quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Sobre poesia e resistência



A poesia de Joãozinho Ribeiro é um cântaro de leveza, de bons presságios. A Safra de quarentena não é um grito de socorro, mas um canto de otimismo, um bálsamo extraído das profundezas da melancolia e da desesperança. Para Joãozinho Ribeiro, a poesia foi e será sempre o pão de cada dia. É ela quem alimenta o seu ativismo cultural de mais de quatro décadas.

A poesia de Joãozinho Ribeiro também é música, cachaça, e um unguento poderoso que soube curar as feridas do isolamento. O cenário de pandemia, mais do que um eixo temático, torna-se um pretexto para expor em versos certeiros, com inventividade e delicadeza, as fissuras da humanidade. A quarentena aqui é pano de fundo para um diálogo poético sobre relações humanas, solidariedade e resistência.

O poeta é um inconformado renitente com o estado de coisas, que desafina a flauta da hipocrisia, que brada com elegância pelo afeto, que luta pelo amor colaborativo, pela terra repartida, pelos meninos de Gaza, pela saúde do planeta.

A Safra de quarentena é também o eco das panelas vazias que choram silenciosas, não do alto dos edifícios de neon e led, mas do escuro das periferias.

Há em curso um desconcerto da humanidade, mas nem por isso o poeta esmorece na esquina dos poemas. Como se carregando um alaúde sobre os ombros, ele vai ensaiando a ciranda da vida e tocando em desalinho a valsa da fé inextinguível no homem.

Com o desejo imenso de sarar o mundo, Joãozinho Ribeiro sai por aí pintando paisagens reais e imaginárias, como se a poesia fosse um grafite no muro, o exercício de sensatez e equilíbrio que, de um verso a outro, vai de uma corrente de benquerer a uma cantiga de maldizer. 

Safra de quarentena é uma obra que está além da pandemia. Porque ainda nos faz crer nas utopias e na capacidade transformadora da arte. E porque prevalecerá a luz da verdade onde houver distopia. 

Joãozinho Ribeiro faz uso da linguagem do povo, fluida, para fundar a sua poesia concisa, sem rodeios ou contorcionismos semânticos. Um violeiro refinado, urbano, bramindo aqui e ali por uma felicidade urgente, mas nunca uma felicidade superficial, instantânea, como um post de rede social.

Safra de quarentena é uma obra para quem, mesmo em tempos de desolação, ainda se permite acreditar na invenção do futuro, que pode ser agora. É um convite para encontrar, nos escombros, a colheita da paixão, da sorte, da rebeldia, dos lírios e de algum delírio.  

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Boom: sobre cartas, literatura e política na América Latina

 

Las cartas del Boom é um livro de 2023 da editora espanhola Alfaguara com ingredientes superlativos que ajudam a compreender a importância da literatura na segunda metade do século passado, no chamado Boom Latino-americano, com suas variáveis socioculturais e políticas. Encontrei-o por acaso numa viagem recente pela Argentina, um último exemplar perdido na prateleira da livraria na região central de Mendoza. 

 

A publicação de 562 páginas, ainda inédita no Brasil em língua portuguesa, merece uma atenção especial dos leitores porque reúne 207 correspondências trocadas entre o argentino Julio Cortázar, o mexicano Carlos Fuentes, o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llossa, de 1955 e 2012, além de ensaios, entrevistas, artigos, manifestos e outros documentos de valor histórico.    

 

Organizado também por um quarteto – Carlos Aguirre, Gerald Martin, Javier Munguía e Augusto Wong Campos –, o livro lança luz sobre amizades duradouras, literatura, encontros, desencontros, posicionamentos políticos, rupturas e o processo criativo de alguns dos escritores mais influentes da América Latina. A publicação da obra deve-se, sobretudo, a Carlos Fuentes, o primeiro a escrever uma carta desse compilado, endereçada a Julio Cortázar em novembro de 1955. Fuentes foi uma espécie de “agitador postal” e manteve guardadas e preservadas, por mais de cinco décadas, as correspondências trocadas com os três amigos.   

 

Com quase 700 notas de rodapé que ajudam a clarear o labirinto do Boom Latino-americano, o livro revela como os autores, em diferentes momentos, discutem ideias, compartilham rascunhos e a escrita em evolução de algumas obras icônicas, apontam críticas e trocam conselhos sobre os desafios de suas carreiras literárias. García Márquez, por exemplo, submete a considerações dos amigos, por meio de cartas, o desenvolvimento dos primeiros capítulos de sua obra mais conhecida. “Até já encontrei o título do meu novo romance: Cem anos de solidão. O que você acha?”, indaga García Márquez a Fuentes em outubro de 1965. O livro sobre a saga da família Buendía só seria publicado dois anos depois.     

 

As correspondências compreendem quatro fases distintas de projeção literária e das relações de amizade entre os quatro escritores: o período embrionário do Boom, de 1955 a 1966, quando despontam os primeiros romances de impacto, como A região mais transparente (Fuentes), Ninguém escreve ao coronel (García Márquez), A cidade e os cachorros (Vargas Llosa) e O jogo da amarelinha(Cortázar); o auge do Boom, de 1967 a 1975, quando grandes obras como Cem anos de solidão e Conversa na catedral dão à literatura latino-americano visibilidade internacional; a desintegração do quarteto, em 1976, capítulo definido no livro como “o fim da festa”, após desentendimentos políticos e o soco, em público, de Vargas Llosa em García Márquez; e o pós-Boom, de 1977 a 2012, com um número cada vez menor de cartas trocadas entre eles. 

 

Essa cuidadosa curadoria faz com que o leitor mergulhe nas idiossincrasias e vulnerabilidades dos quatro escritores, e como eles influenciaram e foram influenciados uns pelos outros ao longo de décadas. “Não é apenas uma compilação de cartas, mas uma grande narração em primeira pessoa que vai do singular ao plural”, dizem os editores. Cortázar menciona em longa carta o entusiasmo com a leitura, em primeira mão, de A casa verde, de Vargas Llosa. Este (em única carta dele no livro dirigida a Cortázar, de maio de 1972) revela sua decepção com a atitude do amigo ao deixar de escrever para a revista Libre, levado, segundo relata, por “maniqueísmos e mal-entendidos” em relação a Cuba.

 

No livro, há menções a projetos colaborativos que, embora nem sempre concretizados, mostram o desejo dos escritores de trabalhar juntos em antologias ou revistas literárias que pudessem divulgar a literatura latino-americana para um público mais amplo. Em cartas, a tônica do Boom sinalizava que cada um dos autores escrevia capítulos de um mesmo romance: o romance da América Latina. “Não percebes que cada bom romance latino-americano te liberta um pouco, te permite delimitar com exaltação o teu próprio terreno, aprofundar o que é teu com a consciência fraterna de que os outros estão completando a tua visão, dialogando, por assim dizer, com isso?”, escreveu Fuentes a Cortázar em julho de 1967. 

 

O que foi o Boom? 

 

Um dos aspectos mais instigantes de Las cartas del Boom é a maneira como as correspondências refletem a atmosfera política e social das décadas de 1960 e 1970. Os escritores abordam questões como os efeitos das revoluções em Cuba e Nicarágua, as ditaduras no Chile e Argentina e a luta pela democracia em outros países da América Latina. Opiniões e debates sobre esses temas revelam o papel ativo que Cortázar, Fuentes, Vargas Llosa e García Márquez desempenharam não apenas como autores, mas como intelectuais engajados na realidade sociopolítica da região – instável, complexa, turbulenta. O olhar sobre essa realidade dentro e fora da literatura fez eclodir um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.  

 

O Boom destacou-se como período de produção de obras inovadoras, do surgimento de novos autores e do reconhecimento internacional de escritores latino-americanos. O movimento, ou momento, ajudou a quebrar convenções do romance tradicional e deu a ele estruturas não lineares e múltiplos caminhos de leitura e interpretação. O realismo fantástico, caracterizado pela combinação verossímil de elementos da imaginação popular com a realidade crua, tornou-se a pedra de toque do Boom Latino-americano, nome utilizado pela primeira vez em 1966, em artigo de Luis Harss no jornal Primera Plana, de Buenos Aires – até então falava-se na imprensa de um “Novo romance” da América Latina. 

 

Não apenas a Cortázar, Fuentes, Vargas Llosa e García Márquez estava reduzido o Boom. Havia outros autores no entorno da cena, como o chileno José Donoso, o cubano Guillermo Cabrera Infante e Juan Goytisolo (nascido na Espanha). Mas foram os quatro primeiros, como se depura na leitura das cartas, e por tudo o que escreveram ou disseram, os principais expoentes do Boom. 

 

Consideravam-se, sobretudo, e apesar das diferentes nacionalidades de cada um, escritores latino-americanos. Em princípio, o triunfo da revolução cubana, a identidade cultural e a aproximação com o socialismo foram o ponto de convergência do quarteto. “Cuba esteve desde então, e para o resto de suas vidas, no centro de suas preocupações e paixões”, explicam os organizadores do livro. Os anos 1960 foram a fase mais fecunda do Boom, pela carga de utopia do momento: os olhos do mundo estavam voltados para o que acontecia na política (as insurreições) e na literatura de um continente periférico e até então “desconhecido”. Os grandes romances foram escritos, coincidentemente, nos primeiros dez anos após a queda de Fulgencio Batista em Cuba (1959).   

 

Não por acaso, 1967 foi o ano mais abundante na troca de correspondências entre os quatro escritores. Foram 32 cartas que circularam entre as cidades de Paris, Saigon, Londres, Veneza, Barcelona e Cidade do México. Foi o ano de alguns prêmios importantes e da publicação de obras como Cambio de piel e Cem anos de solidão. García Márquez e Vargas Llosa haviam se encontrado pela primeira vez em agosto daquele ano, em Caracas, e um mês depois participaram de dois encontros memoráveis organizados pela Faculdade de Arquitetura no anfiteatro da Universidade Nacional de Engenharia, na capital peruana. 

 

A gravação dessa entrevista pública em Lima resultou na publicação, no ano seguinte, por iniciativa do dramaturgo peruano José Miguel Oviedo, do livro Duas solidões: um diálogo sobre o romance na América Latina, editado pela Record no Brasil somente em 2021. Traduzido por Eric Nepomuceno, o livro serve também de bússola para o leitor que pretende desbravar os caminhos do Boom Latino-americano. O diálogo expõe claramente coincidências (até então) sobre as visões de mundo de Vargas Llosa e García Márquez. Ambos falam, entre tantas outras coisas, do preconceito (existente antes do Boom) com a literatura da América Latina e da discussão se, naquele momento, havia um boom de escritores ou um boom de leitores.      


 

Mas García Márquez dá a senha em carta a Carlos Fuentes, em dezembro de 1967. De Barcelona, Gabo diz que o livro Cem anos de solidão já está na sua quarta edição e segue “vendendo como salsicha”. Segundo ele, isso seria a comprovação de que a América Latina transformou-se em um dos grandes mercados de livro do mundo. “Vejo que o famoso Boom não é tanto um boom de escritores, mas um boom de leitores.” Essa opinião de García Márquez seria compartilhada por Cortázar pouco tempo depois numa revista peruana: “O Boom não foi feito pelos editores, como se insinua agora, mas pelos leitores latino-americanos, que em pouco mais de uma década entraram na mais formidável forma de consciência jamais vista em nossos países.” 

 

O legado do Boom

 

Em carta a Vargas Llosa, Fuentes diz, em 1964, que o futuro do romance está na América Latina. Segundo ele, na América Latina tudo ainda está por ser dito ou nomeado e é onde, por sorte, “a literatura surge de uma necessidade e não de um apelo comercial ou de uma imposição política”, como acontece em outras regiões. Entre os muitos legados do Boom, o principal deles foi o impacto duradouro – e a repercussão mundo afora – provocado pela literatura latino-americana, forjada numa realidade assombrosa, “descomunal”, que mistura desigualdades sociais, surtos de imaginação, golpes militares e identidade cultural. 

 

Em pronunciamento em Estocolmo, na Suécia, ao receber o Nobel de literatura pelo conjunto de sua obra, em 1982, García Márquez narra os efeitos dessa realidade tecida na América Latina em pleno Boom: “Nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nos sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.” Em Eu não vim fazer um discurso (Record, 2011), que reúne o pronunciamento completo da cerimônia do Nobel e muitos outros, há percursos líricos que nos levam também aos escaninhos do Boom Latino-americano.   

 


Para além das cartas, os quatro escritores do Boom encontraram-se uma única vez. Foi em agosto de 1970, no sul da França. No dia 14, assistiram em Avignon a uma representação da peça El tuerto es rey, de Fuentes, e no dia seguinte, em Saigon, participaram de uma “pachanga espasmódica” na casa de Cortázar, onde se falou muito sobre a situação de Cuba e a criação da revista Livre


Na foto, os autores do Boom com um grupo de amigos em Saigon

  

O Brasil e o Boom

 

Las cartas del Boom não aborda diretamente o assunto, mas já faz algum tempo uma dúvida paira no ar, reforçada agora após a leitura do livro: por que o Brasil, com uma profícua produção literária, esteve à margem desse fenômeno editorial latino-americano? O idioma poderia ser a principal razão desse isolamento, afinal o Brasil é o único país da América Latina a adotar a língua portuguesa. Isso, entre outras hipóteses, ajudou a limitar a circulação de obras de autores brasileiros nos mercados editoriais de língua espanhola. Romancistas como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Jorge Amado e Rubem Fonseca – ou os poetas Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar –, embora tenham publicado grandes livros entre as décadas de 1960 e 1970, ao contrário dos autores do Boom foram pouco alcançados pelos mercados latino-americano e europeu. 

 

Encoberto na fleuma da identidade cultural, o Brasil sempre virou as costas para os demais países da América Latina. Por preconceito, desprezo ou ignorância política, o Brasil nunca se assumiu como país latino-americano. Além disso, as realidades sociopolíticas dos países hispano-americanos estavam mais interrelacionadas. Alguns movimentos contra ditaduras, como ocorreu em Cuba, por exemplo, criaram um senso de solidariedade e conexão entre escritores desses países. Já o Brasil palmilhou um caminho político e social diferente, pouco integrado à narrativa comum do Boom.

 

Em períodos de golpes de estado e ditadura militar, enquanto muitos escritores latino-americanos exilados optaram por continuar suas carreiras literárias no exterior – como é o caso dos autores do Boom, no México, na França, na Inglaterra ou na Espanha –, os escritores brasileiros enfrentaram dificuldades para alcançar o reconhecimento internacional. 

 

Em algumas correspondências do livro há certa preocupação dos autores do Boom com temas relacionados ao Brasil. Em carta a Vargas Llosa, em dezembro de 1967, García Márquez relata de Barcelona sua tristeza ao obter informação sobre o autor de Grande sertão: veredas pelos jornais espanhóis. “A única má notícia encontrei casualmente nesse mesmo recorte [de jornal] de que te falo, perdida num canto de página: morreu o velho Guimarães Rosa.” Na correspondência, Gabo diz que conheceu Rosa pessoalmente e que a divulgação da morte pela imprensa o deixou “um tanto perturbado”.    

 

O fim da festa

 

O crepúsculo editorial do Boom, segundo estudiosos da literatura latino-americana, ocorreu após a publicação dos romances O outono do patriarca, de García Márquez, e Terra nostra, de Fuentes, no segundo semestre de 1975. Não pela qualidade das obras, mas pelo contexto político em asfixia na América Latina. O epitáfio teria sido escrito pelo próprio escritor mexicano: “A circulação de livros, que era a base do chamado Boom dos anos 1960, foi brutalmente interrompida pela agressão generalizada dos militares do Cone Sul contra tudo que cheirava a livro, imaginação e ideias.”  

 

Mas o fim “humano” do Boom, como dizem os organizadores do livro, ficou marcado pelo improvável murro desfechado por Vargas Llosa no olho esquerdo de García Márquez, em fevereiro de 1976, dentro de um cinema da Cidade do México. Os motivos da agressão jamais foram esclarecidos. Dali em diante abriu-se um fosso de silêncio no quarteto do Boom, a troca de correspondências encolheu substancialmente. O livro reproduz apenas duas cartas escritas no ano de 1976. 

 

Vargas Llosa e García Márquez aproximaram-se incialmente por meio de cartas. Foram 20 meses de correspondência intensa até se conhecerem pessoalmente em Caracas, em agosto de 1967, um mês antes da entrevista pública realizada na universidade de Lima. Os dois compartilhavam naquele momento uma visão comum sobre o papel da literatura em refletir e transformar a realidade da América Latina. Nasceria ali uma amizade fraterna, de respeito mútuo. Nas cartas, discutiam aspectos de suas narrativas, trocavam críticas e compartilhavam suas visões sobre literatura, política e sociedade. E chegaram até a ensaiar a ideia de escrever juntos um romance contando a história da guerra entre a Colômbia e o Peru, iniciada em 1932.

 

A amizade foi tão estreita que em 1971 Vargas Llosa publicou o ensaio García Márquez: história de um deicídio, uma espécie de declaração de amor ao colombiano e uma análise monumental da obra Cem anos de solidão. O livro, que serviu como tese de doutoramento do escritor peruano na Universidad Complutense de Madrid, e publicado no Brasil pela Record em 2022, é um dos estudos mais completos sobre a literatura de Gabo e sobre a narrativa construída em torno de Macondo, definida por Vargas Llosa como “um acontecimento literário de exceção”. 


 

Sobre o episódio na Cidade do México, uma das hipóteses é que o rompimento teria sido causado por divergências políticas. García Márquez foi, desde o princípio e sempre, apoiador fervoroso da Revolução Cubana e de Fidel Castro, enquanto Vargas Llosa, em dado momento, passou a criticar duramente o regime cubano e adotou posições mais liberais. Essas divergências poderiam ter exacerbado tensões entre os dois escritores. O peruano, segundo o escritor e tradutor Eric Nepomuceno, passou primeiro de uma esquerda radical para uma posição mais moderada, depois para a social-democracia até desembarcar no neoliberalismo extremo.   

 

De início, Vargas Llosa passou a considerar García Márquez condescendente demais com arbitrariedades da esquerda, especialmente em Cuba – e mais precisamente no caso da prisão do poeta Heberto Padilla. Depois passou a definir o escritor colombiano como “o cortesão” de Havana. Outra teoria sugere que questões pessoais, possivelmente envolvendo suas respectivas vidas familiares, contribuíram para o desentendimento. Embora os detalhes permaneçam no campo da especulação, a intensidade da reação de Vargas Llosa, ao aplicar um soco no amigo, sugere que havia algo além da política ou da literatura.  

 

Dos quatro escritores do Boom Latino-americano, Vargas Llosa é o único vivo, hoje aos 88 anos. Em 2010, o peruano recebeu o prêmio Nobel de literatura. Julio Cortázar morreu em 1984, aos 70 anos, em Paris; Carlos Fuentes, em 2012, aos 84 anos, na Cidade do México; e Gabriel García Márquez, em 2014, aos 87 anos, também na Cidade do México.   

 

Em entrevista ao jornal El País, em julho de 2017, Vargas Llosa fala sobre como recebeu a notícia da morte de García Márquez e o que representou o Boom Latino-americano para a literatura. “[Sobre a morte de García Márquez] É uma época que acaba, como com a morte de Cortázar ou a de Carlos Fontes. Eram escritores magníficos, mas também foram grandes amigos, e o foram em um momento no qual a América Latina chamou a atenção do mundo inteiro. Como escritores, vivemos um período em que a literatura latino-americana era uma credencial positiva. Descobrir que, de repente, sou o último sobrevivente dessa geração e o último que pode falar em primeira pessoa dessa experiência é algo triste.” 

 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Quando Chico Buarque bateu um bolão em São Luís

Chico em show no Espaço Cultural, no Centro de São Luís 

Poucas vezes o cantor e compositor Chico Buarque esteve no Maranhão. Sabe-se que o aniversariante de hoje passou por São Luís no início da década de 1970 com a turma do Pasquim, e algum tempo depois andou pelos bares da Praia Grande bebendo tiquira na companhia de João do Vale. Mas foi no dia 7 de fevereiro de 1988, um domingo, que o artista fez a sua última apresentação na capital maranhense.

 

Era o show Francisco, dirigido por Naum Alves de Souza, que vinha de uma longa temporada no Canecão, no Rio de Janeiro. Um espetáculo para não se esquecer. Estávamos experimentando os primeiros anos da redemocratização: nas universidades falava-se de incerteza e o fim das utopias, o rock nacional embalava as pistas da juventude, as ruas pulsavam com movimentações de sindicatos e greves e o país estava a poucos meses de ganhar a sua Constituição Cidadã. 


Cartaz de divulgação do show de Chico

 

No Espaço Cultural, casa de eventos dirigida pelo Grupo Mirante, Chico abriu a noite cantando Desalento e Rita para uma plateia de quase cinco mil pessoas. Francisco, o LP lançado em 1987, trazia como carro-chefe a canção O Velho Francisco (uma crônica de Chico Buarque sobre um ex-escravo que já idoso rememora suas desventuras), a música de encerramento do show. Segundo o próprio compositor, O Velho Francisco serviu de inspiração para o romance Leite derramado (Companhia das Letras, 2009). 

 

Mas, no meio de tudo, o público maranhense foi presenteado com muitas pérolas do farto repertório de Chico. Com o Mestre Marçal ele dividiu o microfone cantando Sem compromisso e Partido alto. Batucou na caixa de fósforo e ensaiou um rebolado desenxabido antes de engatar o Samba do grande amor. E logo enveredou por uma sequência mais intimista com Gota d’água e As vitrines.  

 

Depois, segundo registrou o jornalista Pergentino Holanda, no jornal O Estado do Maranhão, Chico Buarque incorporou o cronista feminino em clássicos como Suburbano coração ('Se enroscam persianas/Louças se partirão/O amor está tocando/O suburbano coração...'), Palavra de mulher e Todo o sentimento. E fez dueto com Marisa Fossa cantando o bolero Iolanda.      

 

Chico cantou As minhas meninas, para falar da relação com suas músicas, suas criaturas femininas, desvalidas, malandras, politizadas, suburbanas. E convidou ao palco Vinícius Cantuária para interpretar com ele Ludo real e Sílvia, o tempero pop da noite no Espaço Cultural. E cantou mais – Acorda amorEstação derradeiraRio 42O que será (À flor da pele) e João e Maria – até desaguar num bis esticado como festa de Carnaval com Não existe pecado ao sul do Equador e Vai passar

 

E passou! E se passaram mais de três décadas daquele show. Era um Chico Buarque no auge de seus 43 anos, prenhe de inventividade e entusiasmo no palco. E uma plateia em estado de graça.    

 

Lembrar de um show que o tempo não apaga é uma forma de reverenciar os 80 anos do artista que encanta e continua embalando os sonhos de muitas gerações. Eu estava lá. Viva Chico Buarque! 

 

 

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Abaixo, transcrevo texto do meu irmão Antônio Carlos Lima, publicado no jornal O Estado do Maranhão do dia 10 de fevereiro de 1988, em que ele descreve a passagem de Chico Buarque por São Luís, do palco ao campo de futebol e a travessia para Alcântara. 

 

 

Um Chico vitorioso e feliz

 

Antônio Carlos Lima

 

Ao contrário de Joana, da velha canção, que errou na dose e errou no amor, Chico Buarque, seu criador, começou o ano de 1988 com o pé direito. E, desde a temporada bem-sucedida do show Francisco, no Canecão carioca, até sua fulgurante passagem por São Luís, neste começo de semana, ele só tem somado acertos. Acertou na dose de emoção ministrada ao seu público fiel; acertou no amor sem limites que, num repertório digno de antologia, cantou durante mais de uma hora, na noite de domingo.

 

Segunda-feira, plenamente refeito do desgaste físico provocado pelo show no Espaço Cultural, depois de uma viagem no catamarã ‘Mariana’ a Alcântara, Chico lidera uma versão desajeitada de seu time Politheama, no Anil, enfrenta o aparentemente imbatível combinado local e, numa jogada de craque, marca um dos dois gols que lhe garantem a vitória. Duas horas depois, ao lado da mais ardente torcedora, sua mulher Marieta Severo, tripudia sobre os adversários, durante jantar no restaurante Varanda, no Monte Castelo. Fernando Sarney, autor do gol do combinado, replica, jurando que seu time fizera corpo mole em homenagem ao compositor.


Time de Chico Buarque tem, entre outros, César Roberto, Cláudio Popó e Toinho

 

Chico, sorriso aberto, exibe um ar triunfante e debochado e pede confirmação de suas jogadas à mulher e às duas filhas, Sílvia e Luiza, que, à maneira de Terta, de Chico City [referência à personagem da antagonista de Chico Anysio, em programa da TV Globo], respondem em coro: “Verdaaaade…”.

 

Se é bom de bola ou não, que o diga Nacor Arouche, que apita a pelada e, por conta de sua polêmica arbitragem, é esculhambado em campo, como todo juiz brasileiro que se preza. A verdade é que se Chico Buarque fosse bom em jogadas como o é na música, o rei do futebol não se chamaria Pelé. Como qualquer peladeiro, ele grita com os adversários, reclama dos companheiros (berra contra Airton Abreu e César Roberto, dá pitos no roqueiro Vinícius Cantuária, Perfeito Fortuna, Cláudio Popó e Fernando Belfort, elogia os passes de Toinho) e não poupa a mãe do juiz.

 

Uma galera nervosa, composta por Ronald Pinheiro, a atriz Cristina Aché, Tetê Murad, Marieta Severo, Lucialice Sarney, Pergentino Holanda, José Aniesse, Deco Soares, Tutuca e Heitor Heluy, acompanha a performance, de olhos esbugalhados. O combinado local não perde em nervosismo: Luís, Chico Carvalho, Alim Maluf, Tininho, Alex Brasil, Carlos Eduardo, Ernane Sarney, os compositores Chico Maranhão e Gerude suam a cântaros e, ofegantes, tentam, inutilmente, segurar o empate, até que Vinícius faz o segundo gol para o time de Chico. 


Combinado do Narigão, que enfrentou o time de Chico Buarque


Encerrado o jogo, o autor de Carolina se comporta como craque vencedor: distribui autógrafos mil a dezenas de crianças que gritam seu nome nas laterais do gramado.

 

O homem está em paz com a vida. Na tarde de segunda-feira, ele é dos primeiros a chegar ao late Clube, na Ponta d'Areia, para aguardar o catamarã comandado pelo lobo do mar Zacarias. No barzinho de Fernando Lameiras, ele exalta o sabor da Cola Jesus, um refrigerante exclusivo de São Luís, que descobriu há 15 anos. As velas são içadas para o início de uma pequena aventura. Destino: Alcântara.


Chico Buarque e Fernando Sarney após o jogo

 

Compenetrado, Chico aboleta-se com Marieta e as duas filhas no lugar menos recomendado para quem desconhece os segredos da Baía de São Marcos: a cesta de nylon que fica no centro do catamarã. Meia hora depois, defronte à Ilha do Medo, a maresia mostra-lhe que deve procurar lugar mais seguro. Ondas de mais de três metros arremessam contra o barco e molham o grupo, que, para espantar o medo, canta em coro um velho sucesso. De Chico, naturalmente: "Madalena foi pro mar/Eu fiquei a ver navios...”. Perfeito Fortuna, Cristina Aché, o produtor Naum Alves de Souza e Vinicius Cantuária parecem não estar nem aí.


Chico Maranhão em conversa com Chico Buarque

 

A chegada a Alcântara, o deslumbramento inicial, o cansaço da longa caminhada a pé pela ladeira íngreme do Beco do Jacaré. São quatro horas e, após um sol abrasador, vem a fome incontrolável, fome de leão. Os restaurantes estão fechados. Chico conduz as filhas pelo braço, separa-se do grupo e diz que vai à luta. Dez minutos depois, ele chega com a boa notícia: na casa de Josias dos Santos, na rua Direita, ele consegue peixe frito com camarão seco. A hora do rango é uma festa. Chico sorri satisfeito: dá alimento a quem tem fome e água a quem tem sede. A noite está chegando quando todos decidem enfrentar o mar novamente, de volta para casa. A pelada os espera.


Após o jogo, pausa para autógrafos na beira do gramado
 

Foi bom o passeio? Gostou de São Luís, de Alcântara, do futebol, do peixe frito, dos novos amigos? Chico olha para o céu iluminado e deixa escapar um sorriso quase tímido. "Sabe, estou muito feliz". E está mesmo.


Fotos: reprodução do jornal O Estado do Maranhão/José Roberto

segunda-feira, 13 de maio de 2024

As artes plásticas, quase 30 anos depois

Detalhe da obra de Geraldo Frazão

Houve um tempo em que, a cada maio, as artes plásticas floresciam em São Luís. Eram os salões festivos, os concursos de pintura, as mostras coletivas. Maio entrou para o calendário maranhense como o mês mais aguardado por artistas e pela comunidade interessada em arte. Mas a fonte secou em determinado momento, em fins dos anos 1990. E aí se foram quase três décadas de hiato, com alguns eventos isolados, de pouca importância ou repercussão. Quase 30 maios!

 

Na última sexta-feira, porém, a história voltou a ser contada com a abertura da exposição “30 Cores em Maio”, organizada pela Fundação da Memória Republicana Brasileira, no Convento das Mercês. E é necessário abordar, antes de tudo, o aspecto empreendedor da coletiva, ao abrir caminhos para artistas já experimentados e novos nomes das artes plásticas maranhenses, fato por si merecedor de aplausos, haja vista a atonia em que ora se encontram mergulhados o campo criativo e o mercado.


Tela de Alex Soares
 

É digna de registro, ainda, a iniciativa da FMRB ao homenagear, na sala de acesso à mostra “30 Cores de Maio”, três importantes artistas plásticos que o Maranhão perdeu nos últimos dois anos: Dila, Péricles Rocha e Jesus Santos. Três talentos merecedores de toda a nossa reverência.    

 

A nova exposição surge como uma oportunidade para que os artistas mostrem que estão vivos, atentos, com suas leituras de mundo e multiplicidade de linguagens, sejam elas antigas, contemporâneas ou futuristas. 

 

E o que se observa no segundo pavimento do Convento das Mercês? É o monóculo remexendo na nossa ancestralidade. É o lixo reciclado gritando de uma tela contra o novo “empalafitamento” das grandes cidades agora cobertas pela ira das águas. É a inteligência artificial furando a bolha da arte, revisitando a lenda da serpente e clamando por um lugar ao sol numa parede de galeria. São cacos de azulejos despedaçando réstias de esperança de uma cidade que não respeita a sua história. 

 

Voltar ao Convento das Mercês para apreciar uma exposição de arte é, em certa medida, um reencontro afetivo com a Coletiva de Maio, que balançou a cena cultural maranhense dos anos 1990. “30 Cores em Maio” é uma versão mais compacta, menos arrojada – e talvez por isso mais organizada. Porque os tempos são outros, agora é a vez da efemeridade. 

 

Mas é importante ressaltar que o espaço do Convento das Mercês continua sagrado, a atmosfera de entusiasmo da classe artística é quase a mesma. Muitos que ali estiveram como protagonistas, há 30 anos – como expositores, curadores ou espectadores – retornam agora ao velho bairro do Desterro com indisfarçável senso de curiosidade, comparando passado e presente, medindo em vão os traços de inventividade de hoje e de ontem.

 

Na noite de abertura de “30 Cores em Maio”, a curadoria – formada por Marco Antônio Lima, Miguel Veiga, Betânia Pinheiro, Luciana Barros, Silvânia Tamer, Régis Gella, Ana Luiza Nascimento, Eliézer Moreira Filho e Yure Logrado – elegeu os três trabalhos em destaque na exposição, de autoria dos artistas Marlene Barros (1º lugar), Moura Júnior (2º lugar) e Márcio Vasconcelos (3º lugar). Como em qualquer premiação, houve quem discordasse da escolha. Como houve também quem questionasse a limitação da mostra em apenas 30 obras.    

 

Nem todas as peças em exposição são criações primorosas. Existem estagnações, arte repisada e algum equívoco. Algo natural numa mostra coletiva. Mas há também trabalhos de forte impacto criados por velhos conhecidos dos apreciadores de arte, como Mondêgo (e a sua fúria silenciosa em traços crus e cores sombrias), Geraldo Frazão (refugiado numa felicidade clandestina, talvez londrina) e Cláudio Costa (vergastando nossa vocação de gente cordial e colonizada); além de bons ventos anunciados por Alex Soares, Cláudio Lima, Antônio Vermelho, Namibya Aick, Joy Brasilino e Romana Maria. 


Obra de Mondego

Uimar Júnior não perderia a oportunidade de vender o seu peixe em público. Vestiu-se de estandarte para reclamar da exclusão da categoria “performance” – da qual foi um dos principais vencedores nas primeiras edições da Coletiva de Maio – na mostra atual do Convento das Mercês. “O que é arte?”, bradava o cartaz estampado sobre uma espécie de mortalha vestida pelo artista.   

 

A performance de Uimar Júnior

No mais, há de se louvar a iniciativa da FMRB, hoje quase uma ilha (dentro da nossa ilha) em matéria de realização de eventos culturais. Não é preciso repetir o passado. A Coletiva de Maio hoje repousa no fundo do poço central do Convento. Não poderia ser diferente. 

 

Que a exposição “30 Cores em Maio” não olhe para trás. Que ela cresça no formato e, sobretudo, em qualidade. Remoçada. E não desapareça pelos próximos 30 anos!   

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

1998, o ano da Mystical Roots


Primeiro CD da Mystical Roots: gravado, com capa criada por
Cláudio Vasconcelos, mas projeto foi abortado pela banda


A história da banda e do disco jamais lançado

 

Por Eduardo Júlio

 

Em uma noite de um sábado do mês de janeiro do longínquo ano de 1998, uma das principais bandas de reggae de São Luís de todos os tempos, a Mystical Roots, anunciou a produção de seu primeiro disco. A divulgação do aguardado lançamento foi feita com a promoção de um show no bar Ponta da Ilha, localizado no finzinho do bairro Ponta d’Areia.

 

O show da Mystical Roots teve como objetivo arrecadar dinheiro para ajudar no financiamento da produção do disco. Quem comprava o ingresso a R$ 8 teria direito ao CD, bastava guardar o bilhete para trocá-lo pela bolachinha quando estivesse pronta. Quem optou por pagar R$ 3, limitou-se a assistir ao show.

 

O Ponta da Ilha era uma casa noturna, localizada nas instalações do antigo Clube de Regatas, um espaço dedicado a praticantes de atividades náuticas. Depois de ter se tornado bar, o estabelecimento já havia se chamado Zion. Posteriormente, ainda ganhou outras denominações como Dreadzone e Alternativo, até se tornar o extinto Trapiche na metade dos anos 2000, famoso clube de reggae para o público de classe média.

 

Um detalhe: nos anos 90, aquela parte do litoral da ilha ainda estava longe de ser conhecida como Península da Ponta d'Areia, denominação dada por construtores e empresários do setor imobiliário, quando a área se tornou o metro quadrado mais caro de São Luís.

 

Na época, depois de várias formações, a Mystical Roots era composta por Luciana Simões (vocal), Júnior Echoes (vocal e guitarra), Dario Ribeiro (guitarra), Ricardo Jansen (baixo), Alfredo Luís (percussão) e Fran Bouéres (bateria).

 

Talvez tenha sido a formação mais coesa e madura (no âmbito musical) dessa primeira fase, que durou de 1995 a 1998, período em que a banda realizou muitos shows na capital maranhense. Em 1999, o grupo seguiria para São Paulo, quando trocou novamente de formação, permanecendo somente, entre os integrantes mais longevos, Júnior Echoes, Luciana Simões e Ricardo Jansen.

 

Ao lado da Guetos e da Conexão Rasta (embrião da Nego Bantu, que depois se chamaria Mano Bantu, liderada pelo baixista Gérson da Conceição, morto em 2019), a Mystical Roots formava a tríade de bandas de reggae da capital, que em quase todos os finais de semana animava as noites do público jovem da cidade. Nessa época, a famosa Tribo de Jah já havia conquistado o mundo.

 

SEM SOM

 

Uma curiosidade sobre o disco que motivou o show da Mystical Roots no Ponta da Ilha reside no fato de que o prometido CD jamais chegou a ser lançado. Pelo menos, não aquele que estava no forno. A gravação feita de forma analógica em um estúdio de São Luís nunca agradou aos integrantes do grupo e, após várias tentativas de salvá-lo, o projeto foi descartado.

 

O baixista da banda, Ricardo Jansen, conta que algumas tentativas de melhorar as frequências do som do álbum foram feitas, mas nenhum dos resultados foi satisfatório. “Quando gravamos, havia a tecnologia, mas não existiam técnicos especializados em São Luís. Faltava a masterização do disco e, depois de algumas interferências feitas quando já estávamos em São Paulo, ninguém mais quis mexer, porque o som esperado não veio, não saiu”, contou.

 

O disco continha alguns covers e músicas autorais conhecidas do público que frequentava os shows da banda, como Pisa na fulô (João do Vale), Ando meio desligado (Mutantes), Xeque-mateSkaindo foraNão sei Meia palavra bas.

 

Segundo Ricardo Jansen, ao longo dos anos, a matriz da gravação foi perdida e ninguém mais sabe onde foram parar os registros originais daquele álbum.

 

Júnior Echoes lembra que, no ano da gravação, em 1998, as fitas originais analógicas chegaram a ser levadas para a masterização, em São Paulo, no New Studio de Luís de Bone, tecladista de O Terço, lendária banda nacional de rock progressivo. O trabalho teria passado pelas mãos de Fábio Haddad, na época técnico de som de Rita Lee, mas ninguém conseguiu salvar o registro.

 

Quando a Mystical Roots já estava radicada em São Paulo, no ano posterior, uma nova gravação foi feita com o produtor do grupo Racionais MCs, Milton Sales (apresentado à banda pelo DJ Joaquim Zion), mas o resultado também não agradou. Na época, a Mystical dividia uma casa sem mobília em Guarulhos com a Mano Bantu, que também gravou com o referido produtor.

 

A banda em rápida passagem pelo Rio, no período de gravação de novela da TV Globo

Então, depois de esperar mais um tempo, a Mystical Roots realizou um terceiro registro, desta vez com a produção assinada por Reghata Mulambo e pela própria banda, cujo resultado convenceu os integrantes.

 

Assim, em 2003, a banda finalmente lançaria o seu primeiro disco de fato, intitulado Pras bandas de lá..., gravado no estúdio Space Blues em São Paulo, com repertório um pouco diferente do trabalho feito em São Luís. “Quem guardou o cupom naquela noite de 1998, recebeu o nosso disco anos depois. Pelo menos, imagino que isso tenha acontecido”, lembrou de forma bem-humorada Junior Echoes.

 

Sobre o disco Pras bandas de lá..., o baixista Ricardo Jansen comenta com satisfação: “Tenho muito orgulho desse disco. Acho que a gente conseguiu apresentar um trabalho de grande qualidade. Todas as pessoas envolvidas fizeram o seu papel”, disse.

 

O álbum foi gravado ao lado dos novos integrantes na época: Márcio Diniz (vocal e teclado), Ivan Monteiro (guitarra solo) e Giuliano Laurenza (bateria).

