segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Felizes anos velhos

Texto originalmente publicado no jornal O Estado do Maranhão, no dia 25 de abril de 1998



"Tchau, mãe. Se cuida, tá? Thaís e Ana, vocês são belas mulheres; Cassy, continue tocando, que você chega lá. Virgínia, pena você não ter me amado como eu te amei. Veroca, Eliana, Nalu e Big, juízo, hein? Gorda, você é um cara incrível. Ricardo, meu irmãozinho, o cara que mais me conhece. Nana, querida, não fique com raiva de mim, eu tentei gostar de você, mas não dava, eu tava muito chato. Marcinha, gracinha, você é uma fofa. Fabião, vá à luta, meu chapa, Mariúsa, mãezinha, valeu a força que você me deu. Gureti, vê se fica menos briguenta. Maurão, seu veado, não beba tanto. Bundão, querido, cuida bem delas, tá? Zequinha, seu louco, largue um pouco os livros, bata mais punheta. Celso, lindo, você é duca. Nélson e Olaf, cuidem bem da chácara. Betão, Rubão, Max, lembrem de minhas posições. Laurinha, fofa, emagreça um pouquinho. Milu, você tá me devendo uma transa, hein? Tchau, pessoal, feliz ano novo pra vocês".

Foi assim que fui apresentado ao livro Feliz Ano Velho, de um cara chamado Marcelo Rubens Paiva. Cândido, um grande amigo dos tempos de escola, mal tinha começado a ler a obra, andava eufórico e fez questão de me mostrar esse trecho no meio de uma sonolenta aula de matemática. Ele sabia que aquilo iria mexer com minha curiosidade. E mexeu mesmo, tipo um soco! "Cara, é a maior viagem. Olha só a linguagem...", me disse ele, com ar de devoção. Foi assim! No outro dia corri até a livraria JC, no Edifício Caiçara, e comprei o livro. E terminamos a leitura quase ao mesmo tempo.

O ano era 1984. Feliz Ano Velho havia sido lançado em 1982 e caiu em nossas mãos no segundo ano científico, em meio às turbulências dos 15 ou 16 anos de idade. Devorei o livro em pouquíssimo tempo, reli, fiz umas anotações ao lado de cada trecho que achava interessante e passei adiante. As coisas ali no Dom Bosco – pelo menos entre os amigos de sala de aula e corredor – aconteciam mais ou menos desse jeito: se rolava algo legal, todo mundo experimentava. Assim, acho que o meu exemplar de Feliz Ano Velho foi lido por Leila, Gina, Célia, Ana, George, Cláudia, Maria. Talvez Marta, Ana Rosa, Sílvia, Gil... Já não lembro bem.

Lembro apenas que até hoje o livro não chegou de volta às minhas mãos. Pude vê-lo certa vez escondido dentro de uma apostila de Botânica de alguém da turma 203. Notei que aos meus rascunhos juntaram-se vários delírios daquela geração. Infinitas confissões, distrações, abobrinhas, desencantos.

No dia a dia da escola líamos Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Mulato, O Guarani, Éramos seis, A Pata da Gazela... Era batata: cairiam questões nas provas bimestrais de literatura e o mestre Valdivino não hesitaria em pedir uma resenha de cada livro. Muitas vezes limitávamos a ler as resenhas que ali surgiam já prontinhas, o que não exigia muito esforço. Não que os livros de Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio de Azevedo (e outros tantos medalhões da literatura) fossem desinteressantes. Pelo contrário. Hoje, relendo alguns desses clássicos, fica a certeza de que estávamos muito bem servidos. Mas havia o fato da imposição. E isso, às vezes, mexia como uma espoleta na alma de adolescentes inconformados a pretexto de tudo.

Pela contramão, numa espécie de mercado negro do nosso conhecimento pueril, Feliz Ano Velho surgia como um alento. Espontâneo. Não haveria provas ou arguição. Ninguém te pediria uma resenha ou análise de cinco linhas num almaço sequer. E se exigissem, as páginas rabiscadas e comentadas exibiam a cumplicidade de cada leitor com a história de Marcelo Rubens Paiva.

O livro expunha o nosso dialeto. A história? Um jovem buscando superar com doses de humor e lirismo alguns traumas que marcaram sua vida, como o desaparecimento do pai (o deputado Rubens Paiva), em janeiro de 1971, e o acidente que o deixou paraplégico aos 20 anos de idade, em dezembro de 1980. A trama é enriquecida pelo carisma do narrador que, ao tocar em determinados assuntos, transforma tabus da época em banalidade. Sexo sem frescura ou meias palavras, os primeiros tragos e a música como fundamento. Prato cheio para cativar leitores de todas as tendências, dos mais exigentes aos eventuais – como nós que, sentados no pátio da escola, líamos desarmados.

Havia um tempo em que livros eram compartilhados como se fossem sorvetes de tapioca, na porta da lanchonete Stop, na Rua do Passeio. O tempo em que li Feliz Ano Velho. Tempo em que Stairway to heaven do Led Zeppelin embalava os nossos sonhos. A buzina do Chacrinha, os filmes Bete Balanço e Menino do Rio, Flávio Cavalcante, o Thriller de Michael Jackson, a explosão do rock nacional, entre outras coisas, formavam o cenário do romantismo adolescente.

Feliz Ano Velho esteve por diversas vezes na lista dos livros mais vendidos, ganhou prêmios importantes, como o Jabuti e Moinho Santisfa, e chegou a ser traduzido para vários idiomas. Foi adaptado, ainda na década de 1980, para teatro e cinema. Ao completar 15 anos, no final de 1997, "Feliz Ano Velho" ganhou uma edição especial, ilustrada com fotos de personagens do livro e de alguns momentos que marcaram a carreira do autor.

Cândido, o cara que me apresentou a Marcelo Rubens Paiva, nasceu em 1968 (tinha de ser 1968!) e era uma dessas cabeças iluminadas que a gente tem o prazer de chamar de amigo. Conheci, através dele, um pouco do que estava acontecendo lá fora, o valor da amizade e aprendi a amar os Beatles, Adelino Nascimento, a estética do Cinema Novo e os Rolling Stones. Em 1993, pouco tempo depois de concluir o curso de Medicina, Cândido foi morar com os anjos e deixou uma baita saudade.

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