quarta-feira, 13 de abril de 2011

O correspondente


Recebi do amigo Aldionor Salgado, na caixa de email do sábado, 9 de abril, informação sobre a morte do veterano jornalista e radialista Reali Jr., aos 71 anos, vítima de enfarte em São Paulo. Aldionor relia no final de semana – e por isso me enviou a mensagem - “Às margens do Sena”, livro-depoimento de Reali Jr. a Gianni Carta publicado pela Ediouro em 2007.

Reali foi correspondente do jornal “O Estado de São Paulo” e da rádio Jovem Pan em Paris por 38 anos. Manteve no seu apartamento, às margens do rio Sena e nas proximidades da torre Eiffel, uma espécie de embaixada informal do Brasil na França, por onde passaram presidentes da República, artistas, empresários e desportistas famosos. Pra conversar, beber, comer.

“Às margens do Sena” é uma saborosa leitura de final de semana e uma despretensiosa aula de jornalismo. São histórias verdadeiras, inspiradas e bem humoradas que revelam o grau de inventividade natural do repórter nato, do jornalista em tempo integral, do anfitrião afetivo, do apreciador da boa mesa e do vinho de safra festejada.

Foi viver na França pra fugir das tormentas da ditadura militar. Comunista inconfesso sob o olhar míope dos homens de farda, Reali Jr. deixou o Brasil no início dos anos 70 para armar barricadas de boas reportagens e boemia na capital de tantos exilados diletantes.

Em “Às margens do rio Sena”, Aldionor Salgado destacou trechos que remetem a cruzada parisiense de Reali Jr. a personagens do Maranhão. Logo no prefácio da obra, Mino Carta relembra a boa convivência com Reali e cita nomes evocados à mesa no tilintar das taças de tinto, como Cláudio Abramo, Pedro Cavalcanti, Rosa Freire d’Aguiar e Napoleão Sabóia. Segundo Mino Carta, a mãe de Napoleão segredara a Sarney a receita de uma tintura vegetal para cabelos precocemente encanecidos.

Napoleão Sabóia, que era correspondente em Paris do “Jornal da Tarde” e do “Correio Braziliense”, foi protagonista de uma situação hilária. Avisado de que teria um almoço-reunião com exilados e intelectuais de esquerda brasileiros no apartamento de Reali Jr., Napô resolveu levar a tiracolo um convidado ilustre. Antes, porém, telefonou para o anfitrião e perguntou: “Posso levar o Zé?” Ao que Reali respondeu: “Claro, traz o Zé”, sem saber exatamente qual era o Zé. Era José Sarney, na época presidente do PDS. Ao abrir a porta, o dono da casa ficou ao mesmo tempo surpreso e assustado com o que poderia acontecer naquele encontro regado a feijoada preparada com esmero por dona Amélia, a primeira-dama do apartamento.

“Mas Sarney, político com tarimba, comportou-se muito bem e até parecia ser um esquerdista entre os exilados. Apertaram-no de todas as maneiras possíveis, Sarney tirou de letra. Passamos uma tarde agradável”, relata Reali Jr. em seu livro-depoimento. No meio dos comensais estava o cineasta baiano Gláuber Rocha, idealizador do documentário “Maranhão 66”, que registrara a posse de Sarney como governador do Maranhão.

Pouco tempo depois de deixar a Presidência da República, Sarney visitou novamente Reali Jr. em Paris. “Nunca esqueci daquela feijoada”, teria dito o ex-presidente a dona Amélia. No depoimento a Gianni Carta, Reali diz que Sarney é “muito educado, aberto e conciliador”. O jornalista conheceu Sarney em plena campanha eleitoral para o governo do Maranhão, por intermédio do deputado ademarista Arnaldo Cerdeira. E diz que Sarney, após os compromissos políticos de rotina, frequentava com certa assiduidade as noitadas no Som de Cristal, famosa gafieira no centro de São Paulo. “Gosto do Sarney como pessoa, embora não aprecie o político”, relata Reali Jr. em “Às margens do Sena”.

Exemplo clássico de que muitas decisões importantes sobre o cotidiano político brasileiro eram tomadas literalmente às margens do rio Sena: foi numa soirée no apartamento de Reali Junior que a atriz Fernanda Montenegro encontrou forças para dizer não ao convite do então presidente José Sarney, que sonhava vê-la ministra da Cultura de seu governo, segundo conta o crítico de cinema Rubens Ewald Filho.

As referências de Aldionor Salgado apenas atiçam a vontade de quem se arrisca a reler “Às margens do Sena”, livro atual, leve e, em certa altura, arrebatador. Afinal, são histórias pitorescas, nuances da vida de quem empreendeu coberturas marcantes, como a Revolução dos Cravos em Portugal, a queda do franquismo na Espanha e a ascensão de Lech Walesa e o Sindicato Solidariedade na Polônia. E tudo vale mais a pena quando o livro se confunde com o cartão de embarque.

Aldionor Salgado fez chegar às minhas mãos, há poucos dias, preciosas folhas que se perderam lá se vão quase vinte e cinco anos: uma entrevista que fizemos com o lendário cavaleiro Luís Carlos Prestes. Mas isso é pretexto pra uma outra prosa.