Voltar a Barra do Corda, depois de tanto tempo, foi como abrir uma velha caixa de brinquedos esquecida no sótão da vida. A poeira das décadas não conseguiu embaçar o brilho das lembranças. Pelo contrário: ao reencontrar a cidade onde vivi os primeiros doze anos da minha existência – os mais puros, talvez os mais felizes – tudo me pareceu ainda mais nítido, como se o tempo tivesse feito questão de preservar, com zelo, cada susto, cada rua, cada cheiro.
Nasci em Presidente Dutra, é verdade, mas foi em Barra do Corda que aprendi a caminhar pelo mundo. E caminhar por suas ruas, agora, mais de vinte anos depois da última visita, foi como reconhecer o próprio rosto no espelho: os traços estão lá, mas há rugas novas, silêncios outros, um jeito diferente de dizer o mesmo nome. Fui a Barra como integrante da Caravana da Academia Maranhense de Letras – mas voltei como filho, como menino, como memória que se reencontra com o próprio berço. De quebra, ainda recebi o título de Cidadão de Barra do Corda. Algo que já havia dentro de mim, e agora está em papel passado.
Não consegui esconder a emoção ao subir, mais uma vez, o alto do Calvário. A cidade, lá embaixo, se estendia como uma confissão: nua, sim, mas ainda enfeitada por aquele laço alaranjado que o entardecer costuma atar entre céu e telhados. Vi-me menino outra vez, correndo com os pés descalços pelos caminhos de barro, observando a vida passar como um rio. E lá estavam eles – o Mearim e o Corda – ainda enamorados, ainda se encontrando como se fosse a primeira vez, no Porto Guajajara. Um milagre cotidiano que, aos olhos da infância, parecia eternidade.
Entrei na Igreja Matriz com o coração indomável. Ali fui coroinha. Ali toquei sinos como quem rege os próprios sonhos. Era a orquestra da minha vida – desafinada às vezes, mas sempre ruidosa, distraída. Alegre. No alto da torre, um menino franzino comandava os sinos com a autoridade de um maestro de calças curtas. E era como se, naquele tempo, toda a cidade me ouvisse.
Houve também reencontros de carne e osso, como com dona Oclair, velha amiga da minha mãe, sentinela da memória atrás do balcão do seu armazém de secos e molhados, ainda de pé, ainda altiva aos 93 anos. Visitei a memória do jornal O Pássaro, nascido das mãos inquietas e letradas de meu saudoso irmão Antônio Carlos, impresso em mimeógrafo, com tinta e sonho, na última quadra dos anos 1970. E ouvi relatos que me fizeram lembrar as tertúlias do Clube Guajajara, com a banda Os Populares do Ritmo e as amigas de minhas irmãs em vestidos floridos, girando pelo salão.
Matei a saudade andando devagar, olhando para tudo com os olhos de agora e o coração de antes. A praça Melo Uchôa, hoje em obras, tentava esconder-se atrás dos tapumes, como quem esmorece ante a involução dos tempos. As ruas, antes calçadas de pedra, agora cobertas de asfalto, pareciam estranhas, mas não hostis. O convento dos frades capuchinhos, o Colégio Pio XI, o prédio da Funai... todos com novas fachadas ou simplesmente ausentes. A arquitetura da infância, onde o mundo cabia inteiro, agora reformada, redesenhada ou apagada.
Não sei se foi uma visita ou um mergulho. Só sei que voltei mais inteiro. Como quem toca as margens do próprio umbigo e entende que o tempo, como os rios, dá muitas voltas antes de se perder por aí. De mar em mar.
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