 

Junior Echoes também recorda com alegria o resultado do registro definitivo. “A gente entrou com tanta segurança e o estúdio era muito equipado. Tinha todos os recursos que a gente queria. Os caras gostavam de reggae e possibilitaram a gravação de faixas dub, inclusive. Daí, a gente bateu o martelo e pensou: esse disco, agora sim, a gente pode mostrar para o público com orgulho”.

 

Antes da separação, a banda ainda emplacaria, em 2004, a música Pras bandas de lána novela das sete da TV Globo, Da cor do pecado, em parte filmada em São Luís, que teve no elenco estrelas como Reynaldo Gianecchini e Taís Araújo.

 

Assim como as demais bandas de São Luís, cuja base do som era o ritmo jamaicano, a Mystical Roots possuía um repertório singular formado por composições autorais e covers escolhidos a dedo. O som misturava reggae e ska, com rock, dub e células de ritmos da cultura popular local como o cacuriá, por exemplo.

 

O grupo também conquistou um público fiel, que o acompanhava por todos os lugares por onde a banda tocava. Eram jovens de classe média, que curtiam o ritmo jamaicano, além de rock e de música brasileira. Praianos, notívagos, artistas e universitários faziam parte dos seguidores cativos da banda.

 

Uma parte era órfã do clube de reggae Espaço Aberto, localizado no São Francisco, que havia entrado em declínio justamente em 1995, ano em que o circuito de shows das bandas de reggae havia se ampliado na capital.

 

VÁRIOS SHOWS

 

Naquele sábado de pré-carnaval, o Ponta da Ilha estava lotado e a Mystical Roots retribuiu ao público, tendo realizado um dos shows mais animados e intensos daquele período, exatamente como conta Júnior Echoes: “Lembro que foi uma noite muito especial, porque a gente se preparou muito para esse show. Além disso, a casa estava lotada e quem pôde contribuir, contribuiu. A gente ficou muito feliz com o resultado e estávamos em um ritmo crescente”.

 

Em 1998, a banda ainda faria outros shows para divulgar a gravação do disco. Houve também uma apresentação antológica, no mês de setembro, na cidade de Alcântara, no bar e pousada Tijupá, durante a Festa de São Benedito, que praticamente marcou a despedida do grupo das terras maranhenses.

 

Um grande público jovem se deslocou até a cidade histórica, separada por mar da ilha de São Luís, tanto para ver a banda quanto para curtir o festejo que tem como atração principal as apresentações dos grupos de tambor de crioula, que atravessam a madrugada por todo o final de semana.

 

“Eu tenho uma ótima lembrança daquela época, porque mudou completamente a minha vida e, depois, nunca mais tive um grupo tão grande de amigos. Lembro de tudo com muita felicidade em meu coração”, completou Junior Echoes.

 

CAPA

 

Ao contrário das fitas originais do álbum, que parecem perdidas, o designer Cláudio Vasconcelos, autor do primeiro projeto da capa do disco, guardou o layout original do que seria o encarte do CD e comenta com alegria a confecção do trabalho. Inclusive, a foto da banda foi feita pelo irmão dele, o premiado fotógrafo Márcio Vasconcelos. “Foi um trabalho que fiz com muito carinho, com muito zelo, mas, na época, se não me engano, a banda não aprovou, não sei por qual razão”, contou Cláudio.


Com fotos de Márcio Vasconcelos,
encarte do disco que não vingou


Junior Echoes nega a rejeição à capa. “Nós adoramos. A questão é que aquele disco não chegou a ser lançado. Então, tivemos que optar depois por outro projeto”.

 

A capa do primeiro projeto teria uma foto do grupo em forma de Shiva, o deus indiano de muitos braços e apresenta os rostos de todos os integrantes, com o de Luciana Simões ao meio, em destaque.

 

A imagem também remete à capa do primeiro disco dos Secos e Molhados.

 

JAMAICA BRASILEIRA

 

Nos anos 90, São Luís respirava reggae. O ritmo tocava em todos os lugares: nas rádios, nas paradas de ônibus, nos botecos de esquina, nas casas noturnas, nos estacionamentos. Era um gênero musical ouvido por quase todos os segmentos sociais

 

O embrião da banda foi o grupo Pitty e o Som da Jamaica, cujo vocalista era o cantor e compositor Pitty de Alcântara, falecido recentemente durante a pandemia. Ele permaneceu pouco tempo no grupo, sendo substituído pelas vocalistas Luciana Simões, que cantava na banda de rock Bota o Teu Blues Band, e Adriana Miranda, atualmente em carreira internacional com o nome Danna Miranda.


Foto da formação inicial da banda, com Adriana, Luciana e Júnior Echoes 

Curiosamente, o nome Mystical Roots foi dado por um andarilho jamaicano de nome Steve Jackson, que chegou a acompanhar a banda quando o grupo ensaiava no casarão do Laborarte, no Centro Histórico de São Luís.

 

Logo após as primeiras mudanças de formação, a banda passou a se apresentar de forma constante nos bares de São Luís da época. Cronologicamente, passou pelo La Rotisserie (São Francisco - 1995), Kingston (Ponta do Farol – 1995), Peixe na Telha (Ponta do Farol – 1996), África Brasil (Litorânea – 1996), Antigamente (Praia Grande - 1997), Ponta da Ilha (Ponta d’Areia – 1998), Bar do Nélson (Litorânea – 1998), Creòle (Ponta d’Areia), entre outros.

 

Além dos integrantes já citados, vários músicos e artistas passaram pelo grupo, a exemplo de Vicente Belaglovis (teclado); Celsinho Leal (teclados); Augusto Junior (guitarra); Athos Lima (guitarra); Marinaldo Marques (percussão) e André (percussão).

 

A Mystical Roots se apresentou em vários estados do Brasil e foi destaque na programação da segunda edição Maranhão Roots Reggae Festival, em 2003.