terça-feira, 25 de março de 2025

“Adolescência”: a série, as redes sociais e a epidemia do ódio


A minissérie “Adolescência” expõe, com crueza, o desmoronamento psicológico de uma família em meio à acusação de assassinato praticado por um garoto de 13 anos. Com temática densa e mais apropriada para debates em fóruns de psicólogos, psiquiatras, sociólogos ou educadores, o conjunto da obra – a história, a atuação do elenco, a ousadia na linguagem cinematográfica e, sobretudo, o impacto da abordagem – entrou rapidamente na pauta de diferentes rodas de conversa. Virou “trend”, no dialeto juvenil. 

 

“Adolescência” é um choque de realidade no streaming. Os pais, diante do susto causado pela série, “descobrem” que estão desconectados dos filhos; que há um universo paralelo no quarto da casa; que no mundo digital existe uma comunicação cifrada e quase imperceptível a olho nu; que a violência é moldada na tessitura das vulnerabilidades humanas e na busca por aceitação social. 

 

Bullying, misoginia e crime no ambiente tóxico das redes sociais são os ingredientes para o sucesso avassalador da minissérie. Embora ficcional, a produção britânica ecoa a realidade da era digital e evoca o papel das redes sociais como catalisadoras da mentira e dos discursos de ódio. 

 

Plataformas como X (ex-Twitter), Instagram, Facebook, Tik Tok e YouTube operam sob a bandeira da “liberdade de expressão”, mas, na prática, normalizam a misoginia, o racismo, a homofobia e falas e atitudes fascistas. A defesa estridente dessa liberdade, encampada por figuras públicas como Elon Musk, não é um princípio democrático, mas uma cortina de fumaça para a multiplicação de seguidores e a irresponsabilidade corporativa.  

 

Em “Adolescência”, o garoto Jamie, acusado de assassinato, encontra refúgio em comunidades online que validam sua raiva e suas frustações. Esses espaços, dominados pela retórica dos chamados incels (celibatários involuntários), propagam a ideia de que mulheres são objetos a serem controlados ou punidos. 

 

Não é difícil perceber como algoritmos recomendam conteúdo cada vez mais extremista, transformando a frustração em ódio estruturado. Este é talvez o pano de fundo da série, que expõe a violência como sintoma de um ecossistema digital doente, sem freios, que monetiza o engajamento e normaliza a barbárie. 

 

Desde que adquiriu o Twitter, Musk falseia a realidade como paladino da liberdade de expressão, a partir de seu quartel-general na Casa Branca, onde atualmente mira adversários, reais e imaginários, sentado na poltrona de primeiro-ministro de Trump. 

 

Na prática, a gestão do bilionário transformou o X em um paraíso para neonazistas, teóricos da conspiração e misóginos, sem qualquer filtro. Contas antes banidas por discurso de ódio agora são reativadas, moderadores foram demitidos e políticas de combate à desinformação, esvaziadas.  

 

No YouTube, algoritmos promovem conteúdo de extrema direita a usuários jovens; no Instagram, perfis misóginos acumulam milhões de seguidores; no Facebook, grupos neonazistas florescem sob a falácia do “debate aberto”. Todas essas plataformas lucram com a polarização, usando a desculpa da neutralidade para evitar responsabilidade. Enquanto isso, adolescentes como Jamie são forjados em comunidades que os ensinam a odiar — e a matar.  

 

A minissérie, embora potente, peca ao reduzir a crise a um drama individual ou familiar – sim, o drama é também familiar! Mas na produção britânica o vilão direto é o garoto perturbado. Onde estão os outros? 

 

A “liberdade de expressão”, no código de Musk e de tantos outros expoentes da extrema-direita, inclusive parte expressiva da malta bolsonarista no Brasil, é apenas uma mentira conveniente, largamente compartilhada. Ela serve para proteger o direito de odiar, não o direito de existir ou resistir. O assassinato da garota na série não é um acidente, mas a crônica anunciada de um ecossistema que valoriza mais o clique no isolamento do quarto que a vida.

 

Também tenho um filho de 13 anos e me vi no espelho, assustado. Mas a minissérie “Adolescência” pode ser interpretada, dentro e fora de casa, como um convite ao diálogo. Para além do peso temático, há uma construção cinematográfica que entra para a história, com o impacto do plano sequência, o desempenho técnico por trás das câmeras, a direção de fotografia e a performance arrebatadora do elenco, notadamente o principiante Owen Cooper que interpreta Jamie. 

 

limafelixalberto@gmail.com

domingo, 12 de janeiro de 2025

Dois livros para ler, ouvir e pensar

 


Lançados no final de 2024, It’s a long way, o exílio em Caetano Veloso, de Márcia Fráguas, e a reedição de Rabo de foguete, os anos de exílio, de Ferreira Gullar (publicado originalmente em 1998), oferecem perspectivas complementares sobre a experiência do desterro durante a ditadura militar brasileira. Enquanto Fráguas investiga, pelo viés acadêmico, como o exílio moldou a produção artística de Caetano Veloso, em um relato visceral e autobiográfico Gullar narra as dores e reflexões de sua vivência forçada longe do Brasil. Juntas, as obras compõem um retrato denso e multifacetado sobre como a arte emergiu como forma de resistência e reinvenção frente às brutalidades do regime autoritário.

