terça-feira, 23 de maio de 2017

A solidão de Macondo



Depois de léguas de páginas em viagem por Macondo, a remota e misteriosa aldeia do clã Buendía, nenhum viajante/leitor voltará o mesmo. Macondo nasceu em A revoada, mas foi com Cem anos de solidão, na primeira edição de maio de 1967, que a cidade imaginária passou a arrastar séquitos de visitantes curiosos, incréus e aturdidos.

Cinquenta anos depois, a capital do realismo mágico de Gabriel García Márquez continua viva, embora erma e enigmática, desafiando o sossego e a memória de quem se arrisca a decifrá-la. Daí porque, de lá, ainda que em ligeira espiada, ninguém retorna impunemente. Foi o que ocorreu comigo e, certamente, com milhões de outros leitores mundo afora.

O labirinto de Cem anos de solidão tem como portão de entrada o rito de colonização da América Latina, numa época em que “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome”. A solidão de Macondo e seus personagens é uma espécie de metáfora do isolamento e do provincianismo político dos países latino-americanos, características legadas pela esperteza de “gente estrangeira”.

Do casamento de José Arcardio com Úrsula seguem-se sete gerações de muitas histórias entrelaçadas pelo viés político e enriquecidas por um componente mítico peculiar do autor – numa melancólica Macondo “choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias”. Foi esse imaginário fantástico que deu asas a Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão – noutras dezenas de livros também - e o projetou ao Nobel de Literatura. Ao longo de anos, o escritor colombiano desembainhou discursos contra a desarrumação descomunal da América Latina e os expôs com suprema elegância na sua literatura. Ressentia-se ele da equivocada leitura que a Europa, em especial, fazia sobre a história e a cultura da América Latina.

O desconhecimento europeu deliberado, segundo García Márquez, reduziu por séculos o “tamanho cultural” das nações e do povo latino-americanos. “A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários”, disse ele em Estocolmo, em 1982, ao receber da Academia Sueca o Nobel de Literatura. E acrescentou: “Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva se tratasse de nos ver em seu próprio passado”.

No livro Eu não vim fazer um discurso (Record, 2011), coletânea de pronunciamentos de Gabriel García Márquez em diferentes lugares e situações, desde sua estreia como orador ainda estudante em Zipaquirá (Colômbia), há um rosário de argumentos que reforçam as convicções de um escritor assumidamente de esquerda, com os pés no chão e a imaginação em permanente euforia.

O povo latino-americano soube catalisar agruras e transformá-las em fábulas, segundo a essência do discurso de García Márquez. O nó da solidão na América Latina, dizia, está na distância entre o duro assombro da escassez cotidiana e a fantasia em estado bruto: “Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável”.

A aventura quimérica presente na obra de García Márquez, com suas histórias encobertas por nuvens de amor e cólera, é pródiga na marcha pela redenção da América Latina, essa irremediável Macondo dos esquecidos, fina estirpe dos solitários. É nesse exercício de leitura errante pelas aldeias do escritor colombiano que encontramos em meio à prosa crua, provocadora, a poesia inverossímil que escorre pelo caule de um conversador empedernido. “Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia”.

Os espíritos, intumescidos no realismo mágico do escritor, morto em 2014 aos 87 anos, vagueiam distraídos “num café com gosto de janela, num pão com gosto de esquina, numa cereja com gosto de beijo”. Depois da primeira leitura, lá pelos meus 17 anos, por algumas vezes ainda voltei a folhear Macondo na esperança de encontrar esperança num pé de página. Quem sabe lá na frente, num inventário de escrituras polidas, como em Cem anos de solidão, a América Latina enxergará, enfim, esse caprichoso futuro escondido “no fundo dos cântaros”.