domingo, 22 de janeiro de 2023

Com auroras no coração


Ilustração de Fernando Mendonça

Como deixa bem claro logo na primeira piscadela, Antônio Carlos Alvim traz na bagagem do livro O silêncio dos olhos a trincheira de impressões que acumulou na dura caminhada, como as lições da pedra cabralina, os minérios vingativos de Drummond e as bananas podres de Gullar, dentre outros utensílios inescapáveis de uma viagem que pode durar uma vida, uma guerra ou – quem sabe? – uma pandemia interior. São ferramentas que ajudam a compor o calcanhar errante do autor. 

No primeiro livro de poemas, Floresta de signos (Ed. Penalux, 2019), estão as pegadas de um andarilho que se perdeu do bando, mas que jamais abriu mão da poética, mesmo quando o mínimo que se apanhava do chão era o lirismo. Este segundo livro é um segundo passo, mais firme, de quem faz do verso um recomeço a cada dia.  

Mas a origem da poesia de Alvim está no ventre soturno da Akademia dos Párias, na irreverência, no controverso. Por mais que tente se desgarrar, restará por perto uma ponta solta, um fio desencapado, uma combustão a moldar a pena, como no poema Silêncio: ‘meu coração/ é um arsenal de pavores/ não receio a morte/ a vida me dá luto’.  

É provável que o leitor desconfie que por trás do poema exista uma cilada quase biográfica, mas, como em todas as imbricações da poesia, ficará preso nesse labirinto malsão da desconfiança. Por entre as linhas que povoam a íris silenciosa, introvertida, do poeta, haverá um luminoso sol debruçado na arrebentação das manhãs. 

Como quem prefere andar por aí à margem, pelo acostamento, com sua polaroide imaginária a tiracolo; como quem observa a rua, a alma dos passantes, o mundo ao redor, pelo buraco da fechadura, Alvim tem um estilo peculiar de apreender o poema com a voz baixa de um velho sábio. O silêncio dos olhos é uma elegia ao poeta qualquer que, sob o incenso de muita inventividade, prefere enxergar a vida de soslaio.    

O tempo, ao que parece na poesia de Alvim, é uma armadura inútil que insiste em tatear a página: ‘Toda casa envelhece/ com seus donos/ paredes/ venezianas/ taco/ sótão’. A casa é o próprio poeta reencontrando-se com o espelho depois de uma jornada intensa na estiva de horizontes recortados por realidades quase mortas, como no poema Idade: 

 

(...)

quase não tenho notado

essa transformação

que devagar

constante

e eternamente

do espelho 

vem esmaecer

o meu rosto

 

Com O silêncio dos olhos, o poeta está de volta ao jogo, abrindo, sem temores, a porta de sua casa, dobrando as esquinas do mundo de cabeça erguida. Ao lado de seus guias, gurus e xamãs, ele só quer percorrer o dia com auroras no coração, para depois, quando enfim vier o crepúsculo, tirar um fino na esperança. Ouça o que tem a dizer o olhar translúcido de Antônio Carlos Alvim. 

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