sábado, 23 de outubro de 2021

De perto ninguém era normal



Numa outra situação começaria o texto tentando encontrar alguma senda pra dizer sem meias palavras que o jornal acabou e a vida emula a arte ainda que essa história toda abra uma cratera de desencanto em relação ao futuro mas pra começo de conversa o jornalismo não chegou ao fim como um convescote sob a chuva e a última edição impressa de um jornal como este não significará o triunfo das fake news amanhã de manhã porque o jornalismo vai persistir apesar de tudo se você quer saber a verdade e digo isso pra falar do meu tempo de chegada ao jornal O Estado do Maranhão em 1995 o ano das tenebrosas transições quando mal tínhamos saído da máquina datilográfica e do videocassete e do telex e do fax para entrar na era do Windows 95 e da web e do telefone móvel e da música digital e ali já se falava timidamente do começo do fim mas eu estava chegando a convite de Zeca Pinheiro pra dar continuidade ao trabalho iniciado por ele e Francília Cutrim no Galera um caderno especial dos fins de semana voltado para o publico juvenil e eu relutei a princípio mas acabei aceitando o desafio por entender que faria algo diferente das experiências anteriores e na intenção sorrateira de galvanizar o frágil repertório que trazia da faculdade e então desembarquei naquela sala de redação que conhecia de visitas frequentes e do convívio com jornalistas veteranos e venturosos mas havia também um receio imenso de criar um texto para um leitor quase inalcançável e eu ali nos primeiros dias de Galera tentando encontrar palavras que chegassem mais certeiras nos corações e mentes de gente tão cheia de desconfiança e espinhas no rosto e um baita desafio de escrever como quem conversa com esse público e fui me agarrar à leitura feita anos antes de uma edição dos quarenta anos de O apanhador no campo de centeio do J.D. Salinger e como quem procura uma agulha no palheiro de uma loja de tecidos da rua Grande meti na cabeça que os leitores desse nosso tabloide talvez tivessem a mesma rebeldia do misantropo Holden Caulfield e aquilo foi me servindo de bússola e catavento até mergulhar de vez no moinho das digressões de que fala o narrador porque ora na rua como repórter caçando histórias ora sentado de frente para o Compaq 486 no fundo éramos todos Holden com suas aflições e a incapacidade de enxergar um tal amadurecimento batendo à porta além do olhar severo sobre uma sociedade fajuta e falida e as relações familiares e o modelo autoritário e arcaico de educação e os amores escapando pelos poros e a desesperança pulsando na artéria e quem sabe todo esse olhar ácido sobre as coisas e as pessoas hora dessas se desmancharia em afeto ainda que às escondidas por uma irmã caçula feito a Phoebe e seu cabelo meio ruivo e coisa e tal e tudo isso eram epifanias que embalariam meus quase quatro anos de jornal O Estado do Maranhão escrevendo sobre o sexo dos anjos e pajelanças na escola e aborto e inimigos imaginários e a filosofia de cantina e o blefe da cantada e a política e a astrologia barata e o amor e a desilusão da tribo e mais um turbilhão de pautas pensadas e dispensadas todas elas à beira do desregramento do jornalismo e no balaio frenético da subversão do lead e era nessa espiral de amadorismo e paixão que sem culpa eu e Francília Cutrim e parceiros como Nílson Amorim e a galera da Daphne e Bruno Paschkes e Dadá Coelho e Rogério Pixote e Márcio Vasconcelos e Edwin Jinkings e Pedro Sobrinho e Otávio Rodrigues e Sandro Fortes e Flávia Regina e Eduardo Júlio e Wendell Silveira e Ribeiro Jr. e Natália Macedo e Talvany Lukatto e Gil Maranhão e Paulo Washington e Viviane Martins e Beth Bittencourt e Lívia Feitosa e Virgínia Diniz e Gilberto Mineiro e Lenita de Sá e Robson Júnior metíamos poesia na bagunça do dia e música e fotografia e literatura selvagem na matéria-prima de Guttemberg na inglória jornada de dessacralizar a notícia e claro que aqui e ali esbarrávamos em formalismos e tropeços e críticas naturais pelo caminho e os anos correram desembestados e os meninos e meninas que nos liam cresceram e abriram mão dos pelos no corpo e hoje estão por aí em seus quartos conectados nas redes sociais e talvez nem leiam mais revistas e jornais impressos porque não lhes dizem nada que já não desconfiem saber pelos grupos de Whatsapp e pra quê ler jornal se afinal de contas segundo eles tudo está guardado na nuvem e nuvens ficam ali bem perto de Deus e à direita de Bill Gates que por incontida deselegância ainda não programou um tabloide que da prateleira de uma banca de revistas da praça João Lisboa acenda suas luzes com timeline e feed e stories e Tiktok e uma manchete anunciando que a morte do papel é só a morte de uma árvore que ainda não foi plantada mas que envelhece como o smartphone do ano passado e O apanhador do campo de centeio que agora chega aos setenta anos qual um menino nu folheando a página do jornal feita de tempo pra viver outra realidade menos morta o que a essa altura me faz crer que se eu não houvesse lido o nosso amigo Salinger ou passado pela sala de redação de O Estado do Maranhão talvez eu tivesse perdido a chance de em ocasiões como agora engolir vírgulas ou de tumultuar a linguagem ou de me permitir num sábado cometer digressões para nunca mais e vejo que só assim com o nó na garganta de quem nunca se desapegou das inconfidências do menino Holden sou impelido a colocar um ponto final nesse texto que nem gotas interrompendo o piquenique do olhar. 

(texto originalmente publicado hoje na última edição impressa do jornal O Estado do Maranhão; foto de Márcio Vasconcelos, que ilustrou uma das edições do Galera, com performance de César Boaes e Erivelton Viana)

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