quarta-feira, 4 de junho de 2025

As viagens, os muros e a democracia


Viajar é também perder países, como escreveu o poeta Fernando Pessoa. Mas é, sobretudo, descobrir personagens no meio da paisagem urbana. Encontrar pessoas, colecionar histórias, enxergar os muros.

 

Ontem, vagando pelas ruas de Viena, parei diante de um painel gigante com a inscrição em alemão “Demokratie muss jeden tag erneuert werden”. Não entendo uma linha de alemão, mas a frase tinha algo de direto, incontornável: falava de democracia. Em português, seria algo como “A democracia deve ser renovada todos os dias”.

 

Comecei a fotografar o painel, que trazia, além da frase, rostos desenhados de indígenas, mulheres, crianças e trabalhadores. A impressão era clara: aquilo era mais do que arte urbana. Era um lembrete. Um chamado para os passantes – como eu – sobre a importância de cuidar da democracia como se cuida de algo vivo. Um bem coletivo que exige presença, atenção e responsabilidade.

 

Ali, em frente ao painel, também estava um homem. Meia-idade, barba grisalha, jeans surrado, colete, máquina fotográfica em punho. Um olhar que vasculhava detalhes. Perguntei, pelo que aparentava, se era fotógrafo profissional. Sim, era. Sergio Montero, espanhol, fotógrafo e documentarista.

 

Conversamos brevemente. Contou que estava de passagem por Viena e seguiria no dia seguinte para Mauthausen.

 

Na pequena cidade austríaca, Montero vai documentar um ato político amanhã, dia 5, organizado por familiares de vítimas do Holocausto. Uma manifestação em memória dos que perderam a vida sob o regime nazista. Um gesto coletivo para manter acesa a lembrança e, com ela, a consciência dos riscos que rondam os esquecimentos da história.

 

Mauthausen foi um campo de concentração durante a Segunda Guerra. Muitos prisioneiros passaram por lá, entre eles um número expressivo de espanhóis. Após a Guerra Civil espanhola, muitos republicanos que resistiram ao franquismo se exilaram, mas acabaram capturados e enviados para campos nazistas. Mauthausen, conhecido pela brutalidade dos trabalhos forçados, foi um desses destinos.

 

Milhares de espanhóis morreram ali e nos subcampos ligados a Mauthausen. Parte dolorosa da história da Espanha e do Holocausto europeu. Segundo o fotógrafo, em datas como esta de amanhã, familiares, ativistas e instituições se reúnem para homenagear as vítimas e lembrar o que não pode ser esquecido. Um encontro que, além da memória, quer afirmar os fundamentos da democracia: tolerância, respeito, direitos humanos.

 

Lábios cerrados

 

Montero é autor de um documentário intitulado “Los labios apretados” ("Os lábios cerrados", em tradução livre), lançado em 2018. O impulso para o filme veio de uma descoberta íntima: já adulto, soube que seu avô havia sido um dos mineiros envolvidos na Revolução de 1934 nas Astúrias. Um dado que nunca fora mencionado em casa. O silêncio não era acaso, mas herança.

 

A Revolução de 1934 é um marco da resistência operária na Espanha pré-Guerra Civil, uma tentativa de barrar o avanço de um governo que se alinhava ao fascismo e culminaria no regime de Francisco Franco.

 

Montero cresceu nas Astúrias, cercado por esse silêncio espesso. Como em tantas famílias espanholas, o passado foi trancado por medo ou trauma. O próprio título do filme é uma metáfora desse apagamento.

 

A produção levou nove anos. Depoimentos colhidos no Uruguai, Argentina e na própria Astúria. Acesso a 22 arquivos em diferentes cidades. A história da Revolução de 1934 havia sido sepultada durante o franquismo. Falar sobre ela era tabu. A repressão foi tão eficaz que muitos descendentes de militantes sequer souberam da existência desses episódios familiares.

 

Sergio Montero, meu interlocutor fortuito numa tarde nublada em Viena, é personagem de uma história que faz cruzamentos entre episódios públicos e sua vida privada. Uma história de resistência à repressão. E pela causa das liberdades. Da democracia, esta palavra de origem grega – e, com o perdão do trocadilho, também gregária, por juntar pessoas em frente a painéis aleatórios – que atravessa o tempo para se reinventar a todo instante. Nos muros. Nas viagens. Nos corações e mentes.

 

Escrevo este texto já no trem, na esperança de encontrar outras praças, mais histórias, sem saber se a ida de Montero a Mauthausen renderá um novo documentário. Ele mesmo diz não ter certeza do que o aguarda amanhã. 

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