Lançados no final de 2024, It’s a long way, o exílio em Caetano Veloso, de Márcia Fráguas, e a reedição de Rabo de foguete, os anos de exílio, de Ferreira Gullar (publicado originalmente em 1998), oferecem perspectivas complementares sobre a experiência do desterro durante a ditadura militar brasileira. Enquanto Fráguas investiga, pelo viés acadêmica, como o exílio moldou a produção artística de Caetano Veloso, em um relato visceral e autobiográfico Gullar narra as dores e reflexões de sua vivência forçada longe do Brasil. Juntas, as obras compõem um retrato denso e multifacetado sobre como a arte emergiu como forma de resistência e reinvenção frente às brutalidades do regime autoritário.
Márcia Fráguas, em It’s a long way, o exílio em Caetano Veloso (Garota FM Books), apresenta uma análise sobre um dos períodos mais marcantes na trajetória do cantor e compositor baiano e, por extensão, na música popular brasileira. Resultado de sua dissertação de mestrado na USP, o livro lançado há menos de um mês oferece um estudo detalhado dos três álbuns produzidos por Caetano no exílio (1969–1972), amparado por extensa pesquisa documental e um mergulho interpretativo nas letras e contextos históricos de produção dessas obras.
A narrativa de Márcia Fráguas oscila entre o rigor acadêmico e a potência de uma história construída a partir de fontes primárias, como uma entrevista exclusiva concedida por Caetano, além de livros, jornais e revistas, como O Pasquim e Verdade Tropical e Narciso em férias (ambos de Caetano) e Tropical sol da liberdade (de Ana Maria Machado). O trabalho da autora mapeia as transformações emocionais e estéticas do artista, interpretando como a experiência da prisão e do desterro reverbera nas canções dos álbuns Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (1971) e Transa (1972).
No primeiro capítulo, dedicado ao disco de 1969, a autora explica como a obra, conhecida como “o álbum branco de Caetano” (o artista fora obrigado pelos militares a não usar na capa do disco qualquer foto que remetesse aos horrores da época), encapsula o impacto do confinamento.
Gravado em condições atípicas – com a voz de Caetano registrada em Salvador, em pleno confinamento, e os instrumentos adicionados em São Paulo, sob a direção de Rogério Duprat –, o disco de 1969 carrega uma atmosfera de angústia e melancolia, apesar de conter faixas de tom aparentemente mais leve, como o frevo Atrás do trio elétrico e o samba de roda Marinheiro só. Canções como Irene, Os argonautas e Não identificado transbordam as emoções de um artista confrontado pela censura e pelo silêncio forçado. O “álbum branco” foi lançado no Brasil em agosto, um mês após a partida de Caetano Veloso e Gilberto Gil para o exílio – em 27 de julho de 1969.
O exílio em Londres, narrado no segundo capítulo, traz uma nova camada de complexidade à análise. O álbum de 1971 expõe a tensão entre o luto e a reinvenção artística, com músicas como London, London – um hino nostálgico e introspectivo com recorte chuvoso, triste e belo, dos gramados verdes e o céu azul dos britânicos – e a reinterpretação de Asa branca (de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), que conecta Caetano às suas raízes enquanto dialoga com o cenário pop-rock inglês da época em A little more blue, Maria Bethânia e Shoot me dead.
Márcia Fráguas descreve como essas canções refletem a tentativa de sobrevivência e resistência simbólica diante do distanciamento e do desencantamento expressos pelo próprio Caetano em correspondências da época ao jornal O Pasquim, como neste trecho: “Talvez alguns caras no Brasil tenham querido nos aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós”.
O último capítulo, dedicado a Transa, um disco com produção do britânico Ralph Mace e direção musical de Jards Macalé, sintetiza a multiplicidade sonora e cultural do período londrino. Com influências que vão do reggae ao samba, da capoeira a Jimi Hendrix e do jazz aos Beatles, o trabalho é uma declaração de renascimento artístico e emocional. O álbum é primoroso porque, além de incorporar uma sonoridade universal, traz canções inspiradas e um time de músicos de primeira grandeza, como Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque, Áureo de Sousa e o próprio Macalé.
Canções como You don’t know me e Nine out of ten dão sinais de um Caetano renovado, um tanto refeito da angústia por ter sido obrigado pela ditadura a deixar o Brasil, e por isso tudo “irreconhecível para o público, para a própria MPB e para aqueles que participaram de sua morte simbólica” logo no início do exílio. Outras faixas de destaque são Triste Bahia, Mora na filosofia e a música que dá nome ao livro de Márcia Fráguas, It’s a long way.
O livro não apenas interpreta as nuances musicais e líricas dos álbuns, mas traduz os dilemas existenciais do exílio. Segundo as palavras de Leonardo Davino de Oliveira, no prefácio, as canções de Caetano durante o período evidenciam a “poética do exílio”, marcada por tensões entre alegria e luto, som e silêncio, pertencimento e afastamento. Os três discos flutuam entre a melancolia do desterro e a inventividade multicultural do Tropicalismo.
Embora em alguns momentos o texto submeta-se a determinados jargões acadêmicos, o livro It’s a long way é uma contribuição relevante para a compreensão do impacto da ditadura militar na arte brasileira e, especificamente, na obra de Caetano Veloso. Em pouco mais de 200 páginas, Márcia Fráguas consegue passar a ideia de como o desterro moldou uma das fases mais criativas e dolorosas do artista baiano, oferecendo às novas gerações, especialmente, uma leitura revedora da complexa relação entre arte, identidade e resistência.
Além de provocar uma imersão natural num dos momentos mais conturbados da história – os anos de ditadura militar no Brasil e os seus efeitos colaterais na cultura e no comportamento – o livro nos leva, ao final da leitura, a revisitar os discos de Caetano Veloso analisados pela autora. It’s a long way é, portanto, uma obra para ler e ouvir.
Um exilado salvo pela poesia
Em Rabo de foguete, os anos de exílio, o poeta Ferreira Gullar nos conduz por um dos períodos mais tumultuados da política brasileira e detalha como a perseguição da ditadura o levou a viver como expatriado durante os anos de chumbo, especialmente após o Ato Institucional nº 5, o AI-5. Relançado pela Editora José Olympio em 2024, o livro retoma seu vigor crítico e histórico, permanecendo tão atual quanto essencial.
A obra, ao mesmo tempo uma autobiografia e um relato histórico, mistura memória, análise política e reflexões pessoais. Dividida em capítulos que se sucedem como fragmentos de um mosaico, Rabo de foguete reconstrói, cronologicamente, a passagem de Gullar por países como Uruguai, Chile, Peru, Argentina e a então União Soviética, com detalhamento de uma jornada que vai do treinamento militar no Instituto Marxista-Leninista, em Moscou, até o drama para localizar um de seus filhos desaparecidos em Buenos Aires.
O livro, que pode ser lido como se fora um romance, captura o sentimento de deslocamento e incerteza vivido por Gullar. O autor faz uma densa reflexão sobre o exílio, a censura, a clandestinidade e a inexperiência para a luta de muitos que, como ele, não demonstravam vocação para embates armados: “Em Moscou passei a conhecer melhor o PCB [Partido Comunista Brasileiro], já que só então trabalhei e convivi com os quadros profissionais do partido, com seu aparato clandestino, e percebi que a muitos de nós faltava a mística do revolucionário, a convicção inabalável que determina o cumprimento rigoroso das decisões e o sacrifício sem limites.”
Gullar narra sua convivência com outros exilados latino-americanos, em especial os chilenos, durante o governo de Salvador Allende e o golpe de Augusto Pinochet. Esses episódios oferecem uma visão rica e detalhada sobre a “integração” das ditaduras na América Latina e como elas operavam sob a lógica do “terror transnacional”.
Em Rabo de foguete, Gullar revisita sua própria militância com um olhar crítico, mas nunca ressentido. Ele reconhece erros e excessos nas jornadas de luta nos movimentos à esquerda, mas sem abrir mão de suas convicções democráticas.
O poeta narra, com crueza e sinceridade, o impacto do isolamento sobre sua saúde mental. Ele não apenas enfrentou a perseguição política que o levou para fora do Brasil, mas viveu o exílio como um terreno de profundas dores pessoais. Um dos filhos sofria com surtos de esquizofrenia, um quadro que se agravava em meio às condições precárias e à constante instabilidade que marcavam a vida de um exilado. Um outro filho envolvia-se com drogas, amplificando o caos e a desesperança que cercavam a família.
Em Rabo de foguete, Gullar expõe a impotência de lidar com esses desafios enquanto tentava sobreviver ao desterro e manter viva sua própria identidade como poeta e intelectual. O leitor é confrontado com a vulnerabilidade de um homem que, ao mesmo tempo em que resistia ao regime opressor (também a Argentina estava entregue ao coturno dos generais), lutava para não cair em meio aos infortúnios no ambiente familiar.
E foi exatamente nesse período mais difícil que uma força imaginativa o empurrou, talvez como derradeira saída, para o Poema sujo. Gullar transmutou sua angústia, saudade e reflexão política em um poema monumental, considerado uma de suas maiores obras. Escrito em Buenos Aires, entre maio e outubro de 1975, Poema sujo é um grito visceral de socorro que, como dito por Otto Maria Carpeaux, encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças da vida do homem brasileiro. “Hoje, ao refletir sobre aqueles momentos, estou certo de que o poema me salvou: quando a vida parecia não ter sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, inventei, através dele, um outro destino”, conta Gullar em Rabo de foguete.
Numa curva da história em que o Brasil e outros países no mundo enfrentam debates sobre memória, verdade e o papel da democracia, o desafio de revisitar Rabo de foguete ganha agora uma nova camada de relevância. A luta, os riscos e dramas narrados por Gullar ecoam os desafios contemporâneos de resistência ao autoritarismo e de defesa dos direitos fundamentais. A leitura vale a viagem até o fim, quando pressentimos que o nó na garganta do poeta também é nosso.
Intersecções na prisão, na música e na poesia
Antes do exílio de ambos, Gullar e Caetano estiveram presos pelo regime militar no mesmo prédio, em finais dos anos 1960. “A imagem mais forte de Ferreira, para mim, vem do meu período na prisão. Ele estava, junto com Gil, Antonio Callado, Paulo Francis e outros, num xadrez ao lado do meu. Sua lucidez e sua firmeza faziam dele o melhor companheiro imaginável”, escreveu Caetano em 2016, ao saber da morte de Gullar.
A prisão do cantor e compositor baiano teria sido motivada principalmente pela censura cultural e sua postura desafiadora como artista, ao passo que a do poeta maranhense teria relação direta com sua atuação intelectual crítica, além da militância política no Partido Comunista Brasileiro.
Gullar e Caetano compuseram o bolero Onde andarás, incluído no primeiro disco solo do baiano, em 1968, portanto antes de suas prisões. “Essa parceria não nasceu de uma relação minha com Caetano. Foi a Maria Bethânia que pediu se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor de cotovelo, que ela queria gravar no seu disco de estreia. Então fiz e entreguei a ela duas letras: uma é Onde andarás; a outra é um poema que também é do mesmo livro, que adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou um deles. O outro poema acho que inspirou Alegria alegria”, contou Gullar, em 2009, em entrevista ao jornalista sergipano Gilfrancisco Santos.
Esse mesmo álbum de Caetano, que também inclui músicas como Tropicália, Soy loco por ti América e Alegria alegria, foi eleito pela revista Rolling Stone Brasil como o 37º melhor disco brasileiro de todos os tempos. Em 2001, o disco foi incluído no Hall da Fama do Grammy Latino. Depois de Caetano, a canção de Gullar e Caetano foi gravada por Maria Bethânia, Marisa Monte, Joanna, Gal Costa e Adriana Calcanhoto.
Na interseção entre história e arte, o livro de Márcia Fráguas e a reedição da obra de Ferreira Gullar celebram, cada uma em seu tom, a resistência tecida pela criação em tempos de exílio. Se em It’s a long way somos conduzidos pela música transgressora e inventiva de Caetano Veloso, em Rabo de foguete mergulhamos na densidade poética e visceral do desterro vivido por Gullar. Os livros transcendem a experiência individual para oferecer um panorama coletivo de luta e expressão, realçando que, mesmo num cenário de sombras, a arte se mantém como farol e refúgio. Revisitar essas histórias é também não se deixar sucumbir ao esquecimento. É compreender que a poesia – como a música – sempre encontra algum atalho para nos salvar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário