Há livros que nascem no tempo certo. Outros, como o Almanaque Guarnicê (Clara Editora/Edições Guarnicê), preferem o desvio, a dobra, o atraso que dá sentido à memória. Publicado em 2003, vinte anos depois do nascimento da revista que o inspirou, o almanaque é menos um compêndio e mais uma pulsação remanescente de uma juventude que resistiu – e existiu – no momento em que a ditadura começava a soltar as rédeas de sua mão de ferro.
O Guarnicê, suplemento cultural que estreou encartado no jornal O Estado do Maranhão em plena temporada de descompressão política, não era só um projeto gráfico, jornalístico ou literário. Era também um gesto coletivo de ousadia. Um levante de criatividade em tempos nos quais a esperança e o sarcasmo dividiam a mesma mesa de bar.
Na edição de estreia, os editores do Guarnicê carregavam nas páginas o brilho do improviso, da cultura esfacelada, do risco como linguagem. E esse brilho, como que por teimosia, ressurgiu duas décadas depois impresso nas páginas do almanaque, como se fosse possível escutar ali as gargalhadas ao fundo, no canto do olho do texto.
Escrever sobre essa história – que não é apenas uma sucessão de edições, mas um estado de espírito – foi uma experiência que me devolveu o frescor do tempo em que tudo ainda era quase possível. Havia um fôlego juvenil, sim, mas também uma lucidez intuitiva combinada com uma anarquia despretensiosa e disruptiva: sabíamos que estávamos registrando uma época e, ao mesmo tempo, intervindo nela. A reportagem que costura o Almanaque Guarnicê fora empreendida com a leveza necessária para não aprisionar em categorias o que é essencialmente movimento, fluxo, inventividade.
A narrativa não segue ordem cronológica. Nem poderia. Seria uma traição à alma errante da revista. Os relatos, entrevistas e registros se distribuem como num caleidoscópio. Tudo se move: os nomes, os sons, as imagens. O leitor caminha entre as colunas tortas de uma São Luís que era, simultaneamente, palco e personagem, território e teatro. Ideia e aldeia. Está tudo lá. Ou quase tudo. Laborarte, Pedra de Cantaria, Rabo de Vaca, Projeto Pixinguinha, Maria Aragão, Rock in Rio, Diretas Já, Projeto Grande Carajás, Boi Barrica, Marimbondos de fogo, Aza do Maranhão, Madre Deus, Mirante FM, Chacal, Poeme-se, Baú de Cartuns… E tantos outros sopros que formaram o espírito de uma década marcada pela distração e pelo desejo de mudança.
O Almanaque Guarnicê não é arqueologia. Não há resgate! Há arte de montagem. O livro tenta compor/recompor um tempo que insiste em permanecer vivo em quem dele tirou uma casquinha, um fino – ou em quem, mesmo sem ter vivido, se reconhece em suas entrelinhas. A ilha, no almanaque, é só uma máquina de edição. Um território onde o passado se mexe, como escrevi no prólogo, e recusa o silêncio.
A entrevista-chave com os idealizadores do Guarnicê – Joaquim Haickel, Celso Borges, Roberto Kenard, Paulo Coelho e Érico Junqueira Ayres – é o eixo por onde passam muitos dos fios dessa tapeçaria oral e afetiva. Ali se cruzam o jornalismo, a poesia, o cinema, a política, as artes gráficas, a trama, o drama, a ironia. Aquela ironia que nos mantinha a salvo da resignação.
Nas palavras de Mário Prata, que prefacia a obra, essa turma foi feita da matéria mais improvável e necessária: “sobreviventes do velho ofício de transformar o banal das conversas de botequim em bacanal de ideias, de extrair poesia do miolo de pote, de subverter o traço para alcançar o riso...”. Isso não é hosana. É confissão.
O texto relaxado fazia do Guanicê uma armadilha precária, subversiva. E essa precariedade era condição da liberdade. A ausência de recursos, longe de limitar, alargava a criatividade. A revista se fez com o que havia – e, sobretudo, com o que não havia: verba, patrocínios que não vingavam, mas exigiam espaço – às vezes no lugar de um poema.
E, ainda assim, o Guarnicê floresceu. Como planta que nasce no asfalto. Teve altos e baixos, acertos e desastres. Às vezes errático, às vezes certeiro, o suplemento oscilava entre a limitação dos meios e o excesso de ideias. Produziu 45 edições num tempo em que a precariedade era regra. Mas isso nunca garantiu coerência editorial nem propósito claro. E talvez aí resida o que foi a revista: um corpo em trânsito, atravessado por tensões, colagens e improvisos.
O livro Almanaque Guarnicê não foi (e não é) um projeto de continuação ou celebração. Está mais para um documento feito com os restos que o tempo não apagou. Um esforço para entender o que havia ali – nas entrelinhas, nos ruídos, nos impasses e também nos lampejos. O almanaque recompõe um percurso fragmentado, sem costura definitiva, e talvez só funcione mesmo como um exercício de leitura lateral da época.
Não há lição, nem modelo a seguir. O que o almanaque oferece é uma travessia possível por um tempo em que se escrevia com mais urgência do que método, mais desejo do que direção. E isso, longe de heroísmo, é só matéria bruta da aventura da juventude. O resto é lenda.
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