segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Um livro sobre escrita literária e inteligência artificial

 


Ela reagiu com um lampejo de espanto quando lhe revelei estar lendo um livro recém-lançado pela Companhia das Letras, dedicado aos efeitos da automação sobre a literatura contemporânea. “Como assim?”, perguntou ela, entre curiosa e incrédula. “Há tantos livros escritos por inteligência artificial?”. Sim, já existe uma série de obras publicadas, escritas com o auxílio da IA, algumas delas até “premiadas” em países como Japão e China. Respondi rapidamente, meio desajeitado. Poderia ter ido mais adiante: no caso do Brasil, jurados de prêmios literários importantes têm sido surpreendidos com obras escritas ou coescritas com inteligência artificial generativa.

 

Escrever é humano – como dar vida à sua escrita em tempo de robôs, de autoria de Sérgio Rodrigues, cronista da língua e da literatura e ficcionista (O brible e A vida futura), é o título do livro que mencionei na conversa. Em pouco mais de cento e noventa páginas, o escritor defende, com paixão e clareza, a natureza visceralmente humana do ato de escrever. Escrever, sustenta ele, é gesto subjetivo, trabalho de alma, de carne e hesitação. Jamais de algoritmo. 

 

Não se trata, contudo, de um libelo contra a inteligência artificial. Sérgio prefere alinhar-se à tradição: recorre a vozes de Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Tchékhov, Orwell, Chimamanda, Ruy Castro, Julián Fuks, Stephen King e tantos outros para iluminar o território humano da criação. Ainda que busque escapar à forma de um manual, o livro percorre com inventividade e humor as sendas da literatura, mostrando o que nenhuma máquina jamais poderá alcançar: imaginação, emoção, desejo, e aquela trama invisível que faz pulsar os personagens no interior de uma ficção.

 

Logo nas primeiras páginas, o autor adverte: este é um livro para quem ama a leitura – contos, romances, histórias – mesmo que não pretenda escrever, mas alimente o desejo compreender o ofício, essa delicada artesania que insufla vida às palavras.

 

O clichê, esse refúgio das máquinas, é apontado como o oposto da boa literatura. Para Sérgio Rodrigues, o texto literário exige a centelha da originalidade, a faísca que, ao tocar o leitor, o faz sentir “a sensação sempre perturbadora de que algo verdadeiro acontece ali, pela primeira vez, no próprio ato da leitura”.

 

O autor recomenda a reescrita como gesto essencial, o ato de lapidar até que o texto respire por si. Valoriza as minúcias, o detalhe sobre o genérico: “O que uma história não diz é tão importante quanto o que ela diz – se não for mais.” E, num sopro de normalidade, adverte: nada é proibido na literatura. Embalado por bons exemplos, o livro toca na precisão vocabular, no ritmo, na pontuação, na escolha da voz narrativa.

 

Em Escrever é humano, Sérgio Rodrigues desenha três caminhos possíveis ao aspirante a escritor: o do profissionalismo, que encara gêneros e mercado; o do voto de pobreza, em que se aceita o tempo que a escrita consome e o despojamento que ela impõe; e o da renúncia, quando se reconhece que talvez o talento ou o fôlego não bastem para suportar o calvário da criação.

 

O escritor observa que a inteligência artificial “sabe muito, mas não sabe que não sabe”.  E é justamente nessa falha luminosa que habita o espaço da nossa resistência.

 

Ao fim, Escrever é humano nos reconduz ao essencial: escrever como atitude, como forma de estar no mundo, de dialogar, de reconhecer o outro. O legado maior é este: não permitir que as máquinas nos convençam de nossa dispensabilidade. Com elegância, rigor e uma intimidade rara com o idioma, Sérgio Rodrigues oferece-nos um farol: escrever continua sendo um ato humano e, por isso mesmo, insubstituível.

 

Nada mais oportuno, neste Dia do Escritor, do que essa leitura. O próprio autor confessa ter apressado a publicação de sua obra, amadurecida ao longo de anos, diante do frenesi dos robôs que agora rondam o mercado editorial. É um livro para escritores e aspirantes, mas também para leitores atentos, estudantes, professores e todos os que ainda creem que a literatura é um milagre do humano.

 

Mariana, a minha interlocutora que manifestou espanto com a proliferação da escrita de livros por meio da IA, dá sinais de que é uma leitora de fôlego, e talvez bem mais exigente que eu. Ela sabe, nessa jornada pelos sertões da literatura, que não se constrói Diadorim (e sua multidão de personagem) com o auxílio de robôs, e que não se atravessa a aridez do Liso do Sussuarão montado no lombo de um algoritmo.