quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Zeca Baleiro e Antônio Vieira num bang-bang de fronteira


Zeca Baleiro fez um show ontem fora do eixo, mais descolado e intimista, como se estivesse numa roda de amigos. Casa cheia para um espetáculo beneficente no Teatro Arthur Azevedo. Voz e violão, repertório sem link com o mercado, público motivado para o coro. Sem pressa, foram mais de duas horas de som acústico para deleite da plateia. Não faltaram no cardápio o carimbó de Pinduca, uma homenagem especial a Wando (“Fogo e paixão”), que enfrenta sérios problemas de saúde, e a releitura de “Frenesi”, de Fausto Nilo, Petrúcio Maia e Ferreirinha, uma das mais belas canções gravadas por Raimundo Fagner.

O show foi meio tudo. Meio acústico, meio Baile do Baleiro, meio balada romântica, meio a meio. Os convidados de Zeca Baleiro também mandaram bem. Um Nosly sem rodeio, direto ao ponto, trouxe de volta “Noves fora”, uma velha parceria com Baleiro, e mostrou a regravação de “Aquela estrela”, música também dos anos 80 de Ronald Pinheiro e Jorge Thadeu, além do carro-chefe do novo disco, “Parador”. A noite teve ainda Alê Muniz e Luciana Simões, com destaque para a interpretação de “Veneno” e “Eu vi maré encher”.

Além de cantar as músicas mais conhecidas dos seus discos, Zeca Baleiro fez uma viagem no tempo para alcançar pérolas de compositores maranhenses como Sérgio Habibe, Josias Sobrinho, César Teixeira e Chico Maranhão. E fez assim uma justa e despretensiosa homenagem a uma geração de talentos musicais – alguns deles não mencionados, mas igualmente merecedores, como Joãozinho Ribeiro, Betto Pereira, Ronald Pinheiro, Ubiratan Souza, Giordano Mochel etc.

A referência àquela geração me fez lembrar de um certo domingo no final do ano 2000, quando sugeri um encontro entre Zeca Baleiro e o cantor e compositor Antônio Vieira para uma entrevista. Levei-os ao barzinho Cabeça Branca, ali onde hoje se convencionou chamar de Península da Ponta d’Areia, e que reinou por muito tempo como a melhor carne de sol de São Luís. E foi assim, na “esquina da baía de São Marcos”, onde o vento fazia a curva antes da construção de tantos prédios, que a conversa evoluiu pela tarde sobre música e a importância das gerações de bons compositores do Maranhão.

Foi um bate-papo descontraído, sem a sisudez das entrevistas convencionais. A minha interferência foi tão sutil quanto o testemunho ali de um Bandeira Tribuzi, sufocado pelo capim que teima em encobrir o seu memorial. Deixei-os falar livremente. Enquanto falavam, eu fazia as fotos de um “duelo“ memorável, interrompido várias vezes pelas melodias tiradas de um violão levado pelo poeta Mauro Holanda de Alencar. A entrevista fora publicada no dia 14 de janeiro de 2001, no jornal “O Estado do Maranhão”. Vale o registro.


Veja a íntegra da conversa.

Antônio Vieira – Da minha geração mesmo não existe mais quase ninguém. Já estão quase todos mortos. Na minha geração tinha grandes cantores, como Sérgio Miranda. Tem até uma música gravada pelo Cristovão [Cristovão Alô Brasil] em homenagem a ele. O mais engraçado é que ele era serrador de madeira, tinha o braço dessa grossura, mas a voz era um veludo. Ele, quando cantou pela primeira vez num show de calouros, foi logo contratado. Naquela época o pessoal se apresentava na rádio Timbira, que tinha programa de calouros todo domingo, e na rádio Ribamar. Ali eram selecionados apresentador de programa, locutor esportivo, cantores e locutores de cabine.

Félix Alberto – O senhor foi selecionado logo na primeira vez?

Antônio Vieira – Eu até que tive mais sorte. Nesse tempo eu não cantava. Eu era um menino que tinha como costume ouvir os cantores. Existia o Orlando Silva, Francisco Alves, Gilberto Alves. Eu estou cantando porque essa porção de menino que rebola no palco e que mostra a bunda não canta coisa nenhuma. E aí eu resolvi cantar. Então eu disse: - Vou cantar. Mas naquele tempo... tá louco! O pessoal cantava muito, era cantor, não era brincadeira. O Francisco Alves recebeu convite para ir cantar nos Estados Unidos, e não foi porque só iria se fosse com orquestra brasileira. Ele disse para um repórter americano que só iria se fosse com orquestra brasileira, pois americano não sabe tocar samba. Esse, sim, merecia ser chamado “o rei da voz”.


Zeca Baleiro – Morreu novo também...

Félix Alberto – Aqui havia talentos nessa época?

Antônio Vieira – Dessa época vou lhe dizer os cantores de talento: Zé Ribeiro, que era chamado de Bico Doce porque a voz era um açúcar; Nilton Vieira...

Zeca Baleiro – Zé de Barros...

Antônio Vieira – Não, Zé de Barros não cantava só, ele cantava em grupo. Tinha mais Orlando Cavalcanti, Nhozinho Santos. Cantora tem aquela que gravou minha música naquele disco de memória, a Célia, e mais Sandra Maria, Flor de Maria, Conceição Oliveira. O Maranhão era uma plêiade de gente de valor; quem era da minha marca não cantava, não tinha vez.

Zeca Baleiro – E muitas dessas pessoas morreram sem deixar registro...


Antônio Vieira – Talvez quem tenha alguma coisa seja aquele menino, que gravou o JB Trio. Ele gravava diretamente da rádio, era um sujeito abastado, tinha dinheiro... Ele gravou um show nosso feito 1957. Eu até mostrei pro Rogéryo du Maranhão, que perguntou o seguinte: - Vocês faziam isso em 75?. E eu disse: - Há 25 anos... Olha o nível! Mas comecei a cantar depois de velho. Não cantava sozinho porque olhava para os outros e dizia: “Não chego nem perto dessa gente”. Nhozinho Santos era um sujeito que era músico e cantava divinamente bem; Sérgio Miranda era um negócio, rapaz. Como é que um sujeito nascido no interior de Rosário tinha aquela voz? Então eu noto que nessa parte de cantores a geração passada era melhor. Tanto cantores como cantoras. Já o pessoal que fazia música era regular. Essa geração de Giordano Mochel, Ubiratan Souza, Chico Saldanha e Sérgio Habibe ficou mais alta um bocadinho. A geração passada era do nível de Cristóvão Alô Brasil. A minha geração é anterior, já tenho 80 anos; era uma geração de talentos.

Zeca Baleiro – E a geração de hoje? E a música feita hoje no Maranhão?

Antônio Vieira – Essa geração precisa amadurecer, ela está muito verde ainda. A maioria dos compositores está copiando, não está criando um estilo novo. Pouca gente tem talento mesmo. Estão copiando a batucada do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia. Outro dia, numa reunião de compositores um representante de gravadoras disse a uma pessoa – que eu não vou dizer o nome - que não gravava a música dele porque não queria dois Djavan na gravadora...

Zeca Baleiro – Foi naquele seminário de música...

Antônio Vieira – Isso, naquele seminário. Um radialista até perguntou por que fulano ainda não estourou. E aí o cara respondeu que não estourou porque a música dele parece com a música de Djavan, e a gravadora não admitia. Ou ele tem seu estilo ou não compõe.

Zeca Baleiro – Falta personalidade, falta estilo...

Antônio Vieira – É, falta estilo. Não é que o sujeito não saiba compor...

Zeca Baleiro – Eu não estou nem falando do sujeito lá, eu falo de uma maneira geral que falta estilo, falta originalidade...

Antônio Vieira – Você sabe que o que explode é o que é diferente. Você que vive martelando, vive arranhando, sabe como é. Um indivíduo para ter destaque é preciso que a música dele não pareça com a música de ninguém. Eu só explodi com “Cocada” porque não parece com ninguém, essa que é a verdade. Doa em quem doer, essa que é a verdade. O sujeito tem que encontrar um caminho. Eu posso não agradar todo mundo, mas tenho meu caminho. Não sei se já disse, mas vem uma televisão francesa me entrevistar, mas continuo o mesmo Antônio Vieira.

Zeca Baleiro – Quando eu morava aqui e comecei a fazer música, a gente não tinha muita referência, justamente por causa dessa falta de registro. Tirando João do Vale, que é uma referência de um artista maranhense que ganhou prestígio nacional, e Alcione como cantora, não tinha muito. Havia pessoas que ainda estavam por aqui, como Chico Maranhão, que chegou a gravar alguns discos pela [gravadora] Marcos Pereira, tinha o Papete, mas eram poucas as referências. Seu Vieira, por exemplo, vim conhecê-lo muito tempo depois de estar fazendo música – um pouco talvez por minha ignorância.

