segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O último dos poetas de uma boemia esquecida


José Maria Nascimento chega aos 81 anos hoje (18.09) como o último remanescente maranhense de uma poesia forjada por décadas nos becos soturnos da boemia, sob o éter que encobre as ruas estreitas do Centro de São Luís. Poesia, como vida, de altos e baixos. Poesia como meio de vida, quando vida e poesia são quase uma coisa só, e se confundem. Mimetizam.

Autodidata, mal frequentou o ensino básico e logo cedo se jogou no mundo para começar a desaprender nos livros emprestados, nos puteiros e nos bares. Foi “desaprendendo as coisas”, como que ruminando involuntariamente as invenções de Manoel de Barros – e cada vez mais se agarrando no acaso das palavras - que ele virou poeta. Aos 17 anos, publicou os primeiros versos na imprensa. 

Para se sentir verdadeiramente um poeta, imaginava ele, precisava andar com poetas, conviver com a poesia no seu nascedouro, em estado bruto. Começou então a frequentar a roda de intelectuais no Bar do Castro. Foi beber na fonte. E se entregou, como um poeta maldito que se achava, aos primeiros tragos. Um dia, fora alertado por Erasmo Dias: – Sai desse meio, aqui só tem cachaceiro. Vai estudar! Mas era tarde. Ele já era o próprio meio. 

Aos 20 anos, José Maria Nascimento sofreu o golpe da morte do pai, João Pereira, um homem simples, vigia de matadouro, que ansiava um futuro menos dolente para o filho e a família. Construiu das sobras, e de alguma dor, a sua obra, que flutua entre o lirismo – o olhar onírico sobre a cidade que o pariu –, o berro social e a desesperança. É de 1960 o seu primeiro livro, Harmonia do conflito

Foram 15 livros publicados em 60 anos de poesia, alguns deles premiados em concursos literários da prefeitura de São Luís e do governo estadual. Ao longo de todo esse tempo de escritura há momentos de delicadeza e profundo desapego (‘Vai por mim que a vida é uma valsa’) e, como diz o próprio poeta, há dias de lírios jogados à sarjeta (‘... A vida ainda flameja e explode/ Por debaixo dos círculos da esperança).

Não foi uma caminhada fácil. O autodidata, obviamente, não tinha tanta intimidade assim com a língua portuguesa e, por inúmeras vezes, no início da jornada, recorreu a amigos como José Chagas e ao irmão Jorge Nascimento na revisão de seus poemas, nos apontamentos, nas boas dicas de leitura. 

Nos anos 1960, José Maria Nascimento foi viver a sua temporada hippie no Recife e de lá embrenhou-se pelas estradas do Nordeste. Andou sobre o tempo. Experimentou amores novos nas madrugadas, por muitas vezes ele impregnado na fumaça do relento. “Até que um dia acabou o dinheiro. E com isso acabou também o encanto dessa experiência hippie”, conta. 

De volta a São Luís, engatou uma jornada boêmia de longos anos com o seu companheiro de copo e de cruz, o poeta Nauro Machado. Juntos, eles foram a paraísos impuros, purgatórios e inferninhos nos quarteirões da cidade velha. Eram os andarilhos trôpegos da Praia Grande e Desterro: ‘Tenho inverno e verão em mim ocultos/ Iluminando os vales de outro mundo”. 

Foram anos de alcoolismo e desregramento que renderam a José Maria Nascimento, dentre outras chagas, uma tuberculose. O poeta viu a morte de perto. Mas persistiu – ‘O inferno e o céu estão presentes/ Na solidão do verso que me habita’. Só em 1992 tomou a decisão de parar de beber. Quando parou, foi chamado de traidor por Nauro. “A bebida só me trouxe prejuízo. Mas ainda ali, entorpecido, tentei fazer do sofrimento o lirismo para a minha poesia”, comenta. 

Há 25 anos José Maria Nascimento vem se dedicando à fotografia. Com os seus cabelos prateados, o olhar atento de poeta, passos firmes, sai por aí de câmera em punho a decifrar a alma da cidade. Da rua do Ribeirão, número 85, onde mora há 40 anos, ele compõe o seu destino, a sua história. ‘Recrio-me nos abismos do espaço’. 

José Maria Nascimento divide o tempo ainda no acabamento de um livro inédito de poemas, que ele pretende inscrever num desses concursos literários. Sobre reconhecimento, essa palavra cheia de armadilhas, ele não cria grandes expectativas. Nem se considera um injustiçado. “Eu colhi o que plantei”, diz, como quem conhece a trama do chão onde pisa. Só sabe ele que “mora nas manhãs” dessa cidade antiga que, num dia como hoje de setembro do ano passado, esqueceu dos seus 80 anos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Faruk e a maconha


Primeiro chegou o Bob, há 10 anos, um bebê ainda. Maria Clara, uma criança na época, o viu em Brasília, pequenino, olhos de puro dengo, pelo dourado, e nos convenceu a trazê-lo pra morar com a gente em São Luís. Todos crescemos com ele. Virou um lorde, bonachão, hoje com as marcas da idade no corpo. De movimentos mais lentos, dorminhoco e cheio de manias, toma doses diárias de Euthyrox, o remédio que mantém sob controle o hipotireoidismo.    

 

Cinco anos depois veio o Faruk, um rapaz cheio de energia, inquieto, mas visivelmente desorientado, que sequer entendia quando o chamávamos pelo nome. Não era pra menos. Um tanto abaixo do peso, o comportamento extravagante... Resultado: na casa onde morava, a família desistiu dele. E lá estava Maria Clara a nos convencer a adotá-lo. Nós o recebemos e logo aprendemos a conviver com estripulias tão incomuns, com a alegria que não cessava – e que não sabíamos de onde vinha, afinal Faruk fora rejeitado nos seus primeiros dez meses de vida.

 

Bob e Faruk são cães da raça golden retriever. Chegaram e se espalharam em nossas vidas. Maria Clara tinha 11 anos quando assumiu a “tutela” do Bob: na atenção, no carinho, na alimentação, na saúde. E assim foi também com o Faruk. Com os dois cães ela conversa e mantém uma inexorável conexão de afeto.

 

O histórico de rejeição de Faruk fez com que Maria Clara dedicasse uma atenção especial a ele, redobrando cuidados. Apesar de toda aquela energia, o cão era frágil emocionalmente. Quando o acolhemos, por exemplo, Faruk não sabia o que era um carinho. Foi um aprendizado – para ele e para nós. E, ao chegar em casa, ainda teve que lidar com as crises de ciúme de Bob, que logo passaram. 

 

Em alguns meses, Faruk recuperou o peso e ganhou força, muita força. Uma das brincadeiras favoritas dele era me desafiar num cabo de guerra com qualquer pano de chão que encontrasse pela frente. Na maioria das vezes, conseguia me arrastar por metros.

 

Mas ele tinha o hábito de engolir coisas estranhas. Caroços de manga, meias, brinquedos e pequenas pedras faziam parte desse exótico cardápio do cão. Certa vez ele engoliu um seixo imenso e começou a apresentar complicações sérias, como a obstrução no estômago, que desencadeou crises de gastrite e pancreatite agudas. Só não foi a óbito porque o levamos às pressas a uma dessas clínicas que atendem na madrugada. Logo pela manhã ele estava na mesa de cirurgia, para a retirada do seixo. Passou semanas em recuperação. E sobreviveu. 

 

Nesse interregno, Maria Clara cresceu e entrou pra faculdade de medicina veterinária. Era o sonho dela, desde sempre, mas que ganhou forma ali no convívio diário com Faruk e Bob. Maktub!, eu pensava alto.

 

As desarrumações na vida de Faruk, porém, só estavam começando. Em meio aos exames para a intervenção cirúrgica, descobriu-se que ele havia desenvolvido a cinomose, doença viral altamente contagiosa que leva o cão a um processo degenerativo rápido e, quase sempre, à morte. 

 

Quase ao mesmo tempo, Faruk fora diagnosticado também com leishmaniose (também conhecida como calazar), outra grave enfermidade que, na maioria dos casos, deteriora a saúde do cão, deixando-o com chances mínimas de sobrevivência. Um cenário desolador. 

 

Faruk começou a definhar. Perdeu peso bruscamente e iniciou um processo de atrofia muscular que lhe tirou boa parte dos movimentos. Eram dores e espasmos cada vez mais fortes. Mal conseguia andar. Ficamos assustados com os diagnósticos. Mas jamais cogitamos em sacrificá-lo. Mesmo abalada, Maria Clara tomou a frente do tratamento (com o apoio da mãe, Adriana), levando-o a consultas, estudando as doenças e discutindo alternativas com veterinários e professores do curso.


Faruk perdeu muito peso e parte dos movimentos 

Mas era só uma questão de tempo, imaginávamos. Nas entrelinhas das conversas com veterinários, Faruk estava desenganado.  

