terça-feira, 13 de maio de 2014

A cidade era feita de poesia



Há muito de São Luís na poesia de José Chagas. Mas há muito mais de Chagas impregnado na cidade que o recebeu de janelas e portas abertas. O poeta tingiu ruas, becos e mirantes com sua pena ao mesmo tempo generosa e ácida, e coloriu o imaginário de leitores com uma obra densa e definitiva. Impossível avistar o topo da maré-memória do poeta sem o livre-navegar na prosa quase cantada.

José Chagas, poeta e amigo, nos deixa hoje caídos num imenso fosso de saudade.

Abaixo, transcrevo fragmentos do livro “Chagas em pessoa” (Edições FUNC, 2006), de minha autoria e do jornalista Manoel Santos Neto.



Sandália de couro, manga de camisa e uma calça de tergal cinza. Os óculos não escondem o olhar profundo, fugidio. Nem o cabelo grisalho reflete a cumplicidade entre o ombro ligeiramente encurvado e um cheiro de alfazema de quem mal se refez da sesta. Com o irmão Izídio e a sobrinha Deusana, José Francisco das Chagas mora numa casa simples.

Da janela do mirante, ele derrama sobre a rua a terna melodia do instrumento. Na biblioteca, em meio ao cheiro de mofo de livros espalhados na estante e outros tantos amontoados sobre a mesa de pau d’arco, percebe-se a intimidade de Chagas com a literatura sem fronteiras. Lê Susan Sontag com a mesma disciplina com que devora Saramago.

Ocupa-se do ofício da leitura e da escrita, como se as duas fossem uma coisa só. Sem o capricho da inspiração. E sem horário de expediente. Chagas nasceu canhoto e ainda cedo, na escola, foi obrigado a escrever a seco com a mão direita. “Continuei a fazer tudo na vida com a mão esquerda, exceto escrever. Chego a desconfiar que não só graficamente, mas até mentalmente escrevo de maneira torta”.

Chagas ilhou-se na literatura dentro da própria casa, desde ainda menino na Paraíba. Na travessia das léguas tiranas do Nordeste, a família do poeta continua em busca da chuva. À procura do colégio dos ventos que o tempo não apagou. Chagas cultiva o arroz do sonho. Os amigos ficaram na lembrança do arrozal. Antônio Jovino, Sólon, Zé Alencar, Socorro e Lina fincaram pé em Santana dos Garrotes. João de Maria Anselmo, vizinho, Chagas o perdeu de vista no caminho. “Mas, pobre, seja agora ele o que for/ Faço-lhe este soneto onde adivinho/ Que mais do que eu João é merecedor”.

São histórias que vão surgindo ao sabor da prosa e da poesia. De cada passagem de sua vida, Chagas tira um verso da manga e o recita com prazer. É quase uma liturgia. É nesse caminho que o poeta vai durando e dourando a vida.
Nada faz o poeta subir ao olimpo das vaidades. Mantém com inteligência uma simplicidade que faz dele um personagem incomum.

Dali da Estrada da Vitória o poeta vai nos conduzindo ao passado, até chegar em algum lugar da cidade onde ele enfim se reconhece. A rua da Palma é o começo de tudo. A primeira morada. A rua é para ele tão familiar como a própria palma da mão. Do meio da rua ele aponta para o tempo cravado no casarão de número 117. Uma quarta-feira de 1948. Da rua da Palma vai cruzando a pé o centro histórico. Não há beco que não revele um capítulo de glória e desencanto.

Ruas da Manga, Regente Bráulio, da Estrela e 14 de Julho. Em cada uma delas há um pedaço vivo de Chagas. Depois da pausa para uma água de coco na praça da Praia Grande, o poeta nos leva ao Desterro. Ali senta-se num banco da praça em frente à igreja e, com o pôr do sol à espreita, lê compulsivamente poemas do livro Os azulejos do tempo.

Nascido no ano de 1924, em Piancó (área hoje pertencente ao município de Santana dos Garrotes), na Paraíba, numa família de lavradores, Chagas é o mais antigo cronista vivo de São Luís, mas prefere se definir como “um violeiro sem viola”. Ele revela que é viciado em escrever: “O tempo inteiro eu vivo fazendo versos. Eu sempre faço versos. Eu tenho até mais facilidade de fazer versos do que de escrever em prosa”.

A lavra mais densa na obra de José Chagas é o primoroso retrato que, ao longo de sua carreira literária, ele construiu da cidade de São Luís. O fascínio que a cidade dos azulejos passou a exercer sobre o poeta levou-o a compor um sem-número de crônicas e poemas, celebrando ruas, telhados, pontes, moças, ondas, marés, silêncios, sobradões e bem-te-vis da velha capital maranhense. Hoje, aposentado, o poeta leva uma vida mansa, rodeado de livros.

