quarta-feira, 15 de outubro de 2025

De volta à sala de aula

 


Há poucos meses, na condição de professor convidado, participei da banca examinadora de alguns trabalhos de conclusão do curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Meio sem tempo e já alguns anos fora das salas de aula, acabei topando o gentil convite da professora Maya Felix. E voltei para continuar aprendendo. 

 

Uma das peças apresentadas à época foi a monografia intitulada “A influência da revisão textual na qualidade da produção escrita de trabalhos de conclusão de curso: um estudo de caso na Universidade Estadual do Maranhão”, defendida pela estudante Nataly Pará Santos. Lembro disso agora, no Dia dos Professores, afinal já fui um deles num passado não tão distante assim da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da então Faculdade São Luís (atual Estácio). 


A pesquisa de Nataly partia de um universo aparentemente restrito (o próprio curso de Letras da UEMA), mas desvelava uma questão mais ampla: a fragilidade linguístico-discursiva dos trabalhos acadêmicos, mesmo daqueles agraciados com a nota máxima. Uma contradição que, de tão reiterada, parece ter se naturalizado entre nós.


A autora analisou TCCs aprovados com nota dez, produzidos entre 2021 e 2024 na UEMA, submetendo-os a um crivo quali-quantitativo, pautado por critérios objetivos de correção linguística, como ortografia, pontuação, concordância e regência. O resultado foi ao mesmo tempo perturbador e revelador: 82% dos textos apresentavam erros ignorados pelas bancas avaliadoras, com predominância de deslizes microestruturais, esses pequenos ruídos da língua que, somados, denunciam o enfraquecimento de nossa relação com o texto.


Tais dados sinalizam para um colapso silencioso nos critérios de avaliação acadêmica. Bancas que se pretendem zelosas com a forma e o conteúdo mostram-se, não raro, indulgentes – quando não completamente omissas – diante de falhas que comprometem a própria natureza do discurso científico.


O mérito de Nataly, contudo, vai além da denúncia. A reflexão sobre a ausência da revisão textual nos TCCs desloca o debate para o campo epistemológico da escrita. A revisão, para ela, não é mera depuração gramatical, mas um gesto interpretativo e dialógico, um processo que exige domínio dos gêneros acadêmico-científicos e consciência de que a linguagem é o próprio instrumento de construção do saber.


Ao afirmar que todo texto não revisado é, por definição, inconcluso, Nataly convoca professores, orientadores e discentes a compreenderem a revisão não como apêndice, mas como parte orgânica do processo de escrita, uma etapa de reflexão, de autocrítica e de amadurecimento discursivo.


Outro ponto luminoso de sua pesquisa é a crítica à persistente mitologia da “Atenas Brasileira”, esse sumo fundacional que associa o Maranhão a uma excelência linguística. Em vez de reforçá-lo, Nataly o desarma com contundência: demonstra que, mesmo nos espaços de maior prestígio intelectual, a precariedade textual é regra, não exceção. É uma crítica que atinge em cheio o coração do nosso narcisismo cultural, ao lembrar que a erudição proclamada pouco resiste à leitura atenta de nossos próprios textos.


A autora da monografia oferece caminhos. Propõe a criação de disciplinas específicas de revisão textual, a capacitação de orientadores para uma leitura linguístico-discursiva mais criteriosa e a revisão dos próprios instrumentos de avaliação das bancas. São propostas urgentes, sobretudo se quisermos formar professores e pesquisadores capazes de lidar com a linguagem não apenas como meio, mas como matéria viva do pensamento.


O trabalho de Nataly Pará Santos lança luz sobre uma zona de sombra das universidades brasileiras: a conivência com textos mal escritos, ainda que consagrados com a nota máxima. Essa monografia é um lembrete incômodo, mas necessário, de que a excelência acadêmica não se mede apenas pelo domínio do tema, mas pela precisão da palavra.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Um livro sobre escrita literária e inteligência artificial

 


Ela reagiu com um lampejo de espanto quando lhe revelei estar lendo um livro recém-lançado pela Companhia das Letras, dedicado aos efeitos da automação sobre a literatura contemporânea. “Como assim?”, perguntou ela, entre curiosa e incrédula. “Há tantos livros escritos por inteligência artificial?”. Sim, já existe uma série de obras publicadas, escritas com o auxílio da IA, algumas delas até “premiadas” em países como Japão e China. Respondi rapidamente, meio desajeitado. Poderia ter ido mais adiante: no caso do Brasil, jurados de prêmios literários importantes têm sido surpreendidos com obras escritas ou coescritas com inteligência artificial generativa.

 

Escrever é humano – como dar vida à sua escrita em tempo de robôs, de autoria de Sérgio Rodrigues, cronista da língua e da literatura e ficcionista (O brible e A vida futura), é o título do livro que mencionei na conversa. Em pouco mais de cento e noventa páginas, o escritor defende, com paixão e clareza, a natureza visceralmente humana do ato de escrever. Escrever, sustenta ele, é gesto subjetivo, trabalho de alma, de carne e hesitação. Jamais de algoritmo. 

 

Não se trata, contudo, de um libelo contra a inteligência artificial. Sérgio prefere alinhar-se à tradição: recorre a vozes de Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Tchékhov, Orwell, Chimamanda, Ruy Castro, Julián Fuks, Stephen King e tantos outros para iluminar o território humano da criação. Ainda que busque escapar à forma de um manual, o livro percorre com inventividade e humor as sendas da literatura, mostrando o que nenhuma máquina jamais poderá alcançar: imaginação, emoção, desejo, e aquela trama invisível que faz pulsar os personagens no interior de uma ficção.

 

Logo nas primeiras páginas, o autor adverte: este é um livro para quem ama a leitura – contos, romances, histórias – mesmo que não pretenda escrever, mas alimente o desejo compreender o ofício, essa delicada artesania que insufla vida às palavras.

 

O clichê, esse refúgio das máquinas, é apontado como o oposto da boa literatura. Para Sérgio Rodrigues, o texto literário exige a centelha da originalidade, a faísca que, ao tocar o leitor, o faz sentir “a sensação sempre perturbadora de que algo verdadeiro acontece ali, pela primeira vez, no próprio ato da leitura”.

 

O autor recomenda a reescrita como gesto essencial, o ato de lapidar até que o texto respire por si. Valoriza as minúcias, o detalhe sobre o genérico: “O que uma história não diz é tão importante quanto o que ela diz – se não for mais.” E, num sopro de normalidade, adverte: nada é proibido na literatura. Embalado por bons exemplos, o livro toca na precisão vocabular, no ritmo, na pontuação, na escolha da voz narrativa.

 

Em Escrever é humano, Sérgio Rodrigues desenha três caminhos possíveis ao aspirante a escritor: o do profissionalismo, que encara gêneros e mercado; o do voto de pobreza, em que se aceita o tempo que a escrita consome e o despojamento que ela impõe; e o da renúncia, quando se reconhece que talvez o talento ou o fôlego não bastem para suportar o calvário da criação.

 

O escritor observa que a inteligência artificial “sabe muito, mas não sabe que não sabe”.  E é justamente nessa falha luminosa que habita o espaço da nossa resistência.

 

Ao fim, Escrever é humano nos reconduz ao essencial: escrever como atitude, como forma de estar no mundo, de dialogar, de reconhecer o outro. O legado maior é este: não permitir que as máquinas nos convençam de nossa dispensabilidade. Com elegância, rigor e uma intimidade rara com o idioma, Sérgio Rodrigues oferece-nos um farol: escrever continua sendo um ato humano e, por isso mesmo, insubstituível.

 

Nada mais oportuno, neste Dia do Escritor, do que essa leitura. O próprio autor confessa ter apressado a publicação de sua obra, amadurecida ao longo de anos, diante do frenesi dos robôs que agora rondam o mercado editorial. É um livro para escritores e aspirantes, mas também para leitores atentos, estudantes, professores e todos os que ainda creem que a literatura é um milagre do humano.

 

Mariana, a minha interlocutora que manifestou espanto com a proliferação da escrita de livros por meio da IA, dá sinais de que é uma leitora de fôlego, e talvez bem mais exigente que eu. Ela sabe, nessa jornada pelos sertões da literatura, que não se constrói Diadorim (e sua multidão de personagem) com o auxílio de robôs, e que não se atravessa a aridez do Liso do Sussuarão montado no lombo de um algoritmo.  

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

De bocas e corações...



Joãozinho Ribeiro* 

 

Sobre a palavra palavra, escrevi um dia sob a forma de canção registrada definitivamente pelo parceiro Zeca Baleiro: “Se eu cometo uma canção / E me sinto impune e são / A palavra sempre tem razão”.

Nesta última semana, ao me deparar com o novo livro do meu amigo e parceiro musical Félix Alberto Lima, que eu chamo carinhosamente de poeta das águas do Corda, fiquei simplesmente tomado por uma cumplicidade cultural sem precedentes. 

Assim como quem se associa para cometer delitos poéticos gostosos e, ao mesmo tempo, é declarado culpado pelo conjunto da obra resultante desta parceria inusitada, feita de palavras e paixões.

Com o coração na boca é o título do seu quarto livro de poemas, que acomete os leitores desavisados de uma carência múltipla dos órgãos na primeira impressão, quer dizer, leitura. Pra ser lido sem moderação ou restrições. 

Fi-lo, como costumava asseverar aquele presidente complicado, de uma tacada só. Não deu pra fazer intervalos.

“no circo do metaverso / o poema na boca / feito bolas de fogo / em círculo / não vale um versículo.” (BOCA QUENTE)

A palavra impera e conduz a poesia, como se estivesse a proferir sussurros e ruídos capazes de provocar nas bocas o que as cabeças deixaram de imaginar possível. O livro permite ser aberto em qualquer página, apesar do ordenamento autoral em oito partes sequenciais, incitando o leitor a cometer buscas irreverentes e desordenadas...

“uma colheita de meninos / adorna a tarde da lagoa. / os carros passam velozes na avenida / alheios ao cio do mangue.” (SOBRESSALTO).

O poeta está completo, com o coração exposto nos poemas que constroem coletivamente uma possibilidade da palavra ir além, feito um desenho das horas de contemplação, nem sempre passiva; porém precisa, para descrever uma paisagem que invade as existências e transborda para o coração de quem resolve compartilhar deste instante mágico do desalinhamento do verbo e do sujeito...

“pode ser um susto / o pulo do gato um salto / ou de repente a vida / engasgada de futuros / o coração entre os dentes / a respiração ofegante / um tijolo no peito / o tempo sem tempo / no exílio do afeto.” (TEMPO SEM TEMPO).

Como diria nosso cantador Josias Sobrinho: “as palavras que chegam não vão ajudar” (“Queima Madeira”, parceria sua com Augusto Bastos). Talvez, não para traduzir o sentimento dos intentos do poeta Félix em suas integralidades; porém, para assegurar uma certa cumplicidade, digna de um coração encharcado de afetos e de uma boca ansiosa por compartilhá-los com a humanidade em volta.


* poeta e compositor

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A intimidade sob as dobras da imaginação


Há livros que nos pedem menos pressa, pé no freio. Na intimidade de um ser estranho (editora Mondru) é um desses. O novo livro de poemas de Adriana Gama de Araújo, que será lançado nesta sexta-feira, às 18h, na livraria Poeme-se, ao lado de Catálogo de acasos, de Franck Santos, e O livro das nuvens, de Samuel Marinho, percorre espaços pequenos e cotidianos – a casa, o jardim, a rua deserta – para encontrar neles uma voz.

A poesia de Adriana se constrói a partir do mínimo. Versos como “Cantar a rodoviária/ vazia”, “cantar/ ainda hoje/ mesmo agora/ que ninguém nos ouve”, além de outros tantos, delatam a moenda lírica e insurgente da autora. O que poderia passar despercebido ganha corpo no conjunto das palavras. Movimento sutil de quem insiste em cantar mesmo quando não há plateia, de quem transforma a solidão em matéria de poesia.

No livro anterior, Metábole (Urutau, 2021), Adriana já experimentava derrubar a cerca ao redor do próprio umbigo, com palavras. Era o desafio do silêncio. Agora, nesse virtuoso desafio de atravessar o deserto, a poeta parece buscar outro movimento: “dar outro corpo ao tempo”, “esticar o corpo além da alma”. São versos que se aproximam de uma meditação, mas sem perder o pulso concreto da experiência.

Os poemas são curtos, diretos, quase anotações de um passeio sob a luz incessante das cores quentes do dia. Têm a força do que é dito sem ornamento: “num estranho estado de vida/ acima do tempo/ acima da guerra”. Há neles uma disposição para observar o mundo e devolvê-lo em estado bruto, mas não frio – antes, em estado de vigília.

Adriana lê poesia como quem reza, como quem cantarola uma canção antiga de Roberto. Tem ritmo próprio, e talvez por isso sua voz encontre ressonância: não procura convencer, apenas permanecer. Quem a acompanha de perto percebe que sua poesia chega de mansinho, e não nos deixa. A poesia fica. Só as estrelam mudam de lugar. 

Na intimidade “alheia”, a poeta conversa, indaga, provoca, muda de direção, fazendo o uso natural dos recursos da língua, nua e sem nome. No rebuliço das folhagens espalhadas nas páginas, o leitor desconfiará que a resposta pode estar soprando no vento selvagem. Pode ser Dylan. Mas pode ser Whitman.  

São poemas colhidos pela manhã numa dessas caminhadas feitas do suor que irriga a vida. A poesia de Adriana Gama de Araújo chega sem pedir licença e nos arrebata. Eu leio o livro e a ouço cantando. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Sobre os dias de Flip

Estrela Leminski recita poemas do pai no estande da Companhia
 das Letras, enquanto o público filma para postagem nas redes sociais 

Paraty estava transbordante, fria e excessivamente cara. Mas bela. Se por esses dias até o mar andava de ressaca (beijando sem pudor as valas da cidade), quem não haveria de ficar? Há cidades que sabem guardar sua magia mesmo quando tumultuadas, invadidas por hordas de leitores, escritores, livreiros, malucos, poetas de ocasião, poetas de sempre, instagramáveis e ilegíveis. Paraty, nesses dias de Flip, era tudo isso. E também um pouco mais. Era Leminski.

 

Homenagear Paulo Leminski, aquele samurai camicase de Curitiba, foi uma dessas decisões acertadas que só a literatura provoca. Ele, que deslizou seus versos urbanos entre os anos 1980 e 1990, ressurgia agora embalado por reedições cuidadosas e por biografias que esmiúçam sua vida breve e intensa como se ainda houvesse algo a explicar. Jovens de classe média (majoritários entre os frequentadores da Flip) o postam como quem descobre um cometa numa madrugada de insônia. 

 

Lá estávamos, então, nós todos: ele presente em banners, falas, mesas, livrarias temporárias. Eu, em estado de deslocamento no tempo, buscava na memória o Leminski dos meus vinte e poucos anos, quando, ao lado dos amigos Eduardo Júlio, Andréa Oliveira, Mirtes Lopes, Zeca Pinheiro e Lurdinha Castro, empreendemos aquele programa de rádio, em 1991. Era um exercício de escuta e invenção. No final, uma “entrevista aos vivos”, póstuma: perguntas diretas, respostas do além retiradas dos próprios poemas. Leminski respondia com o que tinha de melhor: sua poesia. Foi nossa pequena Flip radiofônica, antes de tudo virar evento, credencial e café gourmet.

 

A 23ª Flip foi um caleidoscópio de temas e presenças. Debates sobre a Palestina, o meio ambiente, o devir negro, a escrita periférica, o feminino insurgente, os corpos LGBTQIA+ exigindo escuta e presença. E havia livros. Muitos. Caríssimos. Comprei alguns, sim, rendido à velha ilusão de que “tê-los é quase como lê-los”. Nos corredores improvisados, escritores eram assediados como se fossem celebridades. Selfies, abraços, pedidos de autógrafo. Uma cena que beirava o kitsch, não fosse ela tão sinceramente desejada por ambos os lados.

 

Uma ala curiosa se destacava entre as tendas: a dos autores e editoras independentes. Fiquei a matutar: os outros seriam, então, dependentes? De quê? De quem? Da benevolência dos conglomerados editoriais? Das políticas culturais erráticas? Da curadoria das grandes vitrines? A dúvida ficou ali, abraçando-me, como nos encontros afetivos que se davam pelas ruas de pedra da cidade.

 

Mas foi fora da programação oficial que a chama acesa por Leminski talvez tenha se propagado com mais liberdade. Na Casa Gueto, realizamos a intervenção Flip-se Quem Puder. Um nome debochado para uma ação oportuna: abrir espaço para a literatura livre, para o livro como ferramenta de subversão e reinvenção. Reunimos poetas, romancistas, artistas e curiosos. Houve leitura, canto indígena, silêncio, risos, pensamento. Não era preciso crachá. A festa foi bonita. Leminski teria engrossado o coro.

