segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Jimmy Cliff e o reggae que resiste ao tempo


 

Não há como falar de reggae no Maranhão sem mencionar o nome de Jimmy Cliff, que partiu hoje aos 81 anos. A música do Jimmy chegou ao Maranhão antes mesmo do reggae aqui criar raízes. 

 

É que antes de tudo – das radiolas, dos clubes, dos DJs, dos contrabandistas de discos e da aparição dos “magnatas” – havia um álbum do Jimmy chamado “Follow my mind”, de 1976.

 

Um fenômeno, 12 faixas, cada uma melhor que a outra. Não sei se está no topo da crítica especializada (vieram depois outros trabalhos potentes), mas “Follow my mind” será sempre, pra mim, o álbum definitivo. Por tudo. Amizades. Afeto guardado. Fogueirinhas de papel que iluminam a memória. 

 

Nas ruas, nas rádios, no alto-falante dos cinemas nas cidades do interior, o disco de Jimmy encurtou distâncias entre a ilha e o continente. O reggae de “Follow my mind” não era só São Luís. Era o Maranhão. Sertão e litoral. Ouvi desde menino. “Look at the mountains”, “Hypocrites” e “No woman, no cry” (de Bob Marley) fizeram grande sucesso no Brasil. Esta última ganhou a versão “Não chore mais”, de Gilberto Gil, no álbum “Realce” de 1979. 

 

Mas o álbum guardava faixas que pareciam pertencer só a nós, como “Going mad”, “The news”, “I’m gonna live, I’m gonna love” e, principalmente, “Who feels it, knows it”.

 

Jimmy fez história entre os maranhenses. No dia 14 de novembro de 1990, ao desembarcar no Rio para uma temporada de shows no Brasil, ele disse estar curioso pra conhecer “a capital do reggae no Brasil”, o que deu origem à lenda de “Capital Brasileira do Reggae” e, adiante, de “Jamaica Brasileira”. Duas semanas depois, o cantor comandou aquele que é considerado o maior show em área aberta em São Luís, com mais de cem mil pessoas em volta do antigo pátio da RFFSA (atual praça Maria Aragão).

 

“Follow my mind” resiste ao tempo. Continua atualíssimo, tocando corações e mentes. Mas não está no Spotify (no Youtube é mais fácil). Reencontrei-me com o LP tempos atrás, por intermédio de Joaquim Zion. E sigo a batida daquele reggae que nunca deixou de pulsar. Como quem sente. Como quem quer saber. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Novo livro de Félix Alberto Lima destila poesia em meio às feridas do extremismo


Jotabê Medeiros, farofafa.com.br (01.10.2025)

Livros de poesia nunca venderão extraordinariamente e nem despertarão tão cedo a cobiça das IAs de resultados. Por isso, sempre espouca um sentimento de resistência e singularidade (e, por que não?, de alegria) quando um livro de poesia chega com o carteiro. No caso de um livro do poeta maranhense Félix Alberto Lima, aí então é quase como garrafa de náufrago – a mensagem é sempre de puro resgate.

com o coração na boca (7Letras, 2025) é o quarto livro do autor e o encerramento de uma trilogia que começou com Filarmônica para fones de ouvido(2018) e Nas profundezas desses olhos rasos (2020). Poeta com ligação profunda com a origem, a geografia humana de São Luís do Maranhão, a “colheita de meninos” da lagoa, ao mesmo tempo que em sintonia descompromissada com as tradições históricas (dos provençais aos beats, de Ferreira Gullar João Cabral), galo que não tece sozinho sua manhã literária, Félix carrega sempre consigo uma brisa de ruptura. “mudança não é aroma é/víscera exposta arame. única forma de manter-se de pé sem apodrecer por dentro”.

À margem da preocupação de aderir aos movimentos da conveniência literária do momento, longe da queda de braço das tertúlias hegemônicas, o poeta retoma o manifesto dos sentimentos com o coração na boca. Seus novos poemas tateiam as angústias e belezas que abastecem seu humanismo, invertendo a olímpica propositura da literatura a enfileirar angústias e belezas.

Isso não quer dizer descuido com o rigor da linguagem, nem adesão a qualquer populismo esportivo. As visões são dignas de Milton: “os calcanhares eram deus/abrindo picadas num sertão de areia/e espelhos”. Seus versos evocam personagens que garantiram a eternidade na indiferença, de um sacrílego casal em um motel até a Beata da Sé, uma mulher vestida de santa de vitral que postou-se durante décadas na frente da Igreja da Sé, na capital maranhense, até desaparecer em 2018. “um dia joana foi encontrada morta/com uma pequena pedra escondida/por entre as veias escuras da palma da mão esquerda – na mão direita o velho testamento. e deus constrangido teve de recebê-la de braços/abertos”.

Os tributos se sucedem como retomadas. Em Ibegeé, pode-se enxergar um tributo a Dentro da Noite Veloz (1975), clássico de Ferreira Gullar (“pelo menos dezesseis milhões de pessoas adultas no brasil nao têm sequer um dente na boca”). Da saudade da mesa de bar com Celso Borges à hierarquia da própria estante. “trediakóvsk não se entende com ferlinghetti/o mundo é agora diz um ao outro”. Outras lembranças são explícitas, como a visão de Nauro Machado (1935-2015) cantando Ramones com um sem teto na Rua do Sol, no Centro de São Luís. “tanto faz se é terça-feira ou domingo/para quem sabe de cor/morder o relento”.

A barbárie nacional também angustia o poeta, que aborda a erupção do fascismo, a corrosão da humanidade em meio ao abandono, à miséria progressiva, ao elogio do ódio feito pelo extremismo. Nenhum poeta passa incólume por essa paisagem do tempo. “o assombro de estar inteiro/mesmo repartido o peito/ao meio”. O coração não se apresentou à toa para o título do livro. Ele se encontra espalhado pelos poemas, às vezes agreste, às vezes como uma consciência polvilhada. “a boca o idioma o coração uma cratera no quintal”.

É como se o poeta artesão tivesse se dado conta de que não consegue caminhar ileso pelas ruínas do mundo somente com a armadura dos versos. Então, faz um livro de seu próprio espanto, corrosão, revolta. “caríssimo leitor, não me peça para voltar. meus passos não retrocedem/nem sangram sépia”, escreve Félix. “É nessa zona de vulnerabilidade, onde a vida pulsa mais forte, que encontro a voz para dizer o que quero, e que não tem tradução”, diz o poeta. “Se um dia perceber que já não há espanto, que o coração repousa sereno e que nenhuma palavra mais lateja, saberei que chegou o tempo de calar”.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

De volta à sala de aula

 


Há poucos meses, na condição de professor convidado, participei da banca examinadora de alguns trabalhos de conclusão do curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Meio sem tempo e já alguns anos fora das salas de aula, acabei topando o gentil convite da professora Maya Felix. E voltei para continuar aprendendo. 

 

Uma das peças apresentadas à época foi a monografia intitulada “A influência da revisão textual na qualidade da produção escrita de trabalhos de conclusão de curso: um estudo de caso na Universidade Estadual do Maranhão”, defendida pela estudante Nataly Pará Santos. Lembro disso agora, no Dia dos Professores, afinal já fui um deles num passado não tão distante assim da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da então Faculdade São Luís (atual Estácio). 


A pesquisa de Nataly partia de um universo aparentemente restrito (o próprio curso de Letras da UEMA), mas desvelava uma questão mais ampla: a fragilidade linguístico-discursiva dos trabalhos acadêmicos, mesmo daqueles agraciados com a nota máxima. Uma contradição que, de tão reiterada, parece ter se naturalizado entre nós.


A autora analisou TCCs aprovados com nota dez, produzidos entre 2021 e 2024 na UEMA, submetendo-os a um crivo quali-quantitativo, pautado por critérios objetivos de correção linguística, como ortografia, pontuação, concordância e regência. O resultado foi ao mesmo tempo perturbador e revelador: 82% dos textos apresentavam erros ignorados pelas bancas avaliadoras, com predominância de deslizes microestruturais, esses pequenos ruídos da língua que, somados, denunciam o enfraquecimento de nossa relação com o texto.


Tais dados sinalizam para um colapso silencioso nos critérios de avaliação acadêmica. Bancas que se pretendem zelosas com a forma e o conteúdo mostram-se, não raro, indulgentes – quando não completamente omissas – diante de falhas que comprometem a própria natureza do discurso científico.


O mérito de Nataly, contudo, vai além da denúncia. A reflexão sobre a ausência da revisão textual nos TCCs desloca o debate para o campo epistemológico da escrita. A revisão, para ela, não é mera depuração gramatical, mas um gesto interpretativo e dialógico, um processo que exige domínio dos gêneros acadêmico-científicos e consciência de que a linguagem é o próprio instrumento de construção do saber.


Ao afirmar que todo texto não revisado é, por definição, inconcluso, Nataly convoca professores, orientadores e discentes a compreenderem a revisão não como apêndice, mas como parte orgânica do processo de escrita, uma etapa de reflexão, de autocrítica e de amadurecimento discursivo.


Outro ponto luminoso de sua pesquisa é a crítica à persistente mitologia da “Atenas Brasileira”, esse sumo fundacional que associa o Maranhão a uma excelência linguística. Em vez de reforçá-lo, Nataly o desarma com contundência: demonstra que, mesmo nos espaços de maior prestígio intelectual, a precariedade textual é regra, não exceção. É uma crítica que atinge em cheio o coração do nosso narcisismo cultural, ao lembrar que a erudição proclamada pouco resiste à leitura atenta de nossos próprios textos.


A autora da monografia oferece caminhos. Propõe a criação de disciplinas específicas de revisão textual, a capacitação de orientadores para uma leitura linguístico-discursiva mais criteriosa e a revisão dos próprios instrumentos de avaliação das bancas. São propostas urgentes, sobretudo se quisermos formar professores e pesquisadores capazes de lidar com a linguagem não apenas como meio, mas como matéria viva do pensamento.


O trabalho de Nataly Pará Santos lança luz sobre uma zona de sombra das universidades brasileiras: a conivência com textos mal escritos, ainda que consagrados com a nota máxima. Essa monografia é um lembrete incômodo, mas necessário, de que a excelência acadêmica não se mede apenas pelo domínio do tema, mas pela precisão da palavra.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Um livro sobre escrita literária e inteligência artificial

 


Ela reagiu com um lampejo de espanto quando lhe revelei estar lendo um livro recém-lançado pela Companhia das Letras, dedicado aos efeitos da automação sobre a literatura contemporânea. “Como assim?”, perguntou ela, entre curiosa e incrédula. “Há tantos livros escritos por inteligência artificial?”. Sim, já existe uma série de obras publicadas, escritas com o auxílio da IA, algumas delas até “premiadas” em países como Japão e China. Respondi rapidamente, meio desajeitado. Poderia ter ido mais adiante: no caso do Brasil, jurados de prêmios literários importantes têm sido surpreendidos com obras escritas ou coescritas com inteligência artificial generativa.

 

Escrever é humano – como dar vida à sua escrita em tempo de robôs, de autoria de Sérgio Rodrigues, cronista da língua e da literatura e ficcionista (O brible e A vida futura), é o título do livro que mencionei na conversa. Em pouco mais de cento e noventa páginas, o escritor defende, com paixão e clareza, a natureza visceralmente humana do ato de escrever. Escrever, sustenta ele, é gesto subjetivo, trabalho de alma, de carne e hesitação. Jamais de algoritmo. 

 

Não se trata, contudo, de um libelo contra a inteligência artificial. Sérgio prefere alinhar-se à tradição: recorre a vozes de Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Tchékhov, Orwell, Chimamanda, Ruy Castro, Julián Fuks, Stephen King e tantos outros para iluminar o território humano da criação. Ainda que busque escapar à forma de um manual, o livro percorre com inventividade e humor as sendas da literatura, mostrando o que nenhuma máquina jamais poderá alcançar: imaginação, emoção, desejo, e aquela trama invisível que faz pulsar os personagens no interior de uma ficção.

 

Logo nas primeiras páginas, o autor adverte: este é um livro para quem ama a leitura – contos, romances, histórias – mesmo que não pretenda escrever, mas alimente o desejo de compreender o ofício, essa delicada artesania que insufla vida às palavras.

 

O clichê, esse refúgio das máquinas, é apontado como o oposto da boa literatura. Para Sérgio Rodrigues, o texto literário exige a centelha da originalidade, a faísca que, ao tocar o leitor, o faz sentir “a sensação sempre perturbadora de que algo verdadeiro acontece ali, pela primeira vez, no próprio ato da leitura”.

 

O autor recomenda a reescrita como gesto essencial, o ato de lapidar até que o texto respire por si. Valoriza as minúcias, o detalhe sobre o genérico: “O que uma história não diz é tão importante quanto o que ela diz – se não for mais.” E, num sopro de normalidade, adverte: nada é proibido na literatura. Embalado por bons exemplos, o livro toca na precisão vocabular, no ritmo, na pontuação, na escolha da voz narrativa.

 

Em Escrever é humano, Sérgio Rodrigues desenha três caminhos possíveis ao aspirante a escritor: o do profissionalismo, que encara gêneros e mercado; o do voto de pobreza, em que se aceita o tempo que a escrita consome e o despojamento que ela impõe; e o da renúncia, quando se reconhece que talvez o talento ou o fôlego não bastem para suportar o calvário da criação.

 

O escritor observa que a inteligência artificial “sabe muito, mas não sabe que não sabe”.  E é justamente nessa falha luminosa que habita o espaço da nossa resistência.

 

Ao fim, Escrever é humano nos reconduz ao essencial: escrever como atitude, como forma de estar no mundo, de dialogar, de reconhecer o outro. O legado maior é este: não permitir que as máquinas nos convençam de nossa dispensabilidade. Com elegância, rigor e uma intimidade rara com o idioma, Sérgio Rodrigues oferece-nos um farol: escrever continua sendo um ato humano e, por isso mesmo, insubstituível.

 

Nada mais oportuno, neste Dia do Escritor, do que essa leitura. O próprio autor confessa ter apressado a publicação de sua obra, amadurecida ao longo de anos, diante do frenesi dos robôs que agora rondam o mercado editorial. É um livro para escritores e aspirantes, mas também para leitores atentos, estudantes, professores e todos os que ainda creem que a literatura é um milagre do humano.

 

Mariana, a interlocutora que manifestara espanto com a proliferação da escrita de livros por meio da IA, dá sinais de que é uma leitora de fôlego, e talvez bem mais exigente que eu. Ela sabe, nessa jornada pelos sertões da literatura, que não se constrói Diadorim (e sua multidão de personagem) com o auxílio de robôs, e que não se atravessa a aridez do Liso do Sussuarão montado no lombo de um algoritmo.  

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

De bocas e corações...



Joãozinho Ribeiro* 

 

Sobre a palavra palavra, escrevi um dia sob a forma de canção registrada definitivamente pelo parceiro Zeca Baleiro: “Se eu cometo uma canção / E me sinto impune e são / A palavra sempre tem razão”.

Nesta última semana, ao me deparar com o novo livro do meu amigo e parceiro musical Félix Alberto Lima, que eu chamo carinhosamente de poeta das águas do Corda, fiquei simplesmente tomado por uma cumplicidade cultural sem precedentes. 

Assim como quem se associa para cometer delitos poéticos gostosos e, ao mesmo tempo, é declarado culpado pelo conjunto da obra resultante desta parceria inusitada, feita de palavras e paixões.

Com o coração na boca é o título do seu quarto livro de poemas, que acomete os leitores desavisados de uma carência múltipla dos órgãos na primeira impressão, quer dizer, leitura. Pra ser lido sem moderação ou restrições. 

Fi-lo, como costumava asseverar aquele presidente complicado, de uma tacada só. Não deu pra fazer intervalos.

“no circo do metaverso / o poema na boca / feito bolas de fogo / em círculo / não vale um versículo.” (BOCA QUENTE)

A palavra impera e conduz a poesia, como se estivesse a proferir sussurros e ruídos capazes de provocar nas bocas o que as cabeças deixaram de imaginar possível. O livro permite ser aberto em qualquer página, apesar do ordenamento autoral em oito partes sequenciais, incitando o leitor a cometer buscas irreverentes e desordenadas...

“uma colheita de meninos / adorna a tarde da lagoa. / os carros passam velozes na avenida / alheios ao cio do mangue.” (SOBRESSALTO).

O poeta está completo, com o coração exposto nos poemas que constroem coletivamente uma possibilidade da palavra ir além, feito um desenho das horas de contemplação, nem sempre passiva; porém precisa, para descrever uma paisagem que invade as existências e transborda para o coração de quem resolve compartilhar deste instante mágico do desalinhamento do verbo e do sujeito...

“pode ser um susto / o pulo do gato um salto / ou de repente a vida / engasgada de futuros / o coração entre os dentes / a respiração ofegante / um tijolo no peito / o tempo sem tempo / no exílio do afeto.” (TEMPO SEM TEMPO).

Como diria nosso cantador Josias Sobrinho: “as palavras que chegam não vão ajudar” (“Queima Madeira”, parceria sua com Augusto Bastos). Talvez, não para traduzir o sentimento dos intentos do poeta Félix em suas integralidades; porém, para assegurar uma certa cumplicidade, digna de um coração encharcado de afetos e de uma boca ansiosa por compartilhá-los com a humanidade em volta.


* poeta e compositor

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A intimidade sob as dobras da imaginação


Há livros que nos pedem menos pressa, pé no freio. Na intimidade de um ser estranho (editora Mondru) é um desses. O novo livro de poemas de Adriana Gama de Araújo, que será lançado nesta sexta-feira, às 18h, na livraria Poeme-se, ao lado de Catálogo de acasos, de Franck Santos, e O livro das nuvens, de Samuel Marinho, percorre espaços pequenos e cotidianos – a casa, o jardim, a rua deserta – para encontrar neles uma voz.

A poesia de Adriana se constrói a partir do mínimo. Versos como “Cantar a rodoviária/ vazia”, “cantar/ ainda hoje/ mesmo agora/ que ninguém nos ouve”, além de outros tantos, delatam a moenda lírica e insurgente da autora. O que poderia passar despercebido ganha corpo no conjunto das palavras. Movimento sutil de quem insiste em cantar mesmo quando não há plateia, de quem transforma a solidão em matéria de poesia.

No livro anterior, Metábole (Urutau, 2021), Adriana já experimentava derrubar a cerca ao redor do próprio umbigo, com palavras. Era o desafio do silêncio. Agora, nesse virtuoso desafio de atravessar o deserto, a poeta parece buscar outro movimento: “dar outro corpo ao tempo”, “esticar o corpo além da alma”. São versos que se aproximam de uma meditação, mas sem perder o pulso concreto da experiência.

Os poemas são curtos, diretos, quase anotações de um passeio sob a luz incessante das cores quentes do dia. Têm a força do que é dito sem ornamento: “num estranho estado de vida/ acima do tempo/ acima da guerra”. Há neles uma disposição para observar o mundo e devolvê-lo em estado bruto, mas não frio – antes, em estado de vigília.

Adriana lê poesia como quem reza, como quem cantarola uma canção antiga de Roberto. Tem ritmo próprio, e talvez por isso sua voz encontre ressonância: não procura convencer, apenas permanecer. Quem a acompanha de perto percebe que sua poesia chega de mansinho, e não nos deixa. A poesia fica. Só as estrelam mudam de lugar. 

Na intimidade “alheia”, a poeta conversa, indaga, provoca, muda de direção, fazendo o uso natural dos recursos da língua, nua e sem nome. No rebuliço das folhagens espalhadas nas páginas, o leitor desconfiará que a resposta pode estar soprando no vento selvagem. Pode ser Dylan. Mas pode ser Whitman.  

