sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A intimidade sob as dobras da imaginação


Há livros que nos pedem menos pressa, pé no freio. Na intimidade de um ser estranho (editora Mondru) é um desses. O novo livro de poemas de Adriana Gama de Araújo, que será lançado nesta sexta-feira, às 18h, na livraria Poeme-se, ao lado de Catálogo de acasos, de Franck Santos, e O livro das nuvens, de Samuel Marinho, percorre espaços pequenos e cotidianos – a casa, o jardim, a rua deserta – para encontrar neles uma voz.

A poesia de Adriana se constrói a partir do mínimo. Versos como “Cantar a rodoviária/ vazia”, “cantar/ ainda hoje/ mesmo agora/ que ninguém nos ouve”, além de outros tantos, delatam a moenda lírica e insurgente da autora. O que poderia passar despercebido ganha corpo no conjunto das palavras. Movimento sutil de quem insiste em cantar mesmo quando não há plateia, de quem transforma a solidão em matéria de poesia.

No livro anterior, Metábole (Urutau, 2021), Adriana já experimentava derrubar a cerca ao redor do próprio umbigo, com palavras. Era o desafio do silêncio. Agora, nesse virtuoso desafio de atravessar o deserto, a poeta parece buscar outro movimento: “dar outro corpo ao tempo”, “esticar o corpo além da alma”. São versos que se aproximam de uma meditação, mas sem perder o pulso concreto da experiência.

Os poemas são curtos, diretos, quase anotações de um passeio sob a luz incessante das cores quentes do dia. Têm a força do que é dito sem ornamento: “num estranho estado de vida/ acima do tempo/ acima da guerra”. Há neles uma disposição para observar o mundo e devolvê-lo em estado bruto, mas não frio – antes, em estado de vigília.

Adriana lê poesia como quem reza, como quem cantarola uma canção antiga de Roberto. Tem ritmo próprio, e talvez por isso sua voz encontre ressonância: não procura convencer, apenas permanecer. Quem a acompanha de perto percebe que sua poesia chega de mansinho, e não nos deixa. A poesia fica. Só as estrelam mudam de lugar. 

Na intimidade “alheia”, a poeta conversa, indaga, provoca, muda de direção, fazendo o uso natural dos recursos da língua, nua e sem nome. No rebuliço das folhagens espalhadas nas páginas, o leitor desconfiará que a resposta pode estar soprando no vento selvagem. Pode ser Dylan. Mas pode ser Whitman.  

São poemas colhidos pela manhã numa dessas caminhadas feitas do suor que irriga a vida. A poesia de Adriana Gama de Araújo chega sem pedir licença e nos arrebata. Eu leio o livro e a ouço cantando. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Sobre os dias de Flip

Estrela Leminski recita poemas do pai no estande da Companhia
 das Letras, enquanto o público filma para postagem nas redes sociais 

Paraty estava transbordante, fria e excessivamente cara. Mas bela. Se por esses dias até o mar andava de ressaca (beijando sem pudor as valas da cidade), quem não haveria de ficar? Há cidades que sabem guardar sua magia mesmo quando tumultuadas, invadidas por hordas de leitores, escritores, livreiros, malucos, poetas de ocasião, poetas de sempre, instagramáveis e ilegíveis. Paraty, nesses dias de Flip, era tudo isso. E também um pouco mais. Era Leminski.

 

Homenagear Paulo Leminski, aquele samurai camicase de Curitiba, foi uma dessas decisões acertadas que só a literatura provoca. Ele, que deslizou seus versos urbanos entre os anos 1980 e 1990, ressurgia agora embalado por reedições cuidadosas e por biografias que esmiúçam sua vida breve e intensa como se ainda houvesse algo a explicar. Jovens de classe média (majoritários entre os frequentadores da Flip) o postam como quem descobre um cometa numa madrugada de insônia. 

 

Lá estávamos, então, nós todos: ele presente em banners, falas, mesas, livrarias temporárias. Eu, em estado de deslocamento no tempo, buscava na memória o Leminski dos meus vinte e poucos anos, quando, ao lado dos amigos Eduardo Júlio, Andréa Oliveira, Mirtes Lopes, Zeca Pinheiro e Lurdinha Castro, empreendemos aquele programa de rádio, em 1991. Era um exercício de escuta e invenção. No final, uma “entrevista aos vivos”, póstuma: perguntas diretas, respostas do além retiradas dos próprios poemas. Leminski respondia com o que tinha de melhor: sua poesia. Foi nossa pequena Flip radiofônica, antes de tudo virar evento, credencial e café gourmet.

 

A 23ª Flip foi um caleidoscópio de temas e presenças. Debates sobre a Palestina, o meio ambiente, o devir negro, a escrita periférica, o feminino insurgente, os corpos LGBTQIA+ exigindo escuta e presença. E havia livros. Muitos. Caríssimos. Comprei alguns, sim, rendido à velha ilusão de que “tê-los é quase como lê-los”. Nos corredores improvisados, escritores eram assediados como se fossem celebridades. Selfies, abraços, pedidos de autógrafo. Uma cena que beirava o kitsch, não fosse ela tão sinceramente desejada por ambos os lados.

 

Uma ala curiosa se destacava entre as tendas: a dos autores e editoras independentes. Fiquei a matutar: os outros seriam, então, dependentes? De quê? De quem? Da benevolência dos conglomerados editoriais? Das políticas culturais erráticas? Da curadoria das grandes vitrines? A dúvida ficou ali, abraçando-me, como nos encontros afetivos que se davam pelas ruas de pedra da cidade.

 

Mas foi fora da programação oficial que a chama acesa por Leminski talvez tenha se propagado com mais liberdade. Na Casa Gueto, realizamos a intervenção Flip-se Quem Puder. Um nome debochado para uma ação oportuna: abrir espaço para a literatura livre, para o livro como ferramenta de subversão e reinvenção. Reunimos poetas, romancistas, artistas e curiosos. Houve leitura, canto indígena, silêncio, risos, pensamento. Não era preciso crachá. A festa foi bonita. Leminski teria engrossado o coro.

 

Enquanto os holofotes se voltavam para as mesas badaladas e as listas de mais vendidos, soubemos habitar a margem, esse lugar cada vez mais fértil da literatura. Porque no fim das contas, como dizia o homenageado: “isso de querer/ ser exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além”.

 

Paraty passou. Leminski deitou e rolou. E nós, seguimos.