 

Enquanto os holofotes se voltavam para as mesas badaladas e as listas de mais vendidos, soubemos habitar a margem, esse lugar cada vez mais fértil da literatura. Porque no fim das contas, como dizia o homenageado: “isso de querer/ ser exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além”.

 

Paraty passou. Leminski deitou e rolou. E nós, seguimos.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Rua 28 de Julho – onde quase tudo é desterro

Socorro de Sena em frente ao Bar Meu Bem, na rua 28 de Julho, Centro

No calendário, o dia 28 de julho acende o “orgulho cívico” do Maranhão: a data em que a então província, hesitante e orgulhosa, enfim aderiu em 1823 à Independência do Brasil. Mas, em São Luís, o nome também habita o chão, gravado nas pedras de uma rua do Centro Histórico que carrega, no corpo de ladeira e azulejos, outra espécie de libertação: a da vida noturna, da música alta, do riso fácil e das mulheres que fizeram daquele território um palco de resistências e desejos.

 

A rua 28 de Julho, também conhecida como rua do Giz, é um corredor de memórias que sobrevive ao sol e ao sal da ilha. O bairro do Desterro, de onde ela brota, nunca foi apenas geografia: foi refúgio e trincheira. Durante décadas, entre os anos 1940 e 1980, o casario colonial testemunhou uma fauna urbana intensa: boates, cabarés, casas de prostituição e bares onde artistas, intelectuais, funcionários públicos e empresários dividiam mesas com prostitutas e marinheiros, todos unidos pela mesma fome de madrugada. Ali, a ZBM, a malafamada Zona do Baixo Meretrício, pulsava com o coração descompassado da cidade, enquanto na praça vizinha os sinos da igreja batiam o outro lado da vida.

 

Ainda hoje, quando a noite cai, parece possível ouvir o eco das vozes que se perdiam pelo beco. Há uma espécie de magnetismo que mistura decadência e charme, algo que as paredes úmidas não escondem: manchas de histórias que resistem ao tempo e às restaurações turísticas.

 

No número 426, o Bar Meu Bem é uma cápsula dessa boemia sobrevivente. Simples, com suas paredes decoradas por fotos de família, bandeirinhas de São João, pôsteres de Ivete Sangalo e Grazi Massafera, máscaras de cazumbá e frases de caminhão que parecem ter parado ali para descansar, o bar serve uma cerveja que, dizem os fiéis e a placa estampada na fachada, é a mais gelada da cidade. Dona Socorro de Sena, 65 anos, é quem segura o balcão e a memória. Foi ela quem, ao chamar a todos de “meu bem”, batizou o bar e a si mesma. Há mais de 20 anos, sua voz faz o contraponto suave aos fregueses que chegam ao fim da tarde, quando o reggae escorre das caixas de som e as primeiras mulheres aparecem, lembrando que a rua ainda sabe seduzir.


Vista interna do Bar Meu Bem

“Fiquei curiosa porque ela estava tomando uma cerveja e foi logo me chamando de meu bem, convidando-me para entrar”, conta Mariana Tsukamoto, professora da USP de passagem pela cidade. “Essa rua é charmosa e tem um protagonismo feminino que me encanta.” Mariana, sentada no batente da calçada, observa o movimento como quem lê uma história aberta: percebe que, muito antes da palavra “empoderamento” ganhar as redes sociais, aquelas mulheres já haviam escrito, com o próprio corpo, uma narrativa de autonomia, ainda que à margem de uma sociedade hipócrita, racista e seletiva.

 

Mariana, professora paulista em visita à 28 de Julho


A rua 28 de Julho é, no fundo, isso: um território que resiste ao apagamento. Entre o brilho dos azulejos e as sombras do passado, ela lembra que a independência, seja de um país ou de uma mulher, nunca se conquista de uma vez. É preciso defendê-la todos os dias, entre goles de cerveja, músicas que atravessam décadas e a coragem de permanecer onde muitos prefeririam que nada restasse.

 


Filhas do Desterro


Tudo é Desterro. Tudo é 28 de Julho. O sobrado de número 535 da rua da Estrela envelhece como uma ferida aberta. O tempo escorre pelas paredes. Ali, o que os mapas chamam de casarão é, visto por dentro, um cortiço, palavra antiga dos livros que nunca deixou de estar presente na realidade brasileira. 

 

Nove famílias comprimem-se em pequenos quartos, uma geografia precária onde cada centímetro sustenta biografias inteiras. No meio de tantas histórias está a de Maria de Jesus Costa, a Dijé, preta, 67 anos, três filhos, uma neta, quase três décadas de permanência.


