segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A igreja da minha infância


O domingo era um dia especial na minha infância em Barra do Corda. Acordava de uma noite embalada pelos sonhos carregados pela ansiedade de chegar logo a luz da manhã. Cedo começava a minha missão de acólito da Igreja Matriz. Durante certo tempo, fiz o caminho de casa à igreja, ambas na mesma rua, com dedicação fervorosa. Eu era um pequeno voluntário que até adoecia se não chegasse a tempo de ajudar a paróquia na missa do domingo. Vivia aquela inocente convicção de que sem mim a celebração não existia.

A igreja foi a principal referência das cidades do interior. E naqueles tempos essa referência parecia maior na impressão de um menino. O monumento de pé-direito exuberante dialogava com a praça Melo Uchoa florida de girassóis e acácias e suas palmeiras imperiais imensas. A torre alta, que se via ao longe de qualquer ponto da cidade, parecia um desenho caprichoso de Deus no caderno do colégio Pio XI. A arquitetura, o mosaico, os bancos de madeira em duas fileiras, os vitrais coloridos e aquelas gravuras de santos e passagens bíblicas na parede me fascinavam. Não era um lugar qualquer. Era a igreja da minha infância. E em tudo havia motivo de contemplação.

Fui um acólito aplicado, um coroinha devotado, bem como foram os amigos Denes, Rogério, Pedrinho, Roberto e outros que não lembro o nome, todos sob a orientação quase celestial de frei Jesualdo Lazzari. Tínhamos o papel de auxiliar o padre no ministério do altar. O ofício guardava as suas regalias. A batina vermelha com uma faixa azul na cintura nos dava um certo status. A igreja estava sempre cheia nas manhãs de domingo e, para o nosso contentamento escancarado, as mães levavam suas filhas de roupa nova e cheirando a alfazema para a fila da comunhão. Era o momento mais esperado, quando tínhamos enfim a chance de um contato mais próximo com o nosso alvo semanal. Olho no olho era o bastante, mãos ligeiramente trêmulas naquela fração de segundos. Tempo suficiente para o padre entregar a hóstia, enquanto um de nós apoiava a bandeja abaixo do queixo da menina – era assim para que não houvesse perda nas sobras do pão sagrado. O ritual durava uma eternidade na nossa cabeça. As hóstias que restavam da missa sumiam da sacristia e milagrosamente recheavam horas depois o nosso piquenique à beira do rio.

Mas antes de tudo havia outro rito prazeroso. O primeiro sinal da missa era o convite dos sinos que badalavam da torre da igreja e varavam as ruas da cidade. Aos dez anos de idade, me pendurava nas cordas dos sinos com a mesma desenvoltura com que saltava do alto da ponte do rio Corda. Era uma farra que exigia uma certa perícia de moleque. Não bastava pendurar-se nas cordas. Era preciso conhecer a cadência de cada nota de sino. Para as missas da semana, soavam dois sinos, com apenas um toque cada, alternando sequencialmente. Na missa do domingo ou em dias de celebração especial, tocávamos todos os sinos ao mesmo tempo. O segredo estava na cadência mais lenta das primeiras badaladas. Se morria alguém na cidade, eram dois sinos, que alternavam cada um em três toques sequenciais, com pausas fúnebres bem curtas – desse ritual eu pulava fora, inventada uma desculpa e ia pra casa calado na companhia solitária do meu medo.

Depois do sino, emendávamos da vitrola as músicas de Padre Zezinho pelo serviço de alto-falante que também ecoava da torre da Matriz para toda a cidade. Ninguém, naqueles tempos, deixou de ser alcançado no domingo por canções católicas como “Cidadão do infinito”, “De novo penso em Deus”, “Um certo Galileu”, “Hoje é domingo”, “Utopia”, “Maria da minha infância” e “Um dia uma criança me parou”, entre outras mais que a memória guardou no passado. São hinos da minha vida, e o catecismo na vida de muita gente. As músicas deixavam um clima de oração espalhado pela cidade, um certo cheiro de paz.

Ia todos os dias à missa e cheguei ao posto intermediário da carreira missionária quando assumi a “presidência” do clube dos acólitos. Sem combinar nada com os meus pais, planejei entrar para o seminário, passo inicial do sacerdócio. Corria longe a fama do time de futebol dos seminaristas. E nas poucas vezes que eles participavam da missa de domingo, entravam na igreja com pinta de celebridade. Mas o período que vivi em Barra do Corda foi mais curto que a minha pouca vocação.

Além de saber de cor e salteado o texto de celebração da missa, aprendi muito na minha rápida e intensa experiência de igreja. A Matriz de Barra do Corda foi também a minha casa, me ajudou a ser criança, me encheu de fé e me fez entender o valor da família e dos amigos. Os sermões de frei Jesualdo eram uma espécie de bálsamo da simplicidade, a fortuna de esperança da gente humilde. Falava direto ao coração das pessoas. A vida ficava mais plena. Por tudo isso, as manhãs de domingo têm esse sabor especial da infância que não quero esquecer.