sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sem botão, no tempo, no topo, no chão (parte 2)


O alquimista Fabão: tempero musical eclético

O contato entre a agulha e o vinil, ali sem fechadura eletrônica, cria a sensação de liberdade plena do som, um acasalamento de tamanha intimidade capaz de espicaçar a imaginação de voyeurs e castos. Mesmo no volume zero da vitrola é possível sentir a música em vibração. Ouvir LPs é redescobrir o movimento que o CD camufla ao girar acelerado demais na bandeja, é dar voltas no tempo. Só o vinil tem o lado B. E é o lado B da música que tem me empurrado para os bolachões mais improváveis.

Nessa recente cruzada analógica, sem muito esforço acabei virando alvo de boas doações. A mais emblemática delas veio do publicitário Fábio Gomes, o amigo Fabão. Convidado há pouco mais de uma semana por Adriana para um jantar, Fabão soube por ela da minha vitrola nova e chegou à nossa casa com um discreto envelope em papel de presente. Dentro havia o LP “Frutificar”, título lançado pela banda A Cor do Som em 1979. Agradeci pela lembrança e pus logo a tocar “Abri a porta”, “Beleza pura”, “Swingue menina” e outros sucessos do disco, enquanto falávamos sobre a onda retrô que volta e meia toma de assalto a cultura pop. De gosto apurado e sensibilidade extravagante, Fabão é maranhense do Olho d’Água, mas virou um desses mundanos do Morumbi e da Vila Madalena, depois de intercâmbios nos Estados Unidos, quatro anos gazeando aula de Economia em Genebra para se fartar de literatura nos arredores da Suiça e uma temporada de invenções publicitárias em Curitiba.

Ao perceber que a minha alegria com o LP não se desmanchava na evolução da conversa, Fabão disse então que o disco da Cor do Som era apenas parte do presente. E me surpreendeu ao sacar da mala do carro duas caixas enormes abarrotadas de LPs. Eram quinhentos discos, todos extremamente conservados em sacos plásticos especiais, catalogados um a um, separados por categoria musical. A vinilteca que ele levou anos para montar e cuidar agora era toda minha. A reação inicial foi um misto de alegria e receio. Receio da responsabilidade de levar adiante uma jornada com o mesmo requinte de zelo, o mesmo apego. Será que eu conseguiria? Como poderia recusar aquilo que de certa forma eu buscava no varejo, e que naquele momento caía no meu colo no atacado?

Fabão não me deixou escolha. Agora os LPs eram meus. Só me fez algumas recomendações: se um dia eu decidisse me desfazer dos discos, que fosse do acervo completo, de uma vez, e não a retalho; e que só passasse adiante para alguém com o mesmo compromisso de conservação e afeto. Fiz um juramento no improviso, topei o desafio e, daquele jantar em diante, me transformei no mais fiel depositário de uma obra heterogênea e abundantemente valiosa.

Mas o que há de tão especial nesse acervo, afinal, que requer tanta cerimônia? Os títulos são variados e, pelo volume, não daria para nomeá-los todos neste texto. Mas faço um exercício rápido advertindo que entre os LPs não há um melhor que o outro. Cada disco tem a sua história. Reflete a realidade do momento em que foi gravado. Não há uma ordem de importância. “Berra-boi”, por exemplo, é um álbum do Quinteto Violado datado de 1973, ou seja, um disco de 40 anos que parece ter sido gravado ontem, tanta é a agudeza poética e melódica em faixas como “Beira de estrada”, “De uma noite de festa”, “Minha ciranda” e “Cavalo marinho”, que se encaixa tão bem aos dias de hoje. Também de 1973 é o LP “Vivência”, da Banda de Pau e Corda, com texto de apresentação de Gilberto Freyre na contracapa.

“Às Próprias Custas S.A.” é um vinil meio cor-de-rosa translúcido que contém gravações ao vivo de Itamar Assumpção e a sua banda Isca de Polícia. De 1983, o disco tem clássicos como “Negra melodia”, de Jards Macalé e Waly Salomão; “Vide verso meu endereço”, de Adoniran Barbosa; e o reggae “Fico louco”, do próprio Assumpção. “Sampa midnight – isso não vai ficar assim” é outro disco de Itamar Assumpção, de 1986, que consta da lista de preciosidades guardadas por Fabão.



Grandes orquestras internacionais e luxuosas coleções de jazz e blues lançadas por selos como Abril Cultural ilustram a vinilteca sem fronteiras que chegara à minha casa pelas mãos de um amigo. E ainda John Coltrane, Miles Davis, Tom Waits, Sade, Raíces de América, Morrisey, Tarancon, Joan Baez, Jacob do Bandolim & Waldir Azevedo, Vítor Assis Brasil, Hermeto Pascoal, Baden Power, Heraldo do Monte e Cama de Gato.