 

Chegou um momento em que Faruk, completamente debilitado, estava tomando 12 medicamentos ao mesmo tempo. E ainda assim os espasmos só aumentavam. 

 

Maria Clara já havia recorrido a todos os tratamentos convencionais possíveis no campo da medicina veterinária. Até que um dia decidiu procurar o avô, Ubirajara Ramos, que lançara em 2014 Tá todo o mundo enganado (Recife, Editora Babecco), livro que reúne dez anos de pesquisa sobre o uso medicinal da maconha e também aborda a política internacional de guerra às drogas.


Os espasmos de Faruk eram cada vez mais frequentes

Ubirajara recomendou que Maria Clara assistisse a alguns documentários sobre o tema e intermediou o contato com uma amiga dele que fazia o uso regular do óleo da cannabis sativa no tratamento de um filho com epilepsia. 

 

“Anjo” – como passamos a chamar a amiga de Ubirajara –, depois de muita luta como mãe desesperada, e de algumas batalhas judiciais, recebeu há alguns anos autorização da Anvisa para plantar maconha em casa e dela extrair o óleo, em quantidade suficiente para suprir o tratamento do filho. 

 

Após um longo período de pesquisa, “Anjo” passou a conhecer as propriedades medicinais da maconha e, a partir delas, começou a desenvolver o óleo, que já era utilizado em diferentes países no tratamento de doenças psiquiátricas ou neurodegenerativas, como a epilepsia, o Alzheimer, a esclerose múltipla, o mal de Parkinson e a esquizofrenia.    

 

O óleo do “Anjo”, como ela deixa bem claro, é apenas para consumo doméstico, de uso terapêutico no filho. Mas, depois da recomendação do meu sogro Ubirajara e dos apelos de Adriana e Maria Clara, ela resolveu ceder. Por que não a experiência de salvar a vida do Faruk? O “Anjo” topou o desafio, mesmo sem jamais ter aplicado uma gota de óleo da cannabis em um cão.  

 

“Anjo” quis saber tudo sobre a saúde do nosso cão e, de uma ilha distante, onde vive, prontificou-se a nos ajudar. Fomos ao encontro dela no porto, onde recebemos o primeiro frasco com o óleo da maconha e mais orientações sobre o tratamento. O óleo do Faruk, ela nos alerta, tem uma combinação específica de canabinoides. “Cada caso é um caso”.

 

E assim iniciamos o tratamento. Em princípio, duas gotas do óleo por dia. Depois cinco gotas. E apenas uma pequena evolução. As primeiras reações de Faruk só vieram quando aumentamos para dez gotas do canabidiol (o CBD) aplicadas durante a noite, quase dois meses depois do início do tratamento. No meio do caminho, os medicamentos tradicionais foram ficando pra trás. 

 

Antes sem apetite, muito magro e quase sem movimento, Faruk começou, com muita dificuldade, a ensaiar os primeiros passos. Até que um dia pela manhã, eu sentado numa cadeira da varanda lendo o jornal, percebo que algo roçava minha perna. Baixei o jornal e vi Faruk com um pano de chão na boca me convocando para um cabo de guerra. Eu me emocionei. Todos ficamos comovidos com a cena. Aquele cão inquieto de outrora nos dizia, ainda meio cambaleante, torto, que estava de volta ao jogo.

 

E de fato voltou ao jogo. Oito meses depois do início do tratamento com o canabidiol, Faruk recuperou os movimentos, reduziu drasticamente os espasmos, ganhou massa muscular e voltou a ser aquele cão traquinas de antigamente. Hoje, ainda apresenta alguns poucos espasmos – à noite, principalmente –, mas não faz uso de qualquer medicamento convencional. Nunca mais deixou de tomar as gotas de CBD antes de dormir. Nunca mais perdeu o vínculo com essa ilha dos arcanjos. 




Eu, Faruk, Bob e Maria Clara

É ágil e exuberante na forma de se postar. E parece estar sempre ligado nos 220 volts. Corre, pula, rodopia, atropela o Bob com suas quatrocentas patas que parecem molas... Esse é o Faruk. A origem do nome é árabe. Faruk significa aquele que irradia alegria e felicidade. Assim é ele. Significa também aquele que sabe distinguir o certo do errado. Ah, mas isso o Faruk não é mesmo, vamos combinar! Se nos descuidarmos, rapidinho ele devora qualquer pedra que achar pelo caminho. 


Ubirajara Ramos e o Faruk algum tempo após o início do tratamento