O primeiro contato de Chagas foi com a literatura de cordel, a que mais próxima estava do pai dele. Sobre a influência definitiva de seu Francisco Firmo na poesia de Chagas há uma explicação em soneto: “Devo a meu pai a alegria de saber/ que ele levou escondido de mim/ o meu primeiro soneto/ para mostrar ao padre da freguesia / que era escritor e poeta./ A opinião do vigário não me impressionou (aliás bem pouco favorável)/ mas o gesto do meu pai me deu a certeza/ de que um poeta na família não fazia mal/ e seria bem recebido/ ainda que fosse um poeta pequeno/ porque também nossa família/ não tinha desses luxos”.

Foi na árdua tarefa de cavar a terra e o sonho que Chagas ficou no meio do caminho dos estudos. Mas não guarda arrependimentos. A vida, segundo ele, tem sido um eterno aprendizado. Fez com paciência a travessia da lavoura verde para a lavoura azul. E a lavoura azul estava a muitas léguas da Paraíba.

SONETO 13

MUITO CEDO plantei o arroz real,
e o arroz do sonho era o que mais crescia;
também ao capinar o milharal,
mais me ocupava em minha fantasia,
pois da lavra não vinha por igual
o que eu da terra e da ilusão colhida,
e a esperança do verde, por sinal,
murchava no verão, como a alegria;
só o plantio da alma é que era tal
que quanto menos chuva mais floria,
e isso era bom, porquanto é natural
nem só de pão a boca ser vazia,
e se pouco era o pão e pouco o sal,
muito era o doce bem da poesia.

Quando desembarcou em São Luís, José Chagas “espiritualmente já era um pouco maranhense”, porque quando estudava em João Pessoa, a influência cultural do Maranhão, por lá e por outros cantos do Brasil, era muito forte. Os livros didáticos da época continham textos de autores maranhenses, como Gonçalves Dias, Coelho Neto, Humberto de Campos, Viriato Corrêa, Raimundo Correia, João Lisboa, Aluísio e Arthur Azevedo e tantos outros. “Eu já conhecia tanto a literatura maranhense, de um certo modo, que quando cheguei a São Luís e comecei a me entrosar com a intelectualidade da terra, passei a descobrir que eu tinha lido mais autores maranhenses do que os próprios intelectuais daqui”.

Ainda hoje, além de “brincar com as palavras”, Chagas gosta de dedicar-se aos seus prazeres simples: percorrer as ruas de São Luís, observando as pessoas e detendo-se a contemplar casarões; ir a bancas de revistas e às reuniões da Academia Maranhense de Letras, onde desde o ano de 1975 ocupa a Cadeira nº 28. Aliás, no seu discurso de posse na Academia, Chagas disse que, ao chegar a São Luís, já trazia um caderno com poesias feitas na Paraíba. “Como nordestino que vem puxando uma cachorra, pois vim puxando a cachorra, que era a minha poesia”.

Juntou-se, num primeiro momento, à velha guarda da poesia maranhense. Ao lado de nomes consagrados da época, como Corrêa de Araújo, Fernando Viana, Assis Garrido, Manuel Sobrinho, Raul de Freitas e Clodoaldo Cardoso, Chagas foi espalhando pela cidade o seu arroz do sonho. O poeta também juntou-se à nova safra daqueles anos inaugurais. Bandeira Tribuzi, que havia chegado de Portugal, trazia a bordo o farol incandescente da Europa para uma província ainda refratária ao Modernismo. Ao lado de Tribuzi estavam Lago Burnett, Ferreira Gullar, José Sarney, Macedo Neto, Manuel Lopes, Carlos Madeira e muitos outros.

Em todo o percurso de sua vida literária, José Chagas nunca deixou de se reportar às dificuldades do povo nordestino, que ano após ano enfrenta a seca e a aridez do sertão. Retratando esses dramas, ele compôs inúmeros poemas que refletem a força telúrica que sempre serviu para inspirar sua obra. Salta aos olhos, logo no seu primeiro livro – Canção da expectativa -, a preocupação com o flagelo da fome. “Não vou dizer que passei realmente fome. Sou homem da terra da fome, vi a fome de perto e a ameaça dela em torno da nossa família”.

No livro autobiográfico Colégio do Vento, Chagas apresenta 40 sonetos retratando suas raízes e o cenário da terra natal, com os lugares, pessoas e bichos com os quais conviveu na paisagem de seu torrão paraibano. Mas o “fascínio louco” que São Luís passou a exercer sobre o poeta levou-o a compor um vastíssimo conjunto de crônicas e poemas, celebrando a simplicidade e complexidade da velha capital maranhense.

Graças à cumplicidade de um amigo fraterno, Antônio Justa, o jovem José Chagas acabou sendo funcionário da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Depois, exerceu diversos cargos em comissão na administração pública.