Maria de Jesus, a Dijé, sob ameaça de despejo


Permanência que agora é ameaça: herdeiros de Elizete Mendes Cateb (por meio do inventariante Mauro Costa Mendes Cateb) exigem o imóvel de volta, e o processo arrasta-se pelos tribunais com a lentidão dos que não precisam de urgência. O recado, no entanto, já chegou: até dezembro, todos terão de sair. Depois, o casarão será posto à venda. À venda! Um lugar que jamais teve dono visível agora exige papéis, registros, carimbos.


Fachada do casarão da rua da Estrela, no bairro do Desterro


Dijé não fala disso enquanto mexe o molho da macarronada. Não tem tempo. É sábado, 26, e 100 quentinhas precisam ser entregues a pessoas que ela insiste em não chamar de “moradores de rua”. Só voltamos a nos falar no dia seguinte, agora com mais tempo, sentados na calçada da Cafua das Mercês. 

 

“Não é preciso estar na rua para sentir fome”, diz. “A pandemia da Covid deixou outra, mais funda: a pandemia da miséria. Gente sem casa, sem trabalho, sem cabeça.” Já tem alguns anos o grupo Terça Nobre cozinha, distribui, resiste. No Desterro. É uma forma de dizer: estamos aqui, mesmo que ninguém queira ver.

 

Conheci Dijé em agosto de 2006, durante o I Encontro Regional Norte/Nordeste de Profissionais do Sexo Feminino, no Convento das Mercês. Ela estava ali no início das lutas, abrindo caminhos. Voltei a encontrá-la agora por indicação da amiga Helena Galiza, arquiteta e árdua defensora do patrimônio arquitetónico e de um projeto de habitação popular do Centro Histórico de São Luís.   

 

Quase um século e meio depois de publicada a primeira edição de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, a cena repete-se em outra cidade: um casarão antigo, gente pobre, gente preta, a engrenagem da exclusão girando intacta. O ambiente que moldava destinos no romance do escritor maranhense, no Rio de Janeiro do século XIX, ainda persiste: quem não tem endereço não tem documento, não tem emprego, não existe. “Moradia é direito, não favor”, diz Dijé. “Sem gente morando, o Centro Histórico vira fachada morta. Para que ele viva, precisa de nós.”

 

Palavras no corpo


Pelas ruas do Desterro há regras que nenhum decreto escreveu: mulher não pode apanhar; filho não ergue a mão contra pai; idoso não é para ser violentado. Uma disciplina mínima e severa, nascida da falta. O Estado não chega, então criam-se leis próprias. A sobrevivência impõe sua própria moral.

 

Maria de Jesus carrega no corpo marcas mais antigas que o casarão. Aos 12 anos, foi abusada por quem deveria protegê-la. “Não tive infância. Era um tempo em que o homem podia tudo, e a vítima era sempre culpada.” Ela diz sem hesitar, sem suavizar, mas também sem pedir absolvição. Transformou a dor em ferramenta: presidiu a Associação das Profissionais do Sexo Feminino do Maranhão (Aprosma), coordena há dez anos a Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores do Sexo (CUTS) e ajudou a fundar o Coletivo Por Elas Empoderadas, com ativo perfil nas redes sociais. 

 

A prostituição, que lhe fora estigma, tornou-se bandeira.

 

“Eu não tenho problema com a palavra prostituta”, afirma. “Mas hoje há outros nomes: trabalhadora do sexo, profissional, acompanhante. Muitas fazem ‘jobs’, usam plataformas digitais, cuidam da própria segurança. O mundo mudou, e nós também.”

 

Dijé aprendeu a endurecer sem perder a ternura. “No nosso Coletivo, não se admite que mulher apanhe, que homem trepe e não pague, que profissional seja tratada como lixo. Elas têm de ocupar o lugar que escolherem. E informação errada não passa. Somos intocáveis.”

 

O Desterro, que já teve ruas dedicadas à prostituição, viu essas mulheres migrarem: Oscar Frota, Anel Viário, São Cristóvão. Mas Dijé ficou. Ficou no mesmo casarão que agora quer expulsá-la. Sabe que sua permanência é mais que disputa por paredes: é disputa por existência.

