sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Chico Maranhão e a verdade tropical de "Gabriela"

Na noite do dia 14 de outubro de 1967 o grupo MPB4 subia ao palco do teatro da TV Record, em São Paulo, para interpretar o frevo "Gabriela”, do cantor e compositor Chico Maranhão, na terceira eliminatória do III Festival da Música Popular Brasileira. Na mesma noite de “Gabriela” concorriam “Domingo no parque” de Gilberto Gil; “Ventania” de Geraldo Vandré; “Capoeirada” de Erasmo Carlos; e “Alegria, alegria” de Caetano Veloso, entre outras canções que dali em diante entrariam para a história da MPB. Em 1997, Caetano publicou “Verdade tropical” (Companhia das Letras) e agora, 20 anos depois, lança uma edição comemorativa – revista e ampliada – da obra que traz um inventário da cena cultural brasileira a partir do tropicalismo, além de impressões do artista sobre o panorama cultural da segunda metade do século passado.

Mas o que há em comum entre a música de Chico Maranhão e o livro de Caetano? O cantor e compositor maranhense jamais pôs os pés na areia da tropicália. Era outra a praia de Chico. Qual o nexo, então? O baiano alcança “Gabriela” ao usar um capítulo de “Verdade tropical” para tecer considerações sobre o contexto do inflamado e polêmico “discurso” que fizera ao interpretar “É proibido proibir” em 1968.

Há 50 anos, a música de Chico Maranhão passou pela terceira eliminatória e acabou em sexto lugar na etapa final do festival da Record, deixando para trás canções de compositores do naipe de Dory Caymmi, Sidney Miller, Vinícius de Moraes e Francis Hime. Pela ordem de classificação, o maranhense perdeu para nomes do primeiro time da MPB: Edu Lobo e Capinam com “Ponteio”, em primeiro lugar; Gilberto Gil com “Domingo no parque”, em segundo; Chico Buarque com “Roda Viva”, em terceiro; Caetano Veloso com “Alegria, alegria”, em quarto; e Roberto Carlos e O Grupo com “Maria, carnaval e cinzas” (de Luís Carlos Paraná), em quinto. Desempenho extraordinário para um compositor desconhecido do grande público, aos vinte e poucos anos estreante em festivais, que assinava apenas como Maranhão.



O fato é que “Gabriela” caiu nas graças do público. Na finalíssima do dia 21 de outubro a plateia entoou o coro de “já ganhou!”, segundo relata Zuza Homem de Mello em “A era dos festivais, uma parábola” (Editora 34, 2003). O frevo na voz do MPB4 – o quarteto devidamente vestido em traje de gala – conquistou o público por quebrar a sisuda atmosfera de protestos que marcaria os festivais da época. Naquele período o Brasil submergia nas águas turvas do patrulhamento ideológico e da censura, subprodutos de uma ditadura militar que duraria duas décadas.

Para acompanhar os compassos e os versos ligeiros e simples – “Atravessei o mar/ A remo e a vela/ (...) Só pra te ver, Grabriela” –, segundo Zuza Homem de Mello, muitos levaram as tradicionais sombrinhas coloridas do frevo pernambucano, transformando o teatro da Record num grande baile de carnaval, com direito a confete e serpentina.

Parte da agitação na plateia fora protagonizada por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, muitos deles colegas da mesma turma de Chico Maranhão e Chico Buarque, que deixou os estudos no meio do caminho.

Embora confiante no engenho arrebatador de “Gabriela”, Chico Maranhão decidira não aparecer no teatro da TV Record para assistir à apresentação do MPB4 na noite da grande final. “Sabia que ia ser classificado. Achava, porém, que minha presença influenciaria a relação entre o intérprete e a plateia e podia afetar o resultado. Por isso, não fui. Escondi-me em algum lugar da cidade, por ali. Não lembro mais onde. Deixei o acontecimento se desenrolar, deu certo”, escreveu Chico em artigo publicado no jornal “O Estado do Maranhão” do dia 17 de setembro de 2011. O compositor conta que, apesar de “retraído”, tinha uma noção superficial daquilo que era mais aceitável na época. “Eram as vibrações das circunstâncias. Não tinha a devida noção da responsabilidade. Não tinha aquela coisa de concorrer”.

Entre os jurados do III Festival da Record estavam Júlio Medaglia, Roberto Corte Real, Carlos Manga, Roberto Freire, Carlos Vergueiro, Chico Anysio, Sérgio Cabral, o maranhense Ferreira Gullar e sua esposa Tereza Aragão e outros. Chico Maranhão recebeu como prêmio um cheque de 2 mil cruzeiros novos.


Contra o vento

Um ano depois do Festival da Record, “Gabriela” voltou à cena ao ser citada num dos trechos do controvertido discurso de Caetano Veloso durante a apresentação de sua música “É proibido proibir” no III Festival Internacional da Canção (FIC), no Teatro da Universidade Católica (Tuca) em São Paulo.

Debaixo de vaias de uma plateia em estado de euforia, “predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de esquerda”, na fase semifinal do FIC Caetano mal conseguiu concluir a apresentação de “É proibido proibir”, que, segundo ele, era somente uma marchinha ternária de sabor anarquista, provocadora, inspirada nas barricadas parisienses de maio de 1968.

Em “Verdade tropical” Caetano afirma que não queria participar do festival. Só aceitou depois de certa insistência da comissão organizadora. Inscreveu “É proibido proibir” como uma espécie de provocação, já que se dizia meio desencantado com o clima de festivais e sem uma música especialmente preparada para a ocasião. Gilberto Gil inscreveu “Questão de ordem” e foi desclassificado logo na fase eliminatória. Caetano seguiu para a semifinal.

Acompanhado pela irreverência dos Mutantes trajados em fantasias alienígenas, e após uma explosiva introdução da música, Caetano iniciou a performance na semifinal recitando trechos do sebastianismo presentes no poema “Mensagem”, de Fernando Pessoa. Diante do happening premeditado do artista, o público começou a virar as costas para o palco. E os Mutantes, como reação, passaram a se apresentar de costas para o público.



Ao longo da performance do cantor baiano, vestido em roupas de plástico, cabeleireira encrespada, e usando colares de fios elétricos com tomadas nas pontas, as vaias misturaram-se a insultos grosseiros e objetos atirados no palco. Em meio à gritaria, Caetano começou a disparar a sua metralhadora cheia de mágoas:

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre matar o velhote inimigo que morreu ontem? Vocês não estão entendendo nada, nada, nada! Absolutamente nada! Hoje não tem Fernando Pessoa”.

E assim continuou até desaguar em Chico Maranhão:

“O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira! O Maranhão [Chico Maranhão] apresentou esse ano uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar, por ser americana. Mas eu e o Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui pra acabar com isso. Eu quero dizer ao júri: me desclassifique! Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil!”.

A música de Chico Maranhão “com arranjo de charleston”, a que se referia Caetano Veloso, em 1968, era “Dança da rosa”, que chegara à etapa final do III Festival Internacional da Canção Popular, realizada no Maracanãzinho, no Rio. A vencedora foi “Sabiá”, de Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque. A música preferida do público, “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, ficou em segundo lugar. “Dança da rosa” foi interpretada na final pelo próprio Chico acompanhado do Quarteto 004 e a Traditional Jazz Band.

O alvo da acidez de Caetano em verdade não era Chico Maranhão. “Dança da rosa” – muito menos “Gabriela” – não era uma música com “inspiração americana”. Mas o tal arranjo de charleston virou pretexto para a fúria retumbante de Caetano, que reverberava ali o grito represado de outros artistas inconformados com a exacerbada xenofobia da militância de esquerda.

“Isso foi um equívoco de Caetano”, disse-me, por telefone, um lacônico Chico Maranhão, dando a entender que o assunto ainda vai render algumas páginas de um livro biográfico que ele rumina em São Paulo, onde reside atualmente.



Contaminados pelo pop

Até meados dos anos 1970, a novela ainda não exercia o poder absoluto no horário nobre da televisão brasileira. No lugar de novelas havia musicais, muitos musicais. A música, e não a teledramaturgia, era a menina dos olhos da TV, e rendia os melhores contratos comerciais. As grandes emissoras tinham contratos com os artistas mais populares e a eles eram dedicados os melhores horários na grade de programação.

A música impunha um peso tão revelador na vida das pessoas que havia até manifestações de rua – com cartazes e faixas - tomando partido em excêntricas contendas sobre influências estrangeiras no cancioneiro popular tradicional. Mas a pauta, aqui e ali, desafinava.

Em 17 de julho de 1967, três meses antes do aguardado festival de música da TV Record, houve passeata organizada por uma tal Frente Única da Música Popular Brasileira, incensada pela militância política estudantil, contra o uso da guitarra elétrica na MPB e, por tabela, contra o imperialismo ianque. Entre os manifestantes mais entusiasmados estavam Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues e Gilberto Gil.



Caetano Veloso, bem como Nara Leão, estava do outro lado dessa rua de amarguras e protestos. O tropicalismo já prenunciava fusões ilimitadas e insurgia-se contra reservas de mercado, tradição, demarcação de espaços musicais, patrulha e cultura colonial. “Alegria, alegria”, por exemplo, tinha um pé à frente dos festivais, a guitarra ousada dos garotos argentinos dos Beat Boys “contaminada pelo pop internacional” e “um toque crítico-amoroso sobre o mundo lá fora”.

No livro “Verdade tropical” Caetano tenta decodificar o berro deixado no ar em “É proibido proibir”, e volta a acertar as contas com arranjos de charleston e outras interferências externas na música brasileira, segundo ele “mal acabadas”. “Eles [os jurados] aprovavam de bom grado imitações toscas de procedimentos americanos ou internacionais já conhecidos, mas um produto bem-feito [a música “Questão de ordem”, de Gilberto Gil, por exemplo] criado num universo estilístico que eles não sabiam que tinha sido aprovado lá fora, não”.

Caetano, embora tenha sido vaiado também na fase eliminatória, conta que o discurso no meio da música, na semifinal, não foi algo de caso pensado, uma ideia ensaiada. Reagiu como um bicho acuado, com a voz oscilando entre um tom descontroladamente inseguro e uma confiança profética.

“O discurso que improvisei foi moldado pelo sentimento que me inspiravam as caras que eu via na plateia, sua raiva e sua tolice”. Logo que o discurso fora iniciado, a plateia que estava de costas começou a se virar para o palco. E acompanhou, espantada, o que Caetano dizia, reagindo com vaias ainda mais raivosas. Foi quando Caetano emendou a provocação: “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”.

Gilberto Gil, chamado por Caetano ao palco no meio da euforia quase messiânica – para que ficasse ali consignado o “grave erro do júri” pela desclassificação de “Questão de ordem” no festival – fora atingido na canela por um pedaço de madeira atirado pelo público. “Saímos do Tuca amedrontados. Na calçada em frente ainda havia pessoas gritando coisas. Fiquei angustiado”, revela Caetano, assumindo a paúra décadas depois. “Eu mesmo, no meu discurso, dera um tom de grandeza ao que fazíamos, e agora temia que tudo fosse demasiado grande”. E assim foi.


Uma noite em 67

Em 2010 veio a lume “Uma noite em 67”, documentário sobre o festival que revolucionou a música brasileira. O filme produzido por Renato Terra e Ricardo Calil tenta reconstruir a histórica noite de 21 de outubro de 1967 com depoimentos de organizadores do festival, jurados e artistas, bastidores das apresentações, episódios curiosos – como o violão quebrado por Sérgio Ricardo em pleno palco – e as principais músicas comentadas.



No tempo regulamentar do documentário lá estão cenas e histórias sobre “Ponteio”, “Domingo no parque”, “Roda Viva”, “Alegria, alegria” e “Maria, carnaval e cinzas”. “Gabriela” entrou apenas nas cenas extras do filme, e sem um depoimento de Chico Maranhão. E mais: no DVD a música traz a autoria de Francisco Fuzzeti, nome artístico que Chico jamais utilizou ao longo da carreira.

No artigo publicado em 2011 no jornal “O Estado do Maranhão”, o autor de “Gabriela” faz algumas ressalvas quanto ao conteúdo do filme. Chico Maranhão alega que a sua música foi o ponto de equilíbrio em meio às forças daquele tumulto ideológico tão temido, e que por isso mesmo merecia um tratamento diferente. “Por que não mencionar o seu autor?”, questiona ele.

Chico Maranhão admite ter gostado e se emocionado logo que assistiu ao filme. “Participei daquilo tudo tão intensamente como todos os outros”. E diz que sempre se achou parte do conjunto da história. Mas deixa escapar certa queixa: “Faço uma ressalva que entendo ser pertinente não porque diga respeito a uma música minha, mas porque diz respeito a uma música que teve grande repercussão e foi escolhida para os extras”.

O DVD, na opinião de Chico Maranhão, é lamentável do ponto de vista histórico, porque o filme está interpretando uma época. E cita o caso do MPB4, que depois do sucesso de “Gabriela” assinou um polpudo contrato com a TV Record. Ao autor, restou um puxão de orelha do então diretor Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, conhecido como “Cabrão”: “O senhor está fazendo o quê? Tocando violão, fazendo música, e não vem fazer a prova de Hidráulica...”.


Gabriela vai ao tribunal

“Gabriela” voltou ao noticiário em 2013 com uma decisão da 5a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Maranhão em favor de Chico Maranhão, contrariando recurso das gravadoras Universal Music e Microservice Tecnologia Digital da Amazônia. A decisão confirmou julgamento em primeira instância (de 2009) e garantiu a Chico a indenização de R$ 80 mil por danos morais.

Segundo alegações do cantor e compositor maranhense, houve erro na impressão das capas iniciais do CD “MPB4”, da coleção Novo Millennium, produzido em 2005. No disco, a autoria de “Gabriela” é creditada erroneamente a Tom Jobim. Na verdade, a música de Chico Maranhão foi confundida com “Tema de amor de Gabriela”, esta sim de autoria de Antônio Carlos Jobim.

De acordo com o processo, as gravadoras admitiram o equívoco e se comprometeram a corrigir o crédito nas prensagens seguintes. Mas os advogados de Chico Maranhão argumentaram que vários CDs já haviam sido vendidos com o nome de Tom Jobim associado a “Gabriela” em todo o território nacional.

A alegação das gravadoras - de “erro por similaridade de títulos” - não convenceu os desembargadores da Justiça maranhense.

Fotos: reprodução de internet.


Nenhum comentário:

Postar um comentário