 

Márcia Fráguas, em It’s a long way, o exílio em Caetano Veloso (Garota FM Books), apresenta uma análise sobre um dos períodos mais marcantes na trajetória do cantor e compositor baiano e, por extensão, na música popular brasileira. Resultado de sua dissertação de mestrado na USP, o livro lançado há menos de um mês oferece um estudo detalhado dos três álbuns produzidos por Caetano no exílio (1969–1972), amparado por extensa pesquisa documental e um mergulho interpretativo nas letras e contextos históricos de produção dessas obras.

 

A narrativa de Márcia Fráguas oscila entre o rigor acadêmico e a potência de uma história construída a partir de fontes primárias, como uma entrevista exclusiva concedida por Caetano, além de livros, jornais e revistas, como O Pasquim e Verdade Tropical e Narciso em férias (ambos de Caetano) e Tropical sol da liberdade (de Ana Maria Machado). O trabalho da autora mapeia as transformações emocionais e estéticas do artista, interpretando como a experiência da prisão e do desterro reverbera nas canções dos álbuns Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (1971) e Transa (1972).

 

No primeiro capítulo, dedicado ao disco de 1969, a autora explica como a obra, conhecida como “o álbum branco de Caetano” (o artista fora obrigado pelos militares a não usar na capa do disco qualquer foto que remetesse aos horrores da época), encapsula o impacto do confinamento. 


Gravado em condições atípicas – com a voz de Caetano registrada em Salvador, em pleno confinamento, e os instrumentos adicionados em São Paulo, sob a direção de Rogério Duprat –, o disco de 1969 carrega uma atmosfera de angústia e melancolia, apesar de conter faixas de tom aparentemente mais leve, como o frevo Atrás do trio elétrico e o samba de roda Marinheiro só. Canções como Irene, Os argonautas e Não identificado transbordam as emoções de um artista confrontado pela censura e pelo silêncio forçado. O “álbum branco” foi lançado no Brasil em agosto, um mês após a partida de Caetano Veloso e Gilberto Gil para o exílio – em 27 de julho de 1969.

 

O exílio em Londres, narrado no segundo capítulo, traz uma nova camada de complexidade à análise. O álbum de 1971 expõe a tensão entre o luto e a reinvenção artística, com músicas como London, London – um hino nostálgico e introspectivo com recorte chuvoso, triste e belo, dos gramados verdes e o céu azul dos britânicos – e a reinterpretação de Asa branca (de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), que conecta Caetano às suas raízes enquanto dialoga com o cenário pop-rock inglês da época em A little more blueMaria Bethânia e Shoot me dead

 

Márcia Fráguas descreve como essas canções refletem a tentativa de sobrevivência e resistência simbólica diante do distanciamento e do desencantamento expressos pelo próprio Caetano em correspondências da época ao jornal O Pasquim, como neste trecho: “Talvez alguns caras no Brasil tenham querido nos aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós”.

 

O último capítulo, dedicado a Transa, um disco com produção do britânico Ralph Mace e direção musical de Jards Macalé, sintetiza a multiplicidade sonora e cultural do período londrino. Com influências que vão do reggae ao samba, da capoeira a Jimi Hendrix e do jazz aos Beatles, o trabalho é uma declaração de renascimento artístico e emocional. O álbum é primoroso porque, além de incorporar uma sonoridade universal, traz canções inspiradas e um time de músicos de primeira grandeza, como Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque, Áureo de Sousa e o próprio Macalé.

 

Canções como You don’t know me e Nine out of ten dão sinais de um Caetano renovado, um tanto refeito da angústia por ter sido obrigado pela ditadura a deixar o Brasil, e por isso tudo “irreconhecível para o público, para a própria MPB e para aqueles que participaram de sua morte simbólica” logo no início do exílio. Outras faixas de destaque são Triste BahiaMora na filosofia e a música que dá nome ao livro de Márcia Fráguas, It’s a long way.     

 

O livro não apenas interpreta as nuances musicais e líricas dos álbuns, mas traduz os dilemas existenciais do exílio. Segundo as palavras de Leonardo Davino de Oliveira, no prefácio, as canções de Caetano durante o período evidenciam a “poética do exílio”, marcada por tensões entre alegria e luto, som e silêncio, pertencimento e afastamento. Os três discos flutuam entre a melancolia do desterro e a inventividade multicultural do Tropicalismo.

 

Embora em alguns momentos o texto submeta-se a determinados jargões acadêmicos, o livro It’s a long way é uma contribuição relevante para a compreensão do impacto da ditadura militar na arte brasileira e, especificamente, na obra de Caetano Veloso. Em pouco mais de 200 páginas, Márcia Fráguas consegue passar a ideia de como o desterro moldou uma das fases mais criativas e dolorosas do artista baiano, oferecendo às novas gerações, especialmente, uma leitura revedora da complexa relação entre arte, identidade e resistência.

 

Além de provocar uma imersão natural num dos momentos mais conturbados da história – os anos de ditadura militar no Brasil e os seus efeitos colaterais na cultura e no comportamento – o livro nos leva, ao final da leitura, a ouvir de uma maneira diferente os discos de Caetano Veloso analisados pela autora. It’s a long way é, portanto, uma obra para ler e ouvir.

 

Um exilado salvo pela poesia

 

Em Rabo de foguete, os anos de exílio, o poeta Ferreira Gullar nos conduz por um dos períodos mais tumultuados da política brasileira e detalha como a perseguição da ditadura o levou a viver como expatriado durante os anos de chumbo, especialmente após o Ato Institucional nº 5, o AI-5. Relançado pela Editora José Olympio em 2024, o livro retoma seu vigor crítico e histórico, permanecendo tão atual quanto essencial.

 

A obra, ao mesmo tempo uma autobiografia e um relato histórico, mistura memória, análise política e reflexões pessoais. Dividida em capítulos que se sucedem como fragmentos de um mosaico, Rabo de foguete reconstrói, cronologicamente, a passagem de Gullar por países como Uruguai, Chile, Peru, Argentina e a então União Soviética, entre 1971 e 1977, com detalhamento de uma jornada que vai do treinamento militar no Instituto Marxista-Leninista, em Moscou, até o drama para localizar um de seus filhos desaparecidos em Buenos Aires.

 

O livro, que pode ser lido como se fora um romance, captura o sentimento de deslocamento e incerteza vivido por Gullar. O autor faz uma densa reflexão sobre o exílio, a censura, a clandestinidade e a inexperiência para a luta de muitos que, como ele, não demonstravam vocação para embates armados: “Em Moscou passei a conhecer melhor o PCB [Partido Comunista Brasileiro], já que só então trabalhei e convivi com os quadros profissionais do partido, com seu aparato clandestino, e percebi que a muitos de nós faltava a mística do revolucionário, a convicção inabalável que determina o cumprimento rigoroso das decisões e o sacrifício sem limites.”

 

Gullar narra sua convivência com outros exilados latino-americanos, em especial os chilenos, durante o governo de Salvador Allende e o golpe de Augusto Pinochet. Esses episódios oferecem uma visão rica e detalhada sobre a “integração” das ditaduras na América Latina e como elas operavam sob a lógica do “terror transnacional”.

 

Em Rabo de foguete, Gullar revisita sua própria militância com um olhar crítico, mas nunca ressentido. Ele reconhece erros e excessos nas jornadas de luta nos movimentos à esquerda, mas sem abrir mão de suas convicções democráticas.

 

O poeta narra, com crueza e sinceridade, o impacto do isolamento sobre sua saúde mental. Ele não apenas enfrentou a perseguição política que o levou para fora do Brasil, mas viveu o exílio como um terreno de profundas dores pessoais. Um dos filhos sofria com surtos de esquizofrenia, um quadro que se agravava em meio às condições precárias e à constante instabilidade que marcavam a vida de um exilado. Um outro filho envolvia-se com drogas, amplificando o caos e a desesperança que cercavam a família.

 

Em Rabo de foguete, Gullar expõe a impotência de lidar com esses desafios enquanto tentava sobreviver ao desterro e manter viva sua própria identidade como poeta e intelectual. O leitor é confrontado com a vulnerabilidade de um homem que, ao mesmo tempo em que resistia ao regime opressor (também a Argentina estava entregue ao coturno dos generais), lutava para não cair em meio aos infortúnios no ambiente familiar.

 

E foi exatamente nesse período mais difícil que uma força imaginativa o empurrou, talvez como derradeira saída, para o Poema sujo. Gullar transmutou sua angústia, saudade e reflexão política em um poema monumental, considerado uma de suas maiores obras. Escrito em Buenos Aires, entre maio e outubro de 1975, Poema sujo é um grito visceral de socorro que, como dito por Otto Maria Carpeaux, encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças da vida do homem brasileiro. “Hoje, ao refletir sobre aqueles momentos, estou certo de que o poema me salvou: quando a vida parecia não ter sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, inventei, através dele, um outro destino”, conta Gullar em Rabo de foguete.

 

Numa curva da história em que o Brasil e outros países no mundo enfrentam debates sobre memória, verdade e o papel da democracia, o desafio de revisitar Rabo de foguete ganha agora uma nova camada de relevância. A luta, os riscos e dramas narrados por Gullar ecoam os desafios contemporâneos de resistência ao autoritarismo e de defesa dos direitos fundamentais. A leitura vale a viagem até o fim, quando pressentimos que o nó na garganta do poeta também é nosso. 

 

Interseções na prisão, na música e na poesia

 

Antes do exílio de ambos, Gullar e Caetano estiveram presos pelo regime militar no mesmo prédio, em finais dos anos 1960. “A imagem mais forte de Ferreira, para mim, vem do meu período na prisão. Ele estava, junto com Gil, Antonio Callado, Paulo Francis e outros, num xadrez ao lado do meu. Sua lucidez e sua firmeza faziam dele o melhor companheiro imaginável”, escreveu Caetano em 2016, ao saber da morte de Gullar. 

 

A prisão do cantor e compositor baiano teria sido motivada principalmente pela censura cultural e sua postura desafiadora como artista, ao passo que a do poeta maranhense teria relação direta com sua atuação intelectual crítica, além da militância política no Partido Comunista Brasileiro.

 

Gullar e Caetano compuseram o bolero Onde andarás, incluído no primeiro disco solo do baiano, em 1968, portanto antes de suas prisões. “Essa parceria não nasceu de uma relação minha com Caetano. Foi a Maria Bethânia que pediu se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor de cotovelo, que ela queria gravar no seu disco de estreia. Então fiz e entreguei a ela duas letras: uma é Onde andarás; a outra é um poema que também é do mesmo livro, que adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou um deles. O outro poema acho que inspirou  Alegria alegria”, contou Gullar, em 2009, em entrevista ao jornalista sergipano Gilfrancisco Santos.  

 

Esse mesmo álbum de Caetano, que também inclui músicas como TropicáliaSoy loco por ti América e Alegria alegria, foi eleito pela revista Rolling Stone Brasil como o 37º melhor disco brasileiro de todos os tempos. Em 2001, o disco foi incluído no Hall da Fama do Grammy Latino. Depois de Caetano, a canção de Gullar e Caetano foi gravada por Maria Bethânia, Marisa Monte, Joanna, Gal Costa e Adriana Calcanhoto. 

 

Na interseção entre história e arte, o livro de Márcia Fráguas e a reedição da obra de Ferreira Gullar celebram, cada uma em seu tom, a resistência tecida pela criação em tempos de exílio. Se em It’s a long way somos conduzidos pela música transgressora e inventiva de Caetano Veloso, em Rabo de foguete mergulhamos na densidade poética e visceral do desterro vivido por Gullar. Os livros transcendem a experiência individual para oferecer um panorama coletivo de luta e expressão, realçando que, mesmo num cenário de sombras, a arte se mantém como farol e refúgio. Revisitar essas histórias é também não se deixar sucumbir ao esquecimento. É compreender que a poesia – como a música – sempre encontra algum atalho para nos salvar.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Ainda estou aqui, um filme para não esquecer

Reprodução de imagem do filme de Salles: a família Paiva em foto para a imprensa


O filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, é uma obra que perfura a bolha do cinema convencional e impõe-se em 2024 como divisor de águas na narrativa sobre a ditadura militar no Brasil. Com uma forte carga emocional, o longa-metragem evita deslizes apelativos ou panfletários para alcançar uma sofisticação rara ao retratar temas tão delicados e dolorosos.

 

No centro da trama, Fernanda Torres vive Eunice Paiva, uma mulher que se ergue como farol de resistência diante da brutalidade do regime militar. A personagem enfrenta uma jornada devastadora após o sequestro, prisão e morte do marido, o ex-deputado Rubens Paiva, um dos casos mais emblemáticos da violência estatal após o golpe militar de 1964. 

 

Fernanda interpreta Eunice com uma intensidade e sutileza extraordinárias, numa performance que mescla a dor interior com a firmeza na linguagem gestual e no percurso de luta por ela empreendido. Um dos aspectos mais marcantes de Eunice é sua capacidade de conduzir essa luta com dignidade e força, sem jamais permitir que sua fragilidade transpareça para os filhos ou para a opinião pública. 

 

Walter Salles, ao adaptar a obra de Marcelo Rubens Paiva para o cinema, opta por um enfoque que não é exclusivamente de denúncia, de protesto, mas que privilegia questões humanas, com ênfase na integridade moral e emocional de Eunice. A mensagem política é clara, tanto no livro como no filme, embora não seja ela a mola propulsora de arrebatamento que o longa-metragem provoca.

 

No livro de Marcelo Rubens Paiva (Alfaguara, 2015), o ponto de partida da narrativa é o Alzheimer de Eunice Paiva, mãe do autor e uma figura central em sua vida. Ao narrar o declínio cognitivo de Eunice, Marcelo reconstrói a história de sua família. O desaparecimento de Rubens Paiva é o eixo em torno do qual a trama se desenrola. No entanto, o livro não se limita à dimensão política desse evento; ele se aprofunda nas implicações humanas, emocionais e psicológicas que tal perda provocou.


Com o desaparecimento do marido, Eunice cria os filhos sozinha e assume um papel de resistência, engajando-se em causas políticas e sociais. Marcelo retrata a mãe com um misto de admiração, ternura e assombro. Eunice é a mãe fria, que pouco abraça ou beija os filhos, mas que não abre mão de tê-los por perto, debaixo de sua saia. 

 

As memórias de Eunice são reconstituídas com sensibilidade, revelando uma mulher que se recusou a ser definida pelo papel de vítima. “Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta. A família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Precisamos estar saudáveis, bronzeados para a contraofensiva. Angústia, lágrimas, ódio, apenas entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem ditou o tom, ela quem nos ensinou”, relata Marcelo na obra.

 

O livro Ainda estou aqui, vencedor do Prêmio Jabuti em 2015, aborda a questão da memória de maneira multifacetada. O Alzheimer de Eunice simboliza não apenas a perda individual de suas lembranças, mas também o perigo do esquecimento coletivo em relação aos horrores da ditadura. Nesse sentido, o livro funciona como um alerta: lembrar é resistir, e contar essas histórias é uma forma de preservar a verdade.

 

Em sua primeira empreitada literária – Feliz ano velho, lançado em 1982 pela editora Brasiliense – Marcelo Rubens Paiva, ao narrar os desdobramentos do acidente que o deixou tetraplégico, aborda também, ainda que de passagem, o drama familiar após o sequestro e morte do pai Rubens Paiva em plena ditadura militar. O livro virou best-seller, ganhou prêmios e reedições e foi adaptado para o teatro e cinema.    

 

No filme de Walter Salles, o recorte na trajetória da protagonista é, ao mesmo tempo, regional e universal, ao refletir sobre a capacidade de resistência de mulheres que, diante de adversidades inimagináveis, encontram forças para abalar o establishment. Quantas Eunices mundo afora não moeram a corda de sustentação do estado? Daí a repercussão de Ainda estou aqui nos mais importantes festivais de cinema, em diferentes países e culturas. 

 

Inicialmente apresentada como uma esposa e mãe buscando respostas, Eunice gradualmente vai se tornando uma militante ativa, moldada pelo trauma da perda do marido, pela condição de chefe de família que o destino lhe impôs, até ser completamente dragada pelo Alzheimer.

 

Vale frisar que o filme também merece atenção por abrir discussões que ecoam nos dias atuais. Ao abordar a brutalidade do regime militar, Ainda estou aqui convida o espectador a traçar paralelos com a situação de grupos vulneráveis na contemporaneidade — como pretos, pobres, indígenas e LGBTQIA+ — que enfrentam formas de repressão institucionalizadas. Salles, com sutileza, aponta para as semelhanças entre os mecanismos de opressão do passado e do presente, sem perder de vista o foco humano e pessoal da narrativa.

 

Muitos brasileiros, de diferentes correntes políticas, já foram às salas de cinema para assistir ao badalado Ainda estou aqui. O filme está no centro das conversas, entrou em pauta nas repartições públicas e mesas de botequins. Mas o que dizem, afinal, sobre a história de Eunice Paiva os defensores de uma nova intervenção militar no País, da volta das forças armadas ao comando da política brasileira? Aprovam a narrativa de Walter Salles? Se reconhecem na história? Relativizam?   

 

Ainda estou aqui é, em suma, uma obra que se destaca por sua narrativa envolvente, pela atuação excepcional de Fernanda Torres e pelo impacto emocional duradouro. Ao deixar o cinema, o telespectador segue com o filme ressoando alma adentro. Walter Salles cria uma experiência cinematográfica que não apenas honra a memória de Rubens Paiva, mas que celebra a resistência das Eunices que enfrentaram o regime militar e encontraram, na dor, uma razão para continuar lutando.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Sobre poesia e resistência



A poesia de Joãozinho Ribeiro é um cântaro de leveza, de bons presságios. A Safra de quarentena não é um grito de socorro, mas um canto de otimismo, um bálsamo extraído das profundezas da melancolia e da desesperança. Para Joãozinho Ribeiro, a poesia foi e será sempre o pão de cada dia. É ela quem alimenta o seu ativismo cultural de mais de quatro décadas.

A poesia de Joãozinho Ribeiro também é música, cachaça, e um unguento poderoso que soube curar as feridas do isolamento. O cenário de pandemia, mais do que um eixo temático, torna-se um pretexto para expor em versos certeiros, com inventividade e delicadeza, as fissuras da humanidade. A quarentena aqui é pano de fundo para um diálogo poético sobre relações humanas, solidariedade e resistência.

O poeta é um inconformado renitente com o estado de coisas, que desafina a flauta da hipocrisia, que brada com elegância pelo afeto, que luta pelo amor colaborativo, pela terra repartida, pelos meninos de Gaza, pela saúde do planeta.

A Safra de quarentena é também o eco das panelas vazias que choram silenciosas, não do alto dos edifícios de neon e led, mas do escuro das periferias.

Há em curso um desconcerto da humanidade, mas nem por isso o poeta esmorece na esquina dos poemas. Como se carregando um alaúde sobre os ombros, ele vai ensaiando a ciranda da vida e tocando em desalinho a valsa da fé inextinguível no homem.

Com o desejo imenso de sarar o mundo, Joãozinho Ribeiro sai por aí pintando paisagens reais e imaginárias, como se a poesia fosse um grafite no muro, o exercício de sensatez e equilíbrio que, de um verso a outro, vai de uma corrente de benquerer a uma cantiga de maldizer. 

Safra de quarentena é uma obra que está além da pandemia. Porque ainda nos faz crer nas utopias e na capacidade transformadora da arte. E porque prevalecerá a luz da verdade onde houver distopia. 

Joãozinho Ribeiro faz uso da linguagem do povo, fluida, para fundar a sua poesia concisa, sem rodeios ou contorcionismos semânticos. Um violeiro refinado, urbano, bramindo aqui e ali por uma felicidade urgente, mas nunca uma felicidade superficial, instantânea, como um post de rede social.

Safra de quarentena é uma obra para quem, mesmo em tempos de desolação, ainda se permite acreditar na invenção do futuro, que pode ser agora. É um convite para encontrar, nos escombros, a colheita da paixão, da sorte, da rebeldia, dos lírios e de algum delírio.  

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Boom: sobre cartas, literatura e política na América Latina

 

Las cartas del Boom é um livro de 2023 da editora espanhola Alfaguara com ingredientes superlativos que ajudam a compreender a importância da literatura na segunda metade do século passado, no chamado Boom Latino-americano, com suas variáveis socioculturais e políticas. Encontrei-o por acaso numa viagem recente pela Argentina, um último exemplar perdido na prateleira da livraria na região central de Mendoza. 

 

A publicação de 562 páginas, ainda inédita no Brasil em língua portuguesa, merece uma atenção especial dos leitores porque reúne 207 correspondências trocadas entre o argentino Julio Cortázar, o mexicano Carlos Fuentes, o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llossa, de 1955 e 2012, além de ensaios, entrevistas, artigos, manifestos e outros documentos de valor histórico.    

 

Organizado também por um quarteto – Carlos Aguirre, Gerald Martin, Javier Munguía e Augusto Wong Campos –, o livro lança luz sobre amizades duradouras, literatura, encontros, desencontros, posicionamentos políticos, rupturas e o processo criativo de alguns dos escritores mais influentes da América Latina. A publicação da obra deve-se, sobretudo, a Carlos Fuentes, o primeiro a escrever uma carta desse compilado, endereçada a Julio Cortázar em novembro de 1955. Fuentes foi uma espécie de “agitador postal” e manteve guardadas e preservadas, por mais de cinco décadas, as correspondências trocadas com os três amigos.   

 

Com quase 700 notas de rodapé que ajudam a clarear o labirinto do Boom Latino-americano, o livro revela como os autores, em diferentes momentos, discutem ideias, compartilham rascunhos e a escrita em evolução de algumas obras icônicas, apontam críticas e trocam conselhos sobre os desafios de suas carreiras literárias. García Márquez, por exemplo, submete a considerações dos amigos, por meio de cartas, o desenvolvimento dos primeiros capítulos de sua obra mais conhecida. “Até já encontrei o título do meu novo romance: Cem anos de solidão. O que você acha?”, indaga García Márquez a Fuentes em outubro de 1965. O livro sobre a saga da família Buendía só seria publicado dois anos depois.     

 

As correspondências compreendem quatro fases distintas de projeção literária e das relações de amizade entre os quatro escritores: o período embrionário do Boom, de 1955 a 1966, quando despontam os primeiros romances de impacto, como A região mais transparente (Fuentes), Ninguém escreve ao coronel (García Márquez), A cidade e os cachorros (Vargas Llosa) e O jogo da amarelinha(Cortázar); o auge do Boom, de 1967 a 1975, quando grandes obras como Cem anos de solidão e Conversa na catedral dão à literatura latino-americano visibilidade internacional; a desintegração do quarteto, em 1976, capítulo definido no livro como “o fim da festa”, após desentendimentos políticos e o soco, em público, de Vargas Llosa em García Márquez; e o pós-Boom, de 1977 a 2012, com um número cada vez menor de cartas trocadas entre eles. 

 

Essa cuidadosa curadoria faz com que o leitor mergulhe nas idiossincrasias e vulnerabilidades dos quatro escritores, e como eles influenciaram e foram influenciados uns pelos outros ao longo de décadas. “Não é apenas uma compilação de cartas, mas uma grande narração em primeira pessoa que vai do singular ao plural”, dizem os editores. Cortázar menciona em longa carta o entusiasmo com a leitura, em primeira mão, de A casa verde, de Vargas Llosa. Este (em única carta dele no livro dirigida a Cortázar, de maio de 1972) revela sua decepção com a atitude do amigo ao deixar de escrever para a revista Libre, levado, segundo relata, por “maniqueísmos e mal-entendidos” em relação a Cuba.

 

No livro, há menções a projetos colaborativos que, embora nem sempre concretizados, mostram o desejo dos escritores de trabalhar juntos em antologias ou revistas literárias que pudessem divulgar a literatura latino-americana para um público mais amplo. Em cartas, a tônica do Boom sinalizava que cada um dos autores escrevia capítulos de um mesmo romance: o romance da América Latina. “Não percebes que cada bom romance latino-americano te liberta um pouco, te permite delimitar com exaltação o teu próprio terreno, aprofundar o que é teu com a consciência fraterna de que os outros estão completando a tua visão, dialogando, por assim dizer, com isso?”, escreveu Fuentes a Cortázar em julho de 1967. 

 

O que foi o Boom? 

 

Um dos aspectos mais instigantes de Las cartas del Boom é a maneira como as correspondências refletem a atmosfera política e social das décadas de 1960 e 1970. Os escritores abordam questões como os efeitos das revoluções em Cuba e Nicarágua, as ditaduras no Chile e Argentina e a luta pela democracia em outros países da América Latina. Opiniões e debates sobre esses temas revelam o papel ativo que Cortázar, Fuentes, Vargas Llosa e García Márquez desempenharam não apenas como autores, mas como intelectuais engajados na realidade sociopolítica da região – instável, complexa, turbulenta. O olhar sobre essa realidade dentro e fora da literatura fez eclodir um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.  

 

O Boom destacou-se como período de produção de obras inovadoras, do surgimento de novos autores e do reconhecimento internacional de escritores latino-americanos. O movimento, ou momento, ajudou a quebrar convenções do romance tradicional e deu a ele estruturas não lineares e múltiplos caminhos de leitura e interpretação. O realismo fantástico, caracterizado pela combinação verossímil de elementos da imaginação popular com a realidade crua, tornou-se a pedra de toque do Boom Latino-americano, nome utilizado pela primeira vez em 1966, em artigo de Luis Harss no jornal Primera Plana, de Buenos Aires – até então falava-se na imprensa de um “Novo romance” da América Latina. 

 

Não apenas a Cortázar, Fuentes, Vargas Llosa e García Márquez estava reduzido o Boom. Havia outros autores no entorno da cena, como o chileno José Donoso, o cubano Guillermo Cabrera Infante e Juan Goytisolo (nascido na Espanha). Mas foram os quatro primeiros, como se depura na leitura das cartas, e por tudo o que escreveram ou disseram, os principais expoentes do Boom. 

 

Consideravam-se, sobretudo, e apesar das diferentes nacionalidades de cada um, escritores latino-americanos. Em princípio, o triunfo da revolução cubana, a identidade cultural e a aproximação com o socialismo foram o ponto de convergência do quarteto. “Cuba esteve desde então, e para o resto de suas vidas, no centro de suas preocupações e paixões”, explicam os organizadores do livro. Os anos 1960 foram a fase mais fecunda do Boom, pela carga de utopia do momento: os olhos do mundo estavam voltados para o que acontecia na política (as insurreições) e na literatura de um continente periférico e até então “desconhecido”. Os grandes romances foram escritos, coincidentemente, nos primeiros dez anos após a queda de Fulgencio Batista em Cuba (1959).   

 

Não por acaso, 1967 foi o ano mais abundante na troca de correspondências entre os quatro escritores. Foram 32 cartas que circularam entre as cidades de Paris, Saigon, Londres, Veneza, Barcelona e Cidade do México. Foi o ano de alguns prêmios importantes e da publicação de obras como Cambio de piel e Cem anos de solidão. García Márquez e Vargas Llosa haviam se encontrado pela primeira vez em agosto daquele ano, em Caracas, e um mês depois participaram de dois encontros memoráveis organizados pela Faculdade de Arquitetura no anfiteatro da Universidade Nacional de Engenharia, na capital peruana. 

 

A gravação dessa entrevista pública em Lima resultou na publicação, no ano seguinte, por iniciativa do dramaturgo peruano José Miguel Oviedo, do livro Duas solidões: um diálogo sobre o romance na América Latina, editado pela Record no Brasil somente em 2021. Traduzido por Eric Nepomuceno, o livro serve também de bússola para o leitor que pretende desbravar os caminhos do Boom Latino-americano. O diálogo expõe claramente coincidências (até então) sobre as visões de mundo de Vargas Llosa e García Márquez. Ambos falam, entre tantas outras coisas, do preconceito (existente antes do Boom) com a literatura da América Latina e da discussão se, naquele momento, havia um boom de escritores ou um boom de leitores.      


 

Mas García Márquez dá a senha em carta a Carlos Fuentes, em dezembro de 1967. De Barcelona, Gabo diz que o livro Cem anos de solidão já está na sua quarta edição e segue “vendendo como salsicha”. Segundo ele, isso seria a comprovação de que a América Latina transformou-se em um dos grandes mercados de livro do mundo. “Vejo que o famoso Boom não é tanto um boom de escritores, mas um boom de leitores.” Essa opinião de García Márquez seria compartilhada por Cortázar pouco tempo depois numa revista peruana: “O Boom não foi feito pelos editores, como se insinua agora, mas pelos leitores latino-americanos, que em pouco mais de uma década entraram na mais formidável forma de consciência jamais vista em nossos países.” 

 

O legado do Boom

 

Em carta a Vargas Llosa, Fuentes diz, em 1964, que o futuro do romance está na América Latina. Segundo ele, na América Latina tudo ainda está por ser dito ou nomeado e é onde, por sorte, “a literatura surge de uma necessidade e não de um apelo comercial ou de uma imposição política”, como acontece em outras regiões. Entre os muitos legados do Boom, o principal deles foi o impacto duradouro – e a repercussão mundo afora – provocado pela literatura latino-americana, forjada numa realidade assombrosa, “descomunal”, que mistura desigualdades sociais, surtos de imaginação, golpes militares e identidade cultural. 

 

Em pronunciamento em Estocolmo, na Suécia, ao receber o Nobel de literatura pelo conjunto de sua obra, em 1982, García Márquez narra os efeitos dessa realidade tecida na América Latina em pleno Boom: “Nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nos sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.” Em Eu não vim fazer um discurso (Record, 2011), que reúne o pronunciamento completo da cerimônia do Nobel e muitos outros, há percursos líricos que nos levam também aos escaninhos do Boom Latino-americano.   

 


Para além das cartas, os quatro escritores do Boom encontraram-se uma única vez. Foi em agosto de 1970, no sul da França. No dia 14, assistiram em Avignon a uma representação da peça El tuerto es rey, de Fuentes, e no dia seguinte, em Saigon, participaram de uma “pachanga espasmódica” na casa de Cortázar, onde se falou muito sobre a situação de Cuba e a criação da revista Livre


Na foto, os autores do Boom com um grupo de amigos em Saigon

  

O Brasil e o Boom

 

Las cartas del Boom não aborda diretamente o assunto, mas já faz algum tempo uma dúvida paira no ar, reforçada agora após a leitura do livro: por que o Brasil, com uma profícua produção literária, esteve à margem desse fenômeno editorial latino-americano? O idioma poderia ser a principal razão desse isolamento, afinal o Brasil é o único país da América Latina a adotar a língua portuguesa. Isso, entre outras hipóteses, ajudou a limitar a circulação de obras de autores brasileiros nos mercados editoriais de língua espanhola. Romancistas como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Jorge Amado e Rubem Fonseca – ou os poetas Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar –, embora tenham publicado grandes livros entre as décadas de 1960 e 1970, ao contrário dos autores do Boom foram pouco alcançados pelos mercados latino-americano e europeu. 

 

Encoberto na fleuma da identidade cultural, o Brasil sempre virou as costas para os demais países da América Latina. Por preconceito, desprezo ou ignorância política, o Brasil nunca se assumiu como país latino-americano. Além disso, as realidades sociopolíticas dos países hispano-americanos estavam mais interrelacionadas. Alguns movimentos contra ditaduras, como ocorreu em Cuba, por exemplo, criaram um senso de solidariedade e conexão entre escritores desses países. Já o Brasil palmilhou um caminho político e social diferente, pouco integrado à narrativa comum do Boom.

 

Em períodos de golpes de estado e ditadura militar, enquanto muitos escritores latino-americanos exilados optaram por continuar suas carreiras literárias no exterior – como é o caso dos autores do Boom, no México, na França, na Inglaterra ou na Espanha –, os escritores brasileiros enfrentaram dificuldades para alcançar o reconhecimento internacional. 