No meio dos discos está o primeiro LP gravado por Martinho da Vila, de 1969, com apresentação de Romeo Nunes, contendo os sambas “Quem é do mar não enjoa”, “Tom maior”, “O pequeno burguês” e “Pra que dinheiro”. “A história de Hollywood através da música” faz um passeio pelas trilhas sonoras de dezenas de clássicos do cinema, como “Era uma vez... o Oeste”, “Perversa Paixão” e “A Noviça Rebelde”. O LP “Brasil” é outra quase miragem, de 1981, com João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia interpretando pérolas como “Aquarela do Brasil”, “Milagre” e “Disse alguém”.

E o que dizer então de “Samba na madrugada”, de Paulinho da Viola e Elton Medeiros, gravado em 1968? Por ele falam algumas músicas célebres como “O sol nascerá”, “Jurar com lágrimas”, “Sofreguidão” e “Arvoredo”. Certos cometas da música, como a banda Obina Shock, também fazem parte do acervo. O grupo, formado por filhos de diplomatas africanos em Brasília e mais uns três músicos brasileiros amigos de turma na UnB, gravou dois LPs: o primeiro deles, em 1986, que trouxe a música “Vida”, com a participação de Gilberto Gil e Gal Costa, e outros hits como “Lambarine”; o segundo, “Sallé”, foi lançado em 1988.

Nas caixas de Fabão, que ainda estou desbravando, encontrei também o LP “Dandá”, de Gerônimo, um dos precursores do emergente samba-reggae baiano da década de 1980, autor de coisas simples e prazerosas de se ouvir como “Jubiabá”, “Lambada da delícia” e “Namoro”, faixas presentes no disco. Outro achado, no meio de tantas capas, é um LP gravado por Zezé Motta em 1978 (consagrada internacionalmente dois anos antes como atriz pela atuação em “Xica da Silva”). O disco, o segundo na carreira de Zezé Motta, tem um valor histórico pelo capricho na produção de Liminha e pelos arranjos memoráveis em faixas como “Muito prazer Zezé” (de Rita Lee e Roberto de Carvalho), “Magrelinha” (de Luiz Melodia) e “Babá Alapalá” (de Gilberto Gil).



Não poderia faltar no acervo de Fabão certas raridades da música produzida no Maranhão no século passado, como um LP do grupo Nonato e Seu Conjunto, “O som e o balanço de Nonato”, de 1975. Gravado nos Estúdios Reunidos, de São Paulo, o disco animou bailes e estourou nas rádios regionais durante anos com os chicletes “Cafua”, “Tambor de crioula” e “A pamonha do José”.

Não ouvi tudo e ainda estou me acostumando com o desafio. Mas passo horas contemplando esse patrimônio. Meu olhar se perde nas capas. Como eram inventivas, algumas delas verdadeiras obras da arte gráfica! Os encartes saltam de dentro do LP como uma extensão do esmero estético. Nesse aspecto, o CD não foi suficientemente preparado para competir com o vinil, o formato não ajuda.

Ouvindo aqui e ali, nos intervalos em que me permito escapar da televisão e do computador, penso que discos são como livros. Contam histórias, há um quê de literatura em certas obras musicais. Alguns discos são prosa; outros, poesia. “Jubiabá” de Gerônimo remete ao romance homônimo de Jorge Amado. As cirandas do Quinteto Violado fazem um recorte sutil da pena de Ariano Suassuna. Ouvir Tom Waits é como ler uma página dos contos soturnos de Edgar Allan Poe.

E qual o valor de um disco já usado? Não há como mensurar. Usado não é velho, e velho é apenas uma questão de referência cronológica. Meus discos de hoje, alguns deles comprados em sebo, como o Adriano Discos, foram de outras pessoas, pertenceram a outros personagens, e por isso têm alma, como têm alma os livros de sebos e bibliotecas. A alma do primeiro ou segundo dono, talvez gravada lá atrás numa fita K7, ficou gravitando penada no LP, esteja ou não o nome escrito na capa, haja ou não um carimbo, um símbolo ou uma etiqueta de loja. E valor mesmo é coisa da matéria.

Vou seguindo com o meu diletantismo, o meu regalo novo. Adriana já não sabe mais onde arrumar espaço em casa para os LPs, que precisam ser guardados na vertical, em estante apropriada. Ainda assim, com o vinil copulando pelos cantos, não pretendo me livrar tão cedo dos CDs. Esses bichos também têm alma. E um dia eles ainda vão ser vintage.

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