segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Novo livro de Félix Alberto Lima destila poesia em meio às feridas do extremismo


Jotabê Medeiros, farofafa.com.br (01.10.2025)

Livros de poesia nunca venderão extraordinariamente e nem despertarão tão cedo a cobiça das IAs de resultados. Por isso, sempre espouca um sentimento de resistência e singularidade (e, por que não?, de alegria) quando um livro de poesia chega com o carteiro. No caso de um livro do poeta maranhense Félix Alberto Lima, aí então é quase como garrafa de náufrago – a mensagem é sempre de puro resgate.

com o coração na boca (7Letras, 2025) é o quarto livro do autor e o encerramento de uma trilogia que começou com Filarmônica para fones de ouvido(2018) e Nas profundezas desses olhos rasos (2020). Poeta com ligação profunda com a origem, a geografia humana de São Luís do Maranhão, a “colheita de meninos” da lagoa, ao mesmo tempo que em sintonia descompromissada com as tradições históricas (dos provençais aos beats, de Ferreira Gullar João Cabral), galo que não tece sozinho sua manhã literária, Félix carrega sempre consigo uma brisa de ruptura. “mudança não é aroma é/víscera exposta arame. única forma de manter-se de pé sem apodrecer por dentro”.

À margem da preocupação de aderir aos movimentos da conveniência literária do momento, longe da queda de braço das tertúlias hegemônicas, o poeta retoma o manifesto dos sentimentos com o coração na boca. Seus novos poemas tateiam as angústias e belezas que abastecem seu humanismo, invertendo a olímpica propositura da literatura a enfileirar angústias e belezas.

Isso não quer dizer descuido com o rigor da linguagem, nem adesão a qualquer populismo esportivo. As visões são dignas de Milton: “os calcanhares eram deus/abrindo picadas num sertão de areia/e espelhos”. Seus versos evocam personagens que garantiram a eternidade na indiferença, de um sacrílego casal em um motel até a Beata da Sé, uma mulher vestida de santa de vitral que postou-se durante décadas na frente da Igreja da Sé, na capital maranhense, até desaparecer em 2018. “um dia joana foi encontrada morta/com uma pequena pedra escondida/por entre as veias escuras da palma da mão esquerda – na mão direita o velho testamento. e deus constrangido teve de recebê-la de braços/abertos”.

Os tributos se sucedem como retomadas. Em Ibegeé, pode-se enxergar um tributo a Dentro da Noite Veloz (1975), clássico de Ferreira Gullar (“pelo menos dezesseis milhões de pessoas adultas no brasil nao têm sequer um dente na boca”). Da saudade da mesa de bar com Celso Borges à hierarquia da própria estante. “trediakóvsk não se entende com ferlinghetti/o mundo é agora diz um ao outro”. Outras lembranças são explícitas, como a visão de Nauro Machado (1935-2015) cantando Ramones com um sem teto na Rua do Sol, no Centro de São Luís. “tanto faz se é terça-feira ou domingo/para quem sabe de cor/morder o relento”.

A barbárie nacional também angustia o poeta, que aborda a erupção do fascismo, a corrosão da humanidade em meio ao abandono, à miséria progressiva, ao elogio do ódio feito pelo extremismo. Nenhum poeta passa incólume por essa paisagem do tempo. “o assombro de estar inteiro/mesmo repartido o peito/ao meio”. O coração não se apresentou à toa para o título do livro. Ele se encontra espalhado pelos poemas, às vezes agreste, às vezes como uma consciência polvilhada. “a boca o idioma o coração uma cratera no quintal”.

É como se o poeta artesão tivesse se dado conta de que não consegue caminhar ileso pelas ruínas do mundo somente com a armadura dos versos. Então, faz um livro de seu próprio espanto, corrosão, revolta. “caríssimo leitor, não me peça para voltar. meus passos não retrocedem/nem sangram sépia”, escreve Félix. “É nessa zona de vulnerabilidade, onde a vida pulsa mais forte, que encontro a voz para dizer o que quero, e que não tem tradução”, diz o poeta. “Se um dia perceber que já não há espanto, que o coração repousa sereno e que nenhuma palavra mais lateja, saberei que chegou o tempo de calar”.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

De volta à sala de aula

 


Há poucos meses, na condição de professor convidado, participei da banca examinadora de alguns trabalhos de conclusão do curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Meio sem tempo e já alguns anos fora das salas de aula, acabei topando o gentil convite da professora Maya Felix. E voltei para continuar aprendendo. 

