terça-feira, 12 de julho de 2022

De Daomé à Casa das Minas, a rota de escravidão da rainha


Rio - Ao perceber a presença de maranhenses na fila de autógrafos do terceiro volume da série Escravidão (editora Globo Livros), o historiador Laurentino Gomes foi logo chamando a atenção para um capítulo especial do livro dedicado a Nã Agotimé. Na noite de ontem estávamos eu, o poeta Salgado Maranhão e meu filho João Vítor com a namorada Jorgeanna na Livraria da Travessa, no lançamento da obra que fecha a trilogia e faz um recorte temporal da Independência do Brasil à Lei Áurea.  

 

Laurentino bebe nas fontes do historiador Alberto da Costa e Silva e dos antropólogos Pierre Verger (também etnógrafo e fotógrafo) e Sérgio Ferretti para associar a história da rainha africana Nã Agotimé às origens do Querebentan de Zomadonu, a popular Casa das Minas que resiste ao tempo na rua de São Pantaleão, no Centro de São Luís. 

 

Não obstante o volume de segredos e mistérios guardados nos rituais de culto afro no Brasil, respeitados na maioria dos estudos antropológicos, Nã Agotimé teria fundado a Casa das Minas no Maranhão depois de ser vendida ao Brasil como escrava durante guerra familiar pela sucessão do trono de Daomé (atual Benim) no final do século XVIII.

 

Oficialmente, a Casa das Minas foi fundada por Maria Jesuína, em nome de quem está a escritura mais antiga do imóvel, datada de 1847. Há quem diga, porém, que Maria Jesuína nunca teria existido. Seria apenas um codinome para esconder “a verdadeira responsável pela criação desse local de culto, cuja identificação por razões obscuras se manteria até hoje como um segredo muito bem guardado pelas suas sucessoras”.   

 

Nã Agotimé foi uma das muitas esposas do rei Agonglô. Nã tomou partido de um dos filhos para assumir o reinado após a morte de Agonglô. Mas a guerra civil levou ao trono Adandozan, um rei vingativo e sanguinário que governou Daomé por duas décadas. A Casa das Minas seria, portanto, um pedaço do reino daometano – exatamente aquele em contraposição a Adandozan – transportado para o outro lado do Atlântico pela rainha exilada.

 

Laurentino Gomes chama a atenção, com essa e outras histórias da trilogia, para o fato de que a escravidão afetava não somente pobres, mas pessoas ricas e poderosas. “A perversa engrenagem do tráfico negreiro não poupava ninguém”. Segundo ele, a exemplo do caso de Nã Aglotimé, uma fatia representativa da nobreza africana foi lançada nos porões de navios “rumo a um destino muitas vezes anônimo e misterioso no cativeiro no Brasil”.     

 

Em 2005, o terreiro da Casa das Minas fora tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ao longo do tempo, sem a renovação de filhas e mães de santo, os rituais e segredos – como o culto aos chamados vuduns – deixaram de ser passados de uma geração para outra. Em 2015 morreu a última chefe da casa, Deni Prata Jardim, aos 89 anos.    

 

De acordo com pesquisas de Laurentino Gomes, em seis anos de viagens por doze países, no período de chegada da rainha Nã Agotimé ao Brasil o Maranhão era uma das principais rotas do comércio negreiro no continente americano. De 1741 a 1842, aproximadamente 100 mil africanos desembarcaram em São Luís.  

 

Como na definição de José Bonifácio de Andrada e Silva, destacada em boa hora no livro de Laurentino Gomes – que lança um olhar de estudioso, mas também de agudeza crítica, sobre triste período da história da humanidade – a escravidão era “um cancro que contaminava e roía as entranhas da sociedade brasileira”. 

 

Por fim, ao finalizar a leitura do capítulo recomendado por Laurentino, sobre a rainha Nã Agotimé, deixo aqui o registro de uma composição memorável da música produzida no Maranhão que retrata com poesia e engenho melódico o eco dos tambores de choro da Casa das Minas. Trata-se do enredo Do Daomé à Casa das Minas – a origem de um povo, de Betto Pereira e Augusto César Maia, um dos mais belos da história dos carnavais maranhenses defendido em 1980 pela escola Flor do Samba.  

 

Foi Dã quem deu origem a Daomé

E de lá pra cá a África se transportou

Guardadas no comé da Casa das Minas

Memória de um povo exaltada ao som de um tambor

 

Uma família Davice

Aqui impõe sua cultura e tradição

Acolhe escravos, cresce forte

E a nação gege rompe a aurora dos seus deuses

Pra Zomadonu com todo seu panteão

Negro dança a noite inteira

Cantando lamentos, de pés no chão

 

Toca o tambor de choro

É mais um negro que se vai

Morre um negro nasce outro

Deixa o negro em sua paz

 

Negra Fulô era feirante do amor

E o negrinho Cosme se fez barão dos bem-te-vis

E ostentou toda uma raça, Catarina Mina

Negros brotaram das raízes do reinado de Abomei

Mãe Andreza encheu de amor todo Querebentan

Evoca o teu orixá e oferenda abobó, caruru e cuxá

 

Roda saia preta mina

Que o atabaque ecoou

Mostra a beleza e a nobreza

Que o povo fon te deixou

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário