sexta-feira, 6 de abril de 2018

Cuba e os dois lados da moeda



Como no primeiro sopro de Memória de minhas putas tristes, na semana do meu aniversário quis me dar de presente uma viagem especial, de arrebatamento. Não uma viagem ao bordel, feito o ancião do romance de Gabriel Garcia Márquez, esgueirando-se do amor. Mas como alguém que atravessa o mar para pisar o chão da última utopia do ocidente, enquanto há tempo. Foi assim que desembarquei na ilha de Cuba, sem a pretensão de cotejar efeitos políticos dos sessenta anos da revolução.



Foi tão somente uma viagem de descobrimentos: da história que alterna períodos de desencanto e esperança, de alegria e resignação; da música que em cada canto expõe a alma altaneira dos cubanos; das cores que reluzem dos automóveis e das roupas estendidas em varais improvisados nas sacadas dos velhos casarões; do azul intenso do céu que não chove; das noites boêmias que não têm fim; e das gentes que dia e noite se enfeitam de felicidade. Cuba é um país que impressiona pelas suas contradições.

O tempo parece estacionado numa velha rua de Havana onde caminho pela tarde em busca de uma farmácia. Não a encontro facilmente. Entro em livrarias, cafés modernos e pontos de cultura espalhados pela cidade. Em La Moderna Poesia percorro estantes à procura de Las entrañas del vacío, de Evelyn Garfield e Ivan Schulman, por encomenda do amigo Sebastião Moreira Duarte. À falta deste, a bibliotecária da livraria me sugere levar Cacilda Valdés, o romance de Cirilo Villaverde que aborda cruamente os anos de escravidão em Cuba.

“Às vezes acho que estou dentro de um filme romântico rodado nos anos 1950; em outro momento penso que estou numa Síria bombardeada e miserável”, diz-me Camila, uma jovem universitária paulista que no largo do Prado grita por socorro para recarregar sua câmera Canon. Em meio à escassez de produtos locais, nas principais ruas de La Habana Vieja estão instalados grandes hotéis de bandeiras internacionais com lojas luxuosas e seus mimos que custam os olhos da cara.



Mas hoje não é o dia de sorte de Camila. Não há carregadores de bateria para máquina fotográfica à venda. Vai usar então, nos últimos dias de férias que lhe restam, a câmera do celular para fazer as melhores fotos e, quem sabe, publicá-las nas redes sociais. Há outra revolução em curso pelas ruas de Havana. A comunicação, que durante muito tempo restringiu-se ao discurso monolítico do partido comunista em emissoras de rádio e TV e nas páginas do jornal Granma, começa lentamente a fazer o percurso das infovias digitais.

Camila vai usar o sinal da internet sem fio disponível livremente no saguão do hotel onde está hospedada. Já o povo cubano, para quem o smartphone ainda é algo incompatível com o salário mínimo de vinte dólares, amontoa-se nas praças públicas pagando alto pelo wi-fi controlado pelo governo. O acesso à internet ainda é tímido, mas o cubano aos poucos começa a descortinar o mundo ali além da ilha pela tela de um celular. Diferentemente dos meios de comunicação tradicionais, a internet é essa coisa estranha, desgovernada, por meio da qual uma só pessoa fala instantaneamente para muitas outras, e sem os aparatos técnicos exigidos pela TV, jornal ou rádio.

Como Camila, há muitos turistas desbravando Cuba, principalmente os europeus. O governo encontrou no turismo alternativa pragmática para enfrentar problemas advindos do bloqueio econômico norte-americano e da dissolução da União Soviética, provedora das carências cubanas até princípio dos anos 1990. Foi o início da abertura necessária, a última trincheira para a redenção de uma economia então concentrada na cana de açúcar e no tabaco.



O turismo criou uma economia paralela. Há duas moedas em circulação em Cuba: o CUP, desvalorizado peso cubano usado somente pelos locais; e o CUC, o peso convertido, equivalente a um euro, que move as relações com estrangeiros visitantes. O turismo fortaleceu também o mercado negro, a economia sem dono que pulsa nas costas do governo. O estado, apesar de voraz na arte da arrecadação, é incapaz de tudo ver, de tudo controlar.

Todos em Cuba sabem que para ganhar mais é preciso morder algum pedaço do bolo deixado pelos visitantes. Há jornalista que virou artesão de rua, engenheiro que faz bico como maleiro de hotel e advogado que deixou a banca pela gastronomia. Juan trocou a profissão de técnico em telecomunicação para ser motorista de táxi. Com o seu reluzente Buick Riviera vermelho, modelo 1963, avaliado em cinquenta mil dólares, ele tem o compromisso de repassar seiscentos CUC’s por mês ao estado. Em uma hora de passeio com turistas em Havana ele fatura no mínimo cinco por cento desse valor.



Uma jovem de aparentemente dezesseis anos, sentada num dos bancos da Plaza Vieja Habana, acena para mim enquanto distraidamente fotografo a fachada do Gran Teatro Alicia Alonso. Entre surpreso e desconfiado, aproximo-me dela. Olhos assustados, ligeiramente observando os circunstantes, ela se apresenta como “Mercedes” e sem rodeios me oferece uma “massagem especial” no hotel. Pergunto quanto custaria. Dez CUCs, responde. Vem-me rapidamente à cabeça algumas linhas do romance de Garcia Márquez: “Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo”. O turismo é mesmo uma fascinante temeridade. Invento uma desculpa, agradeço a oferta da massagem e sigo intuitivamente fotografando a cidade.



E o que visitantes como eu tanto querem ver em Cuba? Há um cardápio variado. Mas a qualquer iniciante é imperativo ouvir o mar do Malecon e sentir o cheiro forte de charutos e defumadores pelas ruas estreitas de Havana. Em cada beco há histórias que se passam antes e depois da revolução de 1959. Prédios monumentais impõem a exuberância da arquitetura com que a cidade velha fora traçada – e alçada ao condomínio de patrimônio da humanidade pela Unesco. As cores fortes dos carros antigos, os chamados almendróns, emprestam charme à atmosfera cinemascope que envolve a capital cubana.

Há muito mais. A música é um dos grandes trunfos de Cuba. Havana ferve na diversidade musical de seus artistas a qualquer hora do dia ou da noite. Improvável não se deixar envolver pelos ritmos da salsa, da rumba, do mambo, do merengue... Há um show em cada esquina, com músicos talentosos e cantores extraordinários. Entre uma noite com os Legendários del Guajirito, remanescentes do Buenavista Social Club, e outra com Carrasco y Su Cubanía, em La Bodeguita del Medio, há paradas obrigatórias pela Floridita, Van Van e muitas outras casas de espetáculo.



Não se vai de um ritmo a outro sem uns bons goles de mojito ou daiquiri. Não foi negado ao povo cubano o direito de cantar e ser feliz, de festejar um dia de cada vez. Os cubanos sabem que a ilha tem beleza de sobra para oferecer aos visitantes, do verde esmeralda das águas de Varadero às raízes históricas e influências francesas de Santiago de Cuba.



No país ateu uma procissão em homenagem à Virgem da Caridade do Cobre toma conta das ruas do Barrio del Arte, em Havana, enquanto falsos adeptos da santeria aplicam à luz do dia, em estrangeiros desavisados, o golpe do charuto das cooperativas em cortiços da clandestinidade. A imagem do Cristo no alto de Havana e o culto afro esboçam uma Cuba mais real e sincrética que propriamente descrente.





A revolução está impregnada na cultura cubana. No aeroporto, nas estradas, nas fachadas de prédios, no hotel, no teatro, nos bares, no souvenir, em quase tudo orna a onipresença dos líderes revolucionários. Principalmente nas livrarias, onde há mais propaganda do regime que literatura. Há mais Fidel e Guevara que Heminguay.

Nas calçadas existe uma massa de pedintes em construção, enquanto Cuba prepara-se para receber, nos próximos dias, o sucessor de Raúl Castro. O país, que nos últimos dois anos recebeu com festa o Papa Francisco, Barack Obama e a banda Rolling Stones, ainda não sabe o que virá pela frente. Os Estados Unidos continuarão a ser a mesma nêmesis para os românticos de Cuba? Trump é a reencarnação do mal, do que há de pior no bloqueio? O socialismo sucumbirá a um McDonald’s em cada quarteirão no centro de Havana?





A arte, em especial a música, tem sido o principal estratagema para furar o bloqueio e manter viva a tradição. Mas o estado cubano também é severo com os seus artistas. O vizinho mais próximo é o inimigo alimentado. Havana, a capital voluptuosa e culturalmente sedutora, é a antítese de Miami, o portão de entrada para “o capitalismo fútil e cafona”.

Há um horizonte de incertezas a curto prazo: ou Cuba continuará resistindo heroicamente ou se entregará à tentação do capital. Cubanos evitam tomar partido, mas dão a entender que, uma vez conectados com o outro lado do mar, querem conhecer os dois lados da moeda.




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Um panorama atual sobre a ilha pode ser conferido em Cuba en la encrucijada, 12 perspectivas sobre la continuidad y el cambio, lançado em março pela jornalista argentina Leila Guerriero. O livro traz artigos de cubanos e não cubanos com experiências de vida ou impressões sobre o país de Fidel. Entre os articulistas estão Leonardo Padura, Carlos Manuel Álvarez, Wendy Guerra, Vladimir Cruz, Rubén Gallo e outros. Já disponível para leitura no Amazon.



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Na edição do dia 30 de março, o Granma, o jornal oficial do partido comunista cubano, toma o cuidado de desmentir uma “falsa informação” sobre possível unificação das duas moedas atualmente em circulação na ilha. De acordo com o Banco Central de Cuba, o CUC continuará no mercado “até o momento em que, como parte do processo de unificação monetária, se decida por sua retirada”.

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No mesmo Granma, a leitora Lázara Álvarez Castillo escreve uma carta para denunciar a existência de uma possível pirataria no serviço de internet sem fio oferecido pela empresa Etecsa, na província de San José de las Lajas. Segundo ela, o crédito para conexão de wi-fi colocado no cartão está sendo desviado por criminosos. “Pela pirataria constante, pela perda de dinheiro que me causa, eu pergunto: quem pode evitar que isso aconteça?”, queixa-se Lázara.

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Por ocasião das comemorações do Dia do Livro Cubano, em 31 de março, o Granma traz matéria especial sobre a atividade de leitura em voz alta para operários em algumas fábricas de charuto. O jornal informa que as leituras em tabacarias são Patrimônio Cultural da Nação Cubana, por resolução do Ministério da Cultura. Uma dessas leitoras, Breyleslic Capote, conta que os trabalhadores, mesmo num ambiente com rádios ou televisores, preferem quebrar o silêncio da fábrica com leituras de poesias ou romances.

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No documentário Ex-Change, lançado nos cinemas de Cuba no mês de dezembro passado, o cineasta Juan Carlos Travieso descreve as pontes de arte e cultura existentes entre a ilha e os Estados Unidos. Em entrevista ao canal de TV cubana, Travieso argumenta que o filme tem a pretensão, por meio de depoimentos de artistas cubanos e norte-americanos, de montar uma história de intercâmbio entre as culturas dos dois países, que tem sido tenazmente costurado ao longo dos anos.

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O escritor maranhense Lourival Serejo acaba de publicar o livro Havana, literatura, música e mojito. A publicação contém impressões de uma viagem de férias a Cuba no ano de 2014. O autor, atento a personagens, arquitetura e ambiente cultural, faz um recorte afetivo sobre a ilha. “É como se eu fosse me encontrar com minha utopia, a utopia de um jovem sonhador, cheio de planos revolucionários, desejoso de mudar o mundo”, escreve Serejo logo nas primeiras páginas do livro, como quem expõe suas razões ao leitor.

8 comentários:

  1. Caro Félix ,
    Adorei o artigo. Profuso e ao mesmo tempo minucioso. Vivi vicariamente, através do texto, uma viagem a Cuba que a muito desejo fazer. Good job. Abraço, Tony

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    1. Obrigado, meu caro Tony Moura. É uma viagem reveladora. Vale muito a pena. Grande abraço.

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  2. Amigo Felix
    Me senti andando como sombra em Cuba...nem precisei" tomar" um avião..
    A voz de "Camila" quase teve som...e os detalhes de cada techo de livro escolhido, além das fotos e fa intríssica e instigante alegria que viveste no teu aniversário!!
    Parabéns, ainda bem que não foi " coeso"...durou o tempo necessário para viajar junto contigo!!!

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    1. Amiga Lilian Raquel, foi uma viagem pra não esquecer. Valeu cada descoberta. Com as fotos, tentei passar um pouco daquilo que os meus olhos viam dia após dia. bjs

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  3. Parabéns Félix. Enriquecedor!!!
    Vejo que aproveitou Cuba e Havana em todas as nuances.
    Isto que é legal. As histórias que as viagens proporcionam.

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    1. Obrigado, Sheila, por participar do princípio dessa viagem.

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  4. Estive em Cuba recentemente, fiz um curso de cinema, em Santo Antônio de Los Banos, depois fiquei quinze dias em Havana por conta do Festival de Cinema, o que descrevestes foi justamente como me senti em Cuba, um brasileiro perdido nas coincidências da vida, me senti em casa, no meu bairro aqui em São Luís do Maranhão, com meus parentes passando por mim a toda hora. Gostei tanto de lá, que em setembro, volto pra um novo curso, agora de três semanas.

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    1. Que maravilha. Cuba é realmente fascinante e nos sentimos em casa com a acolhida festiva do povo cubano.

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