígena; a evangelização jesuíta foi a maior responsável pelo etnocídio ameríndio; e que, portanto, Vieira, expressão maior da Companhia de Jesus, não seria digno de tal homenagem num momento em que portugueses semeiam planos para redenção da história.



A manifestação dos anticolonialistas foi barrada por um grupo de extrema-direita, que sobre o chão estendeu faixa com a frase “Portugueses primeiro!”, uma alusão tosca ao american first de Trump e ao nacionalismo míope para onde, tristemente, descamba a democracia liberal.

Mas, de volta ao argumento da hegemonia lusotropical [seguindo os rastros de Gilberto Freyre], o artigo dos pesquisadores portugueses expõe, assim como já ocorreu em outras publicações do universo acadêmico, uma ferida mal curada dos efeitos internos da colonização. Alguns batem-se contra a “narrativa mitológica” de uma “civilização benigna” patrocinada pelo império colonial português. E o pregador jesuíta, não obstante a erudição e o legado literário, é a representação materializada em bronze de uma grande fantasia da história.

A escultura, segundo os estudiosos, tenta fincar no presente a ideia de que a Igreja, nomeadamente a Companhia de Jesus, e aqui por meio do Padre Antônio Vieira de mãos dadas com a inocência dos curumins, foi legítima defensora dos índios quando da colonização portuguesa no Brasil. “Que a igreja atual se reveja na pose de um padre junto a crianças submissas é algo que preocupa”, alertam eles.

As invectivas dos pesquisadores deixam uma nuvem de polêmica no ar. Afirmam, sem meias palavras, que Vieira nada mais foi que um eloquente defensor da escravização dos africanos e que, mesmo hasteando bandeiras de liberdade aos indígenas, ajudou a impor a estes as armaduras da catequese cristã [crianças índias afastadas do convívio dos pais índios, selvagens] à moda do etnocentrismo europeu.

Apesar da polêmica de agora, Padre Antônio Vieira é reconhecido como um dos homens mais notáveis de Portugal, mestre da língua portuguesa e autor de uma das mais importantes obras do barroco luso-brasileiro que inclui sermões, cartas, discursos e poemas. Entre os textos de Vieira ainda hoje estudados e admirados estão o Sermão da Quinta Dominga da Quaresma e Sermão de Santo Antônio aos Peixes, escritos em São Luís; e Sermão da Sexagésima, escrito em Lisboa.

Nessa escalada de rebelião cultural tardia, em nenhum momento a qualidade da obra do Padre Antônio Vieira é posta em dúvida. A revolta dos homens cordiais de Lisboa mira, pelo menos por enquanto, apenas o anacronismo da homenagem a um importante ator desse imperialismo tão caro aos portugueses. O que já não é pouco!

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