segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Sobre os dias de Flip

Estrela Leminski recita poemas do pai no estande da Companhia
 das Letras, enquanto o público filma para postagem nas redes sociais 

Paraty estava transbordante, fria e excessivamente cara. Mas bela. Se por esses dias até o mar andava de ressaca (beijando sem pudor as valas da cidade), quem não haveria de ficar? Há cidades que sabem guardar sua magia mesmo quando tumultuadas, invadidas por hordas de leitores, escritores, livreiros, malucos, poetas de ocasião, poetas de sempre, instagramáveis e ilegíveis. Paraty, nesses dias de Flip, era tudo isso. E também um pouco mais. Era Leminski.

 

Homenagear Paulo Leminski, aquele samurai camicase de Curitiba, foi uma dessas decisões acertadas que só a literatura provoca. Ele, que deslizou seus versos urbanos entre os anos 1980 e 1990, ressurgia agora embalado por reedições cuidadosas e por biografias que esmiúçam sua vida breve e intensa como se ainda houvesse algo a explicar. Jovens de classe média (majoritários entre os frequentadores da Flip) o postam como quem descobre um cometa numa madrugada de insônia. 

 

Lá estávamos, então, nós todos: ele presente em banners, falas, mesas, livrarias temporárias. Eu, em estado de deslocamento no tempo, buscava na memória o Leminski dos meus vinte e poucos anos, quando, ao lado dos amigos Eduardo Júlio, Andréa Oliveira, Mirtes Lopes, Zeca Pinheiro e Lurdinha Castro, empreendemos aquele programa de rádio, em 1991. Era um exercício de escuta e invenção. No final, uma “entrevista aos vivos”, póstuma: perguntas diretas, respostas do além retiradas dos próprios poemas. Leminski respondia com o que tinha de melhor: sua poesia. Foi nossa pequena Flip radiofônica, antes de tudo virar evento, credencial e café gourmet.

 

A 23ª Flip foi um caleidoscópio de temas e presenças. Debates sobre a Palestina, o meio ambiente, o devir negro, a escrita periférica, o feminino insurgente, os corpos LGBTQIA+ exigindo escuta e presença. E havia livros. Muitos. Caríssimos. Comprei alguns, sim, rendido à velha ilusão de que “tê-los é quase como lê-los”. Nos corredores improvisados, escritores eram assediados como se fossem celebridades. Selfies, abraços, pedidos de autógrafo. Uma cena que beirava o kitsch, não fosse ela tão sinceramente desejada por ambos os lados.

 

Uma ala curiosa se destacava entre as tendas: a dos autores e editoras independentes. Fiquei a matutar: os outros seriam, então, dependentes? De quê? De quem? Da benevolência dos conglomerados editoriais? Das políticas culturais erráticas? Da curadoria das grandes vitrines? A dúvida ficou ali, abraçando-me, como nos encontros afetivos que se davam pelas ruas de pedra da cidade.

 

Mas foi fora da programação oficial que a chama acesa por Leminski talvez tenha se propagado com mais liberdade. Na Casa Gueto, realizamos a intervenção Flip-se Quem Puder. Um nome debochado para uma ação oportuna: abrir espaço para a literatura livre, para o livro como ferramenta de subversão e reinvenção. Reunimos poetas, romancistas, artistas e curiosos. Houve leitura, canto indígena, silêncio, risos, pensamento. Não era preciso crachá. A festa foi bonita. Leminski teria engrossado o coro.

 

Enquanto os holofotes se voltavam para as mesas badaladas e as listas de mais vendidos, soubemos habitar a margem, esse lugar cada vez mais fértil da literatura. Porque no fim das contas, como dizia o homenageado: “isso de querer/ ser exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além”.

 

Paraty passou. Leminski deitou e rolou. E nós, seguimos.