terça-feira, 8 de setembro de 2009

Olhar azul anil sobre a ilha


A cidade está ao alcance das mãos, debaixo dos olhos e pulsando no peito. De braços abertos para o continente, presa a um corredor estreito, sem forças para se lançar ao mar. O oceano olha e molha suavemente o ventre da pequena. Quem é ela, essa menina de quase quatrocentos setembros? Capital antiga de empreendimentos equinociais mal resolvidos, São Luís tem cheiro, cor, jeito, estilo... Há crença e herança cultural por ruas, vielas e becos. Tem catuaba, ginga e o acentuado sabor da juçara. Poesia a granel embrulhada em pacotilhas de porcelana. Quando cai doente, a cidade toma chá de cabacinha. São Luís ardente é lilás como a água quente da tiquira.

Ah, francesa brejeira vestida de chita e cheirando a loção da lagoa onde nem o sapo lava o pé porque não quer! Província do mar das águas barrentas e dos boqueirões de mercadores de minério. São Luís é a belle époque sem memória e sem retoque. É a nova Lisboa de azulejo sem Tejo, dos mascates da auto-ajuda, dos profetas da praça e do chiado, do cearense rendeiro. Vasto terreiro de refino da bacaba, à beira do precipício do petróleo.

São Luís é mercante. A cidade operária acorda às cinco da manhã e vela o futuro que acena do convés dos navios enfileirados na baía. Um dia o progresso virá com armadura de ferro ou de alumínio! O caminho da boiada é a tua bolsa de valores. De dia, a rua Grande vai às compras. A cidade pechincha no camelô da esquina, nos armazéns de secos e molhados do João Paulo, no shopping de grife e na feira. À noite, a cidade vende o corpo no varejo pelo porto. A madrugada acende o pavio regueiro para a dança ao pé dos paredões de radiola. Alegre navio negreiro.

Chuva e sol, terra e mar, postal e lama, templo e bar. Um par de muitas coisas. Remake da colonização. São Luís é uma ilha de edição do passado, a ervilha da fantasia de torres e estacas fincadas na península do futuro. Dama do céu revolto, do escuro da noite, dos ventos gerais e da brisa morna, ela abriga delicadamente os maçaricos transcontinentais. É debaixo do mesmo céu que, no azul do dia, flanam borboletas amarelas pelas avenidas e bailam pardais distraídos pelo litoral.

Marginal, São Luís neguinha é uma aldeia global. África na cor, França na vocação, Holanda na coluna social, Jamaica no salão, Portugal de fachada, Atenas na intenção, índia seminua no São João. A cidade subverte a ordem. Se dorme na rua do Passeio, sem antes passar pela rua da Paz, pode acordar por um triz na Praça da Saudade. Em tempos de chuva, teme com razão o pequeno quarteirão de distância que separa a rua do Sol da rua dos Afogados.

São Luís é o quebra-queixo com hífen, açúcar e afeto na calçada do Caiçara - sem paraquedas, hífen e rede de proteção para suicidas recidivos. É o canto melancólico dos pregoeiros de cuscuz e caranguejo. É o sorvete na vasilha. São os muros de Emílio Ayoub e as escrituras sob a presilha dos cartórios.

A cidade é temperada pelas mãos do tempo. Mesa posta ao pecado, do creme de bacuri, da Lenoca e do cuxá. Do catamarã e do banzeiro, dos crentes aos maconheiros. São Luís de todo mundo, da pinga do Nauro Machado, dos poetas e dos baleiros.

Da cruz de malta que não falta nos ombros da tua gente.

Capital dos rios de água e sal, a cidade é de ninguém. Dos cambistas do Hotel Central, dos turistas de Teresina e de Belém. São Luís das praças que perderam a sombra, dos meninos de rua companheiros de miséria e lombra. Das quengas de faculdade. Das migalhas da filantropia. Dos mangues, do faz-de-conta da economia. Da serpente, da lenda e do bolo fecal no ventilador. Dos sotaques de cantador, de Chagas, Humberto e Chiador. Da Madre Deus, do tambor e da Maioba. Da Joana da Sé, dos insanos da colônia, da Marrom e da Pindoba.

É só uma questão de fé. Qualquer dia desses São Luís também vai dar no pé.

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