 

Uma das peças apresentadas à época foi a monografia intitulada “A influência da revisão textual na qualidade da produção escrita de trabalhos de conclusão de curso: um estudo de caso na Universidade Estadual do Maranhão”, defendida pela estudante Nataly Pará Santos. Lembro disso agora, no Dia dos Professores, afinal já fui um deles num passado não tão distante assim da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da então Faculdade São Luís (atual Estácio). 


A pesquisa de Nataly partia de um universo aparentemente restrito (o próprio curso de Letras da UEMA), mas desvelava uma questão mais ampla: a fragilidade linguístico-discursiva dos trabalhos acadêmicos, mesmo daqueles agraciados com a nota máxima. Uma contradição que, de tão reiterada, parece ter se naturalizado entre nós.


A autora analisou TCCs aprovados com nota dez, produzidos entre 2021 e 2024 na UEMA, submetendo-os a um crivo quali-quantitativo, pautado por critérios objetivos de correção linguística, como ortografia, pontuação, concordância e regência. O resultado foi ao mesmo tempo perturbador e revelador: 82% dos textos apresentavam erros ignorados pelas bancas avaliadoras, com predominância de deslizes microestruturais, esses pequenos ruídos da língua que, somados, denunciam o enfraquecimento de nossa relação com o texto.


Tais dados sinalizam para um colapso silencioso nos critérios de avaliação acadêmica. Bancas que se pretendem zelosas com a forma e o conteúdo mostram-se, não raro, indulgentes – quando não completamente omissas – diante de falhas que comprometem a própria natureza do discurso científico.


O mérito de Nataly, contudo, vai além da denúncia. A reflexão sobre a ausência da revisão textual nos TCCs desloca o debate para o campo epistemológico da escrita. A revisão, para ela, não é mera depuração gramatical, mas um gesto interpretativo e dialógico, um processo que exige domínio dos gêneros acadêmico-científicos e consciência de que a linguagem é o próprio instrumento de construção do saber.


Ao afirmar que todo texto não revisado é, por definição, inconcluso, Nataly convoca professores, orientadores e discentes a compreenderem a revisão não como apêndice, mas como parte orgânica do processo de escrita, uma etapa de reflexão, de autocrítica e de amadurecimento discursivo.


Outro ponto luminoso de sua pesquisa é a crítica à persistente mitologia da “Atenas Brasileira”, esse sumo fundacional que associa o Maranhão a uma excelência linguística. Em vez de reforçá-lo, Nataly o desarma com contundência: demonstra que, mesmo nos espaços de maior prestígio intelectual, a precariedade textual é regra, não exceção. É uma crítica que atinge em cheio o coração do nosso narcisismo cultural, ao lembrar que a erudição proclamada pouco resiste à leitura atenta de nossos próprios textos.


A autora da monografia oferece caminhos. Propõe a criação de disciplinas específicas de revisão textual, a capacitação de orientadores para uma leitura linguístico-discursiva mais criteriosa e a revisão dos próprios instrumentos de avaliação das bancas. São propostas urgentes, sobretudo se quisermos formar professores e pesquisadores capazes de lidar com a linguagem não apenas como meio, mas como matéria viva do pensamento.


O trabalho de Nataly Pará Santos lança luz sobre uma zona de sombra das universidades brasileiras: a conivência com textos mal escritos, ainda que consagrados com a nota máxima. Essa monografia é um lembrete incômodo, mas necessário, de que a excelência acadêmica não se mede apenas pelo domínio do tema, mas pela precisão da palavra.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Um livro sobre escrita literária e inteligência artificial

 


Ela reagiu com um lampejo de espanto quando lhe revelei estar lendo um livro recém-lançado pela Companhia das Letras, dedicado aos efeitos da automação sobre a literatura contemporânea. “Como assim?”, perguntou ela, entre curiosa e incrédula. “Há tantos livros escritos por inteligência artificial?”. Sim, já existe uma série de obras publicadas, escritas com o auxílio da IA, algumas delas até “premiadas” em países como Japão e China. Respondi rapidamente, meio desajeitado. Poderia ter ido mais adiante: no caso do Brasil, jurados de prêmios literários importantes têm sido surpreendidos com obras escritas ou coescritas com inteligência artificial generativa.

 

Escrever é humano – como dar vida à sua escrita em tempo de robôs, de autoria de Sérgio Rodrigues, cronista da língua e da literatura e ficcionista (O brible e A vida futura), é o título do livro que mencionei na conversa. Em pouco mais de cento e noventa páginas, o escritor defende, com paixão e clareza, a natureza visceralmente humana do ato de escrever. Escrever, sustenta ele, é gesto subjetivo, trabalho de alma, de carne e hesitação. Jamais de algoritmo. 

 

Não se trata, contudo, de um libelo contra a inteligência artificial. Sérgio prefere alinhar-se à tradição: recorre a vozes de Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Tchékhov, Orwell, Chimamanda, Ruy Castro, Julián Fuks, Stephen King e tantos outros para iluminar o território humano da criação. Ainda que busque escapar à forma de um manual, o livro percorre com inventividade e humor as sendas da literatura, mostrando o que nenhuma máquina jamais poderá alcançar: imaginação, emoção, desejo, e aquela trama invisível que faz pulsar os personagens no interior de uma ficção.

 

Logo nas primeiras páginas, o autor adverte: este é um livro para quem ama a leitura – contos, romances, histórias – mesmo que não pretenda escrever, mas alimente o desejo de compreender o ofício, essa delicada artesania que insufla vida às palavras.

 

O clichê, esse refúgio das máquinas, é apontado como o oposto da boa literatura. Para Sérgio Rodrigues, o texto literário exige a centelha da originalidade, a faísca que, ao tocar o leitor, o faz sentir “a sensação sempre perturbadora de que algo verdadeiro acontece ali, pela primeira vez, no próprio ato da leitura”.

 

O autor recomenda a reescrita como gesto essencial, o ato de lapidar até que o texto respire por si. Valoriza as minúcias, o detalhe sobre o genérico: “O que uma história não diz é tão importante quanto o que ela diz – se não for mais.” E, num sopro de normalidade, adverte: nada é proibido na literatura. Embalado por bons exemplos, o livro toca na precisão vocabular, no ritmo, na pontuação, na escolha da voz narrativa.

 

Em Escrever é humano, Sérgio Rodrigues desenha três caminhos possíveis ao aspirante a escritor: o do profissionalismo, que encara gêneros e mercado; o do voto de pobreza, em que se aceita o tempo que a escrita consome e o despojamento que ela impõe; e o da renúncia, quando se reconhece que talvez o talento ou o fôlego não bastem para suportar o calvário da criação.

 

O escritor observa que a inteligência artificial “sabe muito, mas não sabe que não sabe”.  E é justamente nessa falha luminosa que habita o espaço da nossa resistência.

 

Ao fim, Escrever é humano nos reconduz ao essencial: escrever como atitude, como forma de estar no mundo, de dialogar, de reconhecer o outro. O legado maior é este: não permitir que as máquinas nos convençam de nossa dispensabilidade. Com elegância, rigor e uma intimidade rara com o idioma, Sérgio Rodrigues oferece-nos um farol: escrever continua sendo um ato humano e, por isso mesmo, insubstituível.

 

Nada mais oportuno, neste Dia do Escritor, do que essa leitura. O próprio autor confessa ter apressado a publicação de sua obra, amadurecida ao longo de anos, diante do frenesi dos robôs que agora rondam o mercado editorial. É um livro para escritores e aspirantes, mas também para leitores atentos, estudantes, professores e todos os que ainda creem que a literatura é um milagre do humano.

 

Mariana, a interlocutora que manifestara espanto com a proliferação da escrita de livros por meio da IA, dá sinais de que é uma leitora de fôlego, e talvez bem mais exigente que eu. Ela sabe, nessa jornada pelos sertões da literatura, que não se constrói Diadorim (e sua multidão de personagem) com o auxílio de robôs, e que não se atravessa a aridez do Liso do Sussuarão montado no lombo de um algoritmo.