 

Em algumas correspondências do livro há certa preocupação dos autores do Boom com temas relacionados ao Brasil. Em carta a Vargas Llosa, em dezembro de 1967, García Márquez relata de Barcelona sua tristeza ao obter informação sobre o autor de Grande sertão: veredas pelos jornais espanhóis. “A única má notícia encontrei casualmente nesse mesmo recorte [de jornal] de que te falo, perdida num canto de página: morreu o velho Guimarães Rosa.” Na correspondência, Gabo diz que conheceu Rosa pessoalmente e que a divulgação da morte pela imprensa o deixou “um tanto perturbado”.    

 

O fim da festa

 

O crepúsculo editorial do Boom, segundo estudiosos da literatura latino-americana, ocorreu após a publicação dos romances O outono do patriarca, de García Márquez, e Terra nostra, de Fuentes, no segundo semestre de 1975. Não pela qualidade das obras, mas pelo contexto político em asfixia na América Latina. O epitáfio teria sido escrito pelo próprio escritor mexicano: “A circulação de livros, que era a base do chamado Boom dos anos 1960, foi brutalmente interrompida pela agressão generalizada dos militares do Cone Sul contra tudo que cheirava a livro, imaginação e ideias.”  

 

Mas o fim “humano” do Boom, como dizem os organizadores do livro, ficou marcado pelo improvável murro desfechado por Vargas Llosa no olho esquerdo de García Márquez, em fevereiro de 1976, dentro de um cinema da Cidade do México. Os motivos da agressão jamais foram esclarecidos. Dali em diante abriu-se um fosso de silêncio no quarteto do Boom, a troca de correspondências encolheu substancialmente. O livro reproduz apenas duas cartas escritas no ano de 1976. 

 

Vargas Llosa e García Márquez aproximaram-se incialmente por meio de cartas. Foram 20 meses de correspondência intensa até se conhecerem pessoalmente em Caracas, em agosto de 1967, um mês antes da entrevista pública realizada na universidade de Lima. Os dois compartilhavam naquele momento uma visão comum sobre o papel da literatura em refletir e transformar a realidade da América Latina. Nasceria ali uma amizade fraterna, de respeito mútuo. Nas cartas, discutiam aspectos de suas narrativas, trocavam críticas e compartilhavam suas visões sobre literatura, política e sociedade. E chegaram até a ensaiar a ideia de escrever juntos um romance contando a história da guerra entre a Colômbia e o Peru, iniciada em 1932.

 

A amizade foi tão estreita que em 1971 Vargas Llosa publicou o ensaio García Márquez: história de um deicídio, uma espécie de declaração de amor ao colombiano e uma análise monumental da obra Cem anos de solidão. O livro, que serviu como tese de doutoramento do escritor peruano na Universidad Complutense de Madrid, e publicado no Brasil pela Record em 2022, é um dos estudos mais completos sobre a literatura de Gabo e sobre a narrativa construída em torno de Macondo, definida por Vargas Llosa como “um acontecimento literário de exceção”. 


 

Sobre o episódio na Cidade do México, uma das hipóteses é que o rompimento teria sido causado por divergências políticas. García Márquez foi, desde o princípio e sempre, apoiador fervoroso da Revolução Cubana e de Fidel Castro, enquanto Vargas Llosa, em dado momento, passou a criticar duramente o regime cubano e adotou posições mais liberais. Essas divergências poderiam ter exacerbado tensões entre os dois escritores. O peruano, segundo o escritor e tradutor Eric Nepomuceno, passou primeiro de uma esquerda radical para uma posição mais moderada, depois para a social-democracia até desembarcar no neoliberalismo extremo.   

 

De início, Vargas Llosa passou a considerar García Márquez condescendente demais com arbitrariedades da esquerda, especialmente em Cuba – e mais precisamente no caso da prisão do poeta Heberto Padilla. Depois passou a definir o escritor colombiano como “o cortesão” de Havana. Outra teoria sugere que questões pessoais, possivelmente envolvendo suas respectivas vidas familiares, contribuíram para o desentendimento. Embora os detalhes permaneçam no campo da especulação, a intensidade da reação de Vargas Llosa, ao aplicar um soco no amigo, sugere que havia algo além da política ou da literatura.  

 

Dos quatro escritores do Boom Latino-americano, Vargas Llosa é o único vivo, hoje aos 88 anos. Em 2010, o peruano recebeu o prêmio Nobel de literatura. Julio Cortázar morreu em 1984, aos 70 anos, em Paris; Carlos Fuentes, em 2012, aos 84 anos, na Cidade do México; e Gabriel García Márquez, em 2014, aos 87 anos, também na Cidade do México.   

 

Em entrevista ao jornal El País, em julho de 2017, Vargas Llosa fala sobre como recebeu a notícia da morte de García Márquez e o que representou o Boom Latino-americano para a literatura. “[Sobre a morte de García Márquez] É uma época que acaba, como com a morte de Cortázar ou a de Carlos Fontes. Eram escritores magníficos, mas também foram grandes amigos, e o foram em um momento no qual a América Latina chamou a atenção do mundo inteiro. Como escritores, vivemos um período em que a literatura latino-americana era uma credencial positiva. Descobrir que, de repente, sou o último sobrevivente dessa geração e o último que pode falar em primeira pessoa dessa experiência é algo triste.”