São poemas colhidos pela manhã numa dessas caminhadas feitas do suor que irriga a vida. A poesia de Adriana Gama de Araújo chega sem pedir licença e nos arrebata. Eu leio o livro e a ouço cantando. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Sobre os dias de Flip

Estrela Leminski recita poemas do pai no estande da Companhia
 das Letras, enquanto o público filma para postagem nas redes sociais 

Paraty estava transbordante, fria e excessivamente cara. Mas bela. Se por esses dias até o mar andava de ressaca (beijando sem pudor as valas da cidade), quem não haveria de ficar? Há cidades que sabem guardar sua magia mesmo quando tumultuadas, invadidas por hordas de leitores, escritores, livreiros, malucos, poetas de ocasião, poetas de sempre, instagramáveis e ilegíveis. Paraty, nesses dias de Flip, era tudo isso. E também um pouco mais. Era Leminski.

 

Homenagear Paulo Leminski, aquele samurai camicase de Curitiba, foi uma dessas decisões acertadas que só a literatura provoca. Ele, que deslizou seus versos urbanos entre os anos 1980 e 1990, ressurgia agora embalado por reedições cuidadosas e por biografias que esmiúçam sua vida breve e intensa como se ainda houvesse algo a explicar. Jovens de classe média (majoritários entre os frequentadores da Flip) o postam como quem descobre um cometa numa madrugada de insônia. 

 

Lá estávamos, então, nós todos: ele presente em banners, falas, mesas, livrarias temporárias. Eu, em estado de deslocamento no tempo, buscava na memória o Leminski dos meus vinte e poucos anos, quando, ao lado dos amigos Eduardo Júlio, Andréa Oliveira, Mirtes Lopes, Zeca Pinheiro e Lurdinha Castro, empreendemos aquele programa de rádio, em 1991. Era um exercício de escuta e invenção. No final, uma “entrevista aos vivos”, póstuma: perguntas diretas, respostas do além retiradas dos próprios poemas. Leminski respondia com o que tinha de melhor: sua poesia. Foi nossa pequena Flip radiofônica, antes de tudo virar evento, credencial e café gourmet.

 

A 23ª Flip foi um caleidoscópio de temas e presenças. Debates sobre a Palestina, o meio ambiente, o devir negro, a escrita periférica, o feminino insurgente, os corpos LGBTQIA+ exigindo escuta e presença. E havia livros. Muitos. Caríssimos. Comprei alguns, sim, rendido à velha ilusão de que “tê-los é quase como lê-los”. Nos corredores improvisados, escritores eram assediados como se fossem celebridades. Selfies, abraços, pedidos de autógrafo. Uma cena que beirava o kitsch, não fosse ela tão sinceramente desejada por ambos os lados.

 

Uma ala curiosa se destacava entre as tendas: a dos autores e editoras independentes. Fiquei a matutar: os outros seriam, então, dependentes? De quê? De quem? Da benevolência dos conglomerados editoriais? Das políticas culturais erráticas? Da curadoria das grandes vitrines? A dúvida ficou ali, abraçando-me, como nos encontros afetivos que se davam pelas ruas de pedra da cidade.

 

Mas foi fora da programação oficial que a chama acesa por Leminski talvez tenha se propagado com mais liberdade. Na Casa Gueto, realizamos a intervenção Flip-se Quem Puder. Um nome debochado para uma ação oportuna: abrir espaço para a literatura livre, para o livro como ferramenta de subversão e reinvenção. Reunimos poetas, romancistas, artistas e curiosos. Houve leitura, canto indígena, silêncio, risos, pensamento. Não era preciso crachá. A festa foi bonita. Leminski teria engrossado o coro.

 

Enquanto os holofotes se voltavam para as mesas badaladas e as listas de mais vendidos, soubemos habitar a margem, esse lugar cada vez mais fértil da literatura. Porque no fim das contas, como dizia o homenageado: “isso de querer/ ser exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além”.

 

Paraty passou. Leminski deitou e rolou. E nós, seguimos.