Antônio Vieira – Não, é porque não tinha mesmo...

Zeca Baleiro – Não tinha fonte onde se pesquisasse. Por iniciativa de Ubiratan Souza, Mochel, Chico Saldanha, quando foram morar em São Paulo, é que se começou a fazer algum registro. Fizeram aquele compacto duplo maravilhoso que eu tenho, “Velhos moleques”, com seu Vieira, Cristóvão, Agostinho e Lopes Bogéa.

Antônio Vieira – Já morreram o Agostinho e o Cristóvão. Só estamos eu e Bogéa vivos...

Zeca Baleiro – Mas vocês vão durar mais tempo, podem ficar tranquilos... Foi aí que a gente começou a conhecer essa produção do samba maranhense, que a gente não tinha e não tem. Essa nova geração não conhece... Aí veio a Rita Ribeiro, que fez um registro do seu Vieira, e a gente, sempre que pode, canta lá fora, divulga...

Antônio Vieira – Ela [Rita Ribeiro] me disse que apanhou “Cocada” como sendo de Mochel...

Zeca Baleiro – Então acho que não ter essa referência é muito grave. Tem raiz, mas não tem registro. Tem de haver essa memória. Você vê que em outros estados os caras são muitos mais cuidadosos com essa memória, muito mais orgulhosos, e isso é muito importante. Isso não quer dizer que a pessoa vá ter que fazer samba. Pode fazer até rock, mas é importante que conheça o trabalho, por necessidade natural de se conhecer a música que se fez aqui na década de 30. [é importante] Saber que aqui havia “big bands” de jazz nos anos 40, 50. Mas não fica nada, nenhum tipo de registro. Tudo bem que na época a parte técnica era difícil. Mas de uns 20 anos pra cá isso só vem ficando cada vez mais fácil. Então não entendo por que seu Vieira não tem um disco próprio, fora desses projetos que foram feitos por aí... Bibi Silva, Patativa... Gostaria até de lançar mão de um projeto e fazer isso, se conseguir disponibilizar tempo e recursos. Seria uma coisa que até me proporia a fazer porque acho muito importante.

Antônio Vieira – Cada compositor é um estilo. Você ouve um Lopes Bogéa... Repare que a música dele não é igual à minha...

Zeca Baleiro – É, tem outra pegada...

Antônio Vieira – Cada indivíduo tem o seu estilo, ainda mais a gente que nunca quis copiar ninguém. Você pode é não agradar o indivíduo, mas está lá o estilo...

Zeca Baleiro - Imagina se o Sérgio Porto não descobre lá o Cartola num estacionamento guardando carros. Ele estaria no anonimato.

Antônio Vieira – É, o estilo do Cartola a gente conhece. Isso é uma grande coisa, o sujeito ter o seu estilo próprio e não abdicar dele. Eu sou um admirador extraordinário de grandes compositores do Brasil e do mundo. Pra você ver, tenho um gosto terrível. Pra mim o maior compositor da música popular do mundo é Charles Chaplin, que é judeu... Charles Chaplin é um sujeito extraordinário, é uma escola de compor. Ele fez uma música que se chama “Sorrir” (“Smile”) e eu fiz uma que se chama “Chorar”, que é uma resposta. É muita pretensão o sujeito querer chegar perto de Charles Chaplin. Responder a um negócio que ele fez é parada de doido.

Félix Alberto – E esse seu trabalho todo, o senhor está registrando?

Antônio Vieira – Aqui tem um bagaço de coisas que eu vou fazendo... [mostra um caderno com inúmeras anotações de músicas].

Zeca Baleiro – Ele é organizado... Só eu e Rita temos umas cinqüenta canções gravadas em [fita] K7 de seu Vieira...

Antônio Vieira – A corriola grava um bocado.

Félix Albero – O senhor é bastante exigente com a música, tem o gosto apurado. E em relação ao trabalho do Zeca Baleiro?

Antônio Vieira – Eu gosto do Zeca, é um menino inteligente, tem o caminho dele, tem o estilo dele, e isso já é uma grande coisa. Quem dera que todo maranhense procurasse fazer o que ele faz, que é ter o seu estilo.

