domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sob o céu de Lisboa

A boa dosagem de lirismo em Portugal não está associada apenas aos cantos de fada de Amália Rodrigues, aos contos e fados da Alfama ou aos cafés boêmios do Chiado. Está no azul profundo do céu que cobre Lisboa. É o azul do céu que dá as boas-vindas a quem ali chega. De barco, balão, trem ou avião. O encanto é inevitável.

É domingo de Carnaval em Lisboa e a cidade ainda adormece. Nem mesmo o inverno intimida o sol em sua ventura solitária de pintar essa imensa tela de azul. As ruas despertam lentamente. A paisagem cresce em cada esquina, nos becos e ruas mais estreitos, na jóia rara da coroa de Queluz, nas sacadas dos sobradões que de dia viram varal.

Estar em Lisboa é reinventar o passado, dando a ele o valor necessário. É o revés do descobrimento, distraída navegação da nau tempo, sem cartografia ou GPS. Como no filme de Wim Wenders (Lisbon story, 1994), vejo-me perdido na via pública e saio a filmar com os olhos o mundo sem som da cidade muda porque dorme.

Lisboa é inteira ficção do poeta em pleno gozo do desassossego. A alma de Fernando Pessoa parece vagar pela cidade, ora em versos de música, ora na arquitetura dos passantes, na sisudez das fachadas reais. Poeta e poesia tomam café na Brasileira e brincam de ciranda para o flash dos turistas insones. Breve tertúlia literária com pastel de napa que se estende da Alfama à Mouraria, sem livro ou roteiro.

Do alto do castelo de São Jorge não se sabe onde termina o mar e onde começa o rio. Dizem que, todas as manhãs, o mar se enche de Tejo e beija o cais de Lisboa. Olhando de cima os telhados da cidade-velha, suspeita-se que a época moderna adoece o olhar dos homens, como um mal presente na retina de Alberto Caeiro.

A melancolia do fado em nada lembra as alegorias esparsas numa cidade de Carnaval sem batucadas e bambas. A um oceano do barulho, crianças saem de casa fantasiadas de alegria. Belas moças colorem o corpo com pinturas extravagantes para lembrar que samba é um estado de espírito. Nada mais.

O olho molha quando cai a noite e o fado suplicante acende meia-luz de qualquer coisa. Ao fundo, alguém cantando a vida em excesso, o desengano, a dor, a saudade. Ali há sempre alguém cantando Lisboa, que não sonha em ser Paris, que não vai ser moderna porque dura a tradição.
À primeira vista Lisboa parece assim: onde o mar finda. Pressa e preguiça de um olhar distante. Vinho e bacalhau. O lirismo que começa na capital ecoa pelo Alentejo e se espalha pelas colinas de Sintra e ruelas do Porto. Vai pelo céu. Um azul que se eterniza na memória. De cidade em cidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário