segunda-feira, 29 de setembro de 2025

De bocas e corações...



Joãozinho Ribeiro* 

 

Sobre a palavra palavra, escrevi um dia sob a forma de canção registrada definitivamente pelo parceiro Zeca Baleiro: “Se eu cometo uma canção / E me sinto impune e são / A palavra sempre tem razão”.

Nesta última semana, ao me deparar com o novo livro do meu amigo e parceiro musical Félix Alberto Lima, que eu chamo carinhosamente de poeta das águas do Corda, fiquei simplesmente tomado por uma cumplicidade cultural sem precedentes. 

Assim como quem se associa para cometer delitos poéticos gostosos e, ao mesmo tempo, é declarado culpado pelo conjunto da obra resultante desta parceria inusitada, feita de palavras e paixões.

Com o coração na boca é o título do seu quarto livro de poemas, que acomete os leitores desavisados de uma carência múltipla dos órgãos na primeira impressão, quer dizer, leitura. Pra ser lido sem moderação ou restrições. 

Fi-lo, como costumava asseverar aquele presidente complicado, de uma tacada só. Não deu pra fazer intervalos.

“no circo do metaverso / o poema na boca / feito bolas de fogo / em círculo / não vale um versículo.” (BOCA QUENTE)

A palavra impera e conduz a poesia, como se estivesse a proferir sussurros e ruídos capazes de provocar nas bocas o que as cabeças deixaram de imaginar possível. O livro permite ser aberto em qualquer página, apesar do ordenamento autoral em oito partes sequenciais, incitando o leitor a cometer buscas irreverentes e desordenadas...

“uma colheita de meninos / adorna a tarde da lagoa. / os carros passam velozes na avenida / alheios ao cio do mangue.” (SOBRESSALTO).

O poeta está completo, com o coração exposto nos poemas que constroem coletivamente uma possibilidade da palavra ir além, feito um desenho das horas de contemplação, nem sempre passiva; porém precisa, para descrever uma paisagem que invade as existências e transborda para o coração de quem resolve compartilhar deste instante mágico do desalinhamento do verbo e do sujeito...

“pode ser um susto / o pulo do gato um salto / ou de repente a vida / engasgada de futuros / o coração entre os dentes / a respiração ofegante / um tijolo no peito / o tempo sem tempo / no exílio do afeto.” (TEMPO SEM TEMPO).

Como diria nosso cantador Josias Sobrinho: “as palavras que chegam não vão ajudar” (“Queima Madeira”, parceria sua com Augusto Bastos). Talvez, não para traduzir o sentimento dos intentos do poeta Félix em suas integralidades; porém, para assegurar uma certa cumplicidade, digna de um coração encharcado de afetos e de uma boca ansiosa por compartilhá-los com a humanidade em volta.


* poeta e compositor

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