Zeca Baleiro – Eu sou fã do seu Antônio Vieira. Sou suspeito pra falar dele. Acho que ele tem a alma de sambista, e embora o samba tenha se consagrado como uma manifestação carioca, existem particularidades. O Maranhão tem uma tradição de samba, que até pode ser oriunda do Rio, mas é um samba que acabou ganhando uma forma da terra. E seu Vieira talvez seja o maior porta-voz desse samba...

Antônio Vieira – Tenho muito samba feito, mas não gosto tanto de samba. Eu tenho muita canção. Agora, eu tenho facilidade de fazer samba. O Silva de Almeida, que era meu vizinho, dizia que ficava admirado porque eu olhava uma folha caindo e fazia uma canção. Olho um passarinho e faço uma canção. Não sei bem o que é isso, não sei se é talento. Eu tenho uma música que pode servir de exemplo ao que estou falando. Uma vez fui à praia com um amigo já falecido. Lá olhei uma canoa, na beira da praia. A maré enchendo e encobrindo a canoa de areia e água do mar. E aí montei uma música, “Ingara velha”. Quer dizer, eu vi uma canoa lá e pronto...

Zeca Baleiro – Só os poetas fazem isso, seu Vieira...

Antônio Vieira – Componho em cima do que vejo, do que sinto. O motivo que escolho é uma tolice, um passarinho, uma folha que cai, uma rosa... É talento, é olhar o que os outros não vêem...
Félix Alberto – Então essa inspiração vem dessas coisas...

Antônio Vieira- Ela nem vem, eu olho e aí...

Zeca Baleiro – Se ela não vem a gente vai atrás. Não é, seu Vieira?

Antônio Vieira – Talvez noventa por cento das minhas composições sejam de coisas que eu assisto.

Zeca Baleiro – Seu Vieira é um cronista de uma São Luís que já nem existe mais, que está acabando, está deixando de existir. João Cabral de Melo Neto falava que não acreditava nesse negócio de inspiração. O trabalho de criação artística é um trabalho como outro qualquer, só que lida com uma matéria-prima diferente. Mas às vezes acho também que tem uma predisposição, uma coisa qualquer misteriosa que não sei explicar, que te predispõe a criar, a escrever. Componho muito a partir de fatos corriqueiros, inclusive o meu primeiro disco tem nome de “Por onde andará Stephen Fry”, que foi feito em cima de uma nota de jornal...

Antônio Vieira – Não é fácil. Fazer um trabalho em cima de uma nota de jornal...

Zeca Baleiro – Lembro que desde quando comecei, sempre tive esse ímpeto. Lembro que fiz uma música sobre um garoto que morreu aqui na Ponta d’Areia. Aquilo me comoveu e fiz a música. Pode nem ser sobre aquilo especificamente, mas o fato acaba motivando, instigando uma reflexão sobre a própria vida e sobre a morte. Depois que fiz a música “Por onde andará Stephen Fry”, conheci o cara. A “Folha de S.Paulo” fez uma entrevista no mesmo estilo dessa que você está fazendo e foi muito divertido. Perguntei pro cara o que ele achou da música. E ele respondeu que achava muito charmosa, embora não tivesse entendido nada... Acho que o compositor é, de certa maneira, um cronista mesmo, e na música brasileira isso tem uma tradição muito grande, com Noel Rosa, Wilson Batista. Grandes sambistas são grandes cronistas que falam sobre o jogo de futebol, a farra no bar, e isso acaba fazendo um panorama também social, político, da cidade e do país.

Félix Alberto – E o que falta pra música maranhense ser reconhecida?

Antônio Vieira – Falta dinheiro...

Zeca Baleiro – Essa é uma questão... Sempre acho que não se tem uma política cultural eficaz. A política cultural é sempre uma coisa clientelista: se o cara quer uma passagem pra fazer um show no Rio, a secretaria de cultura dá; se o cara quer gravar [um disco], ela dá. Mas não tem uma política cultural eficaz, para que o cara subsista do seu trabalho. Talento não lhe falta. Ele poderia estar fazendo show eventualmente pelo interior. Existe um mercado a ser criado – que ainda não foi criado pela falta de uma política. Se houver uma vontade política a gente pode criar uma cena muito interessante, porque talento não falta. Tem muita gente talentosa, da geração do seu Vieira, da geração anterior a essa, da minha geração.

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