 

Porque antes de ser morada, seu corpo foi território de homens. Hoje é também trincheira. O cortiço pode ruir, o despejo pode chegar, mas há uma diferença: desta vez, há voz. E a voz de Maria de Jesus Costa não é eco de parede envelhecida. É pedra lançada. Ela não está mais sozinha. E não tem vocação pra desterrada.   

sábado, 19 de julho de 2025

De volta à casa

 

Voltar a Barra do Corda, depois de tanto tempo, foi como abrir uma velha caixa de brinquedos esquecida no sótão da vida. A poeira das décadas não conseguiu embaçar o brilho das lembranças. Pelo contrário: ao reencontrar a cidade onde vivi os primeiros doze anos da minha existência – os mais puros, talvez os mais felizes – tudo me pareceu ainda mais nítido, como se o tempo tivesse feito questão de preservar, com zelo, cada susto, cada rua, cada cheiro.

 

Nasci em Presidente Dutra, é verdade, mas foi em Barra do Corda que aprendi a caminhar pelo mundo. E caminhar por suas ruas, agora, mais de vinte anos depois da última visita, foi como reconhecer o próprio rosto no espelho: os traços estão lá, mas há rugas novas, silêncios outros, um jeito diferente de dizer o mesmo nome. Fui a Barra como integrante da Caravana da Academia Maranhense de Letras – mas voltei como filho, como menino, como memória que se reencontra com o próprio berço. De quebra, ainda recebi o título de Cidadão de Barra do Corda. Algo que já havia dentro de mim, e agora está em papel passado.

 

Não consegui esconder a emoção ao subir, mais uma vez, o alto do Calvário. A cidade, lá embaixo, se estendia como uma confissão: nua, sim, mas ainda enfeitada por aquele laço alaranjado que o entardecer costuma atar entre céu e telhados. Vi-me menino outra vez, correndo com os pés descalços pelos caminhos de barro, observando a vida passar como um rio. E lá estavam eles – o Mearim e o Corda – ainda enamorados, ainda se encontrando como se fosse a primeira vez, no Porto Guajajara. Um milagre cotidiano que, aos olhos da infância, parecia eternidade.


 

Entrei na Igreja Matriz com o coração indomável. Ali fui coroinha. Ali toquei sinos como quem rege os próprios sonhos. Era a orquestra da minha vida – desafinada às vezes, mas sempre ruidosa, distraída. Alegre. No alto da torre, um menino franzino comandava os sinos com a autoridade de um maestro de calças curtas. E era como se, naquele tempo, toda a cidade me ouvisse.

 

Houve também reencontros de carne e osso, como com dona Oclair, velha amiga da minha mãe, sentinela da memória atrás do balcão do seu armazém de secos e molhados, ainda de pé, ainda altiva aos 93 anos. Visitei a memória do jornal O Pássaro, nascido das mãos inquietas e letradas de meu saudoso irmão Antônio Carlos, impresso em mimeógrafo, com tinta e sonho, na última quadra dos anos 1970. E ouvi relatos que me fizeram lembrar as tertúlias do Clube Guajajara, com a banda Os Populares do Ritmo e as amigas de minhas irmãs em vestidos floridos, girando pelo salão.

 

Matei a saudade andando devagar, olhando para tudo com os olhos de agora e o coração de antes. A praça Melo Uchôa, hoje em obras, tentava esconder-se atrás dos tapumes, como quem esmorece ante a involução dos tempos. As ruas, antes calçadas de pedra, agora cobertas de asfalto, pareciam estranhas, mas não hostis. O convento dos frades capuchinhos, o Colégio Pio XI, o prédio da Funai... todos com novas fachadas ou simplesmente ausentes. A arquitetura da infância, onde o mundo cabia inteiro, agora reformada, redesenhada ou apagada.



Sim, o mundo mudou. Barra do Corda mudou. E eu também. Mas há algo que permanece: o silêncio cheio de sons da memória, a saudade que tem cheiro de terra molhada pela neblina nas noites de julho, o menino que ainda habita em mim e que, por alguns dias, voltou a correr sobre a piçarra e a se jogar nas águas frias do rio Corda no descuido generoso de uma tarde de calor.  

 

Não sei se foi uma visita ou um mergulho. Só sei que voltei mais inteiro. Como quem toca as margens do próprio umbigo e entende que o tempo, como os rios, dá muitas voltas antes de se perder por aí. De mar em mar.