domingo, 29 de janeiro de 2012

Música e literatura



O cearense Raimundo Fagner tem uma obra musical pontuada por altos e baixos. Mesmo incompreendido pela crítica, conseguiu deixar como legado algumas preciosidades ao longo da carreira que ainda perdura. Esqueça “Borbulhas de amor”, uma tolice avalizada pelo poeta Ferreira Gullar. Fagner foi feliz, principalmente, ao escolher bons poemas para transformá-los em músicas antológicas. Assim aconteceu com “Motivo” (“Eu canto/ porque o instante existe/ e a minha vida está completa...”), poema de Cecília Meireles que virou uma canção arrebatadora. Assim foi também com dois poemas de Gullar, “Me leve – cantiga pra não morrer” e “Traduzir-se”, ambos transformados em músicas de rara beleza. Musicou ainda “Canteiros”, também de Cecília Meireles, e “Qualquer música”, poema de Fernando Pessoa.

Os casos mais emblemáticos, porém, são “Fanatismo” e “Fumo”, poemas da portuguesa Florbela Espanca musicados com extrema sensibilidade pelo cantor e compositor cearense. Ouça “Fumo” e veja um clipe montado para a música com cenas do filme “É proibido fumar”, com Glória Pires e Paulo Miklos.
Abaixo, alguns dos poemas musicados por Fagner.


MOTIVO
(Fagner / Cecília Meireles)

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


ME LEVE - CANTIGA PRA NÃO MORRER
(Fagner / Ferreira Gullar)

Quando você for se embora
Moça branca como a neve
Me leve, me leve
Se acaso você não possa
Me carregar pela mão
Menina branca de neve
Me leve no coração
Se no coração não possa
Por acaso me levar
Moça de sonho e de neve
Me leve no seu lembrar
E se aí também não possa
Por tanta coisa que leve
Já viva em meu pensamento
Moça branca como a neve
Me leve no esquecimento

Moça de sonho e de neve
Me leve no esquecimento
Me leve.

TRADUZIR-SE
(Fagner / Ferreira Gullar)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


QUALQUER MÚSICA
(Fagner/ Fernando Pessoa)

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música - guitarra,
Viola, harmônio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!


FANATISMO
(Fagner/ Florbela Espanca)

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver
Não és sequer a razão do meu viver
Posto que és já toda a minha vida

Não vejo nada assim, enlouquecida
Passo no mundo meu amor a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história, tantas vezes lida

Tudo no mundo é frágil, tudo passa
Quando me dizem isto, toda a graça
De uma boca divina, cala em mim
E olhos postos em ti, digo de rastros

Podem voar mundos, morrer astros
Que tu és como um Deus, principio e fim

Eu, já te falei de tudo
Mas tudo isto é pouco
Diante do que sinto ...


FUMO
(Fagner/ Florbela Espanca)

Longe de ti são ermos os caminhos
Longe de ti não há luar nem rosas
Longe de ti há noites silenciosas
Há dias sem calor, beirais sem ninhos

Meus olhos são dois velhos, probrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas
Abertos sonham mãos cariciosas
Tuas mãos doces, cheias de carinhos

Os dias são outonos, choram choram
Há crisântemos roxos que descoram
Há murmúrios dolentes de segredos
Invoco nossos sonhos, estendo os braços

É ele, oh meu amor, pelos espaços
Fumo leve que foge entre os meus dedos

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