Há uma delicadeza quase clandestina nas livrarias de Paris. Percorrendo as prateleiras, o olhar do leitor não depara apenas com capas bem diagramadas, títulos sedutores ou lombadas que gritam silenciosamente sua existência. Há algo mais. Um bilhete. Um post-it colado à capa, rabiscado à mão, com letras ligeiras, quase apressadas, como quem quis registrar uma urgência: a urgência de compartilhar uma revelação. Um lembrete!
Esse pequeno pedaço de papel, em amarelo, azul, verde ou rosa, carrega mais que tinta: carrega cumplicidade. Ali, alguém, talvez um livreiro apaixonado pela boa literatura, decidiu sussurrar ao leitor que aquele livro merece ser visto, folheado, desejado. Não se trata de marketing, de algoritmos, de pop-ups ou de promoções impositivas do mundo digital. É algo anterior, artesanal, íntimo. Uma espécie de correspondência secreta entre quem leu e quem, talvez, venha a ler.
Curiosamente, os post-its não são novidade no universo da leitura. Eles já ocupam, há muito, um lugar cativo nas mesas, nos cadernos, nas escrivaninhas e nas páginas de leitores atentos. Servem, nesse contexto privado, como pequenas âncoras de memória. São usados para marcar um parágrafo que emocionou, uma ideia que provocou, uma frase que se deseja guardar, quem sabe para repetir numa conversa; ou para pensar mais tarde; ou ainda para não se perder no fluxo ligeiro da vida.
Pesquisadores, estudantes, escritores, leitores obsessivos: todos conhecem bem esse gesto. É quase um ritual. Grudar um post-it na página 49 porque ali há uma definição de amor que desmonta todos os tratados filosóficos. Outro na página 121, onde o personagem, ao abrir uma janela, descobre o mundo – e, de quebra, quem lê também. Cada papelzinho colorido é uma tentativa de fixar no tempo aquilo que, de outra forma, poderia escapar como areia entre os dedos.
Mas eis que agora os post-its, antes confinados ao espaço íntimo da leitura, saem dos bastidores. Saltam das páginas escondidas e ganham protagonismo nas vitrines, nas prateleiras de destaque, nas capas dos livros. Tornam-se públicos. Tornam-se convite. Tornam-se cartazes minúsculos de afeto literário.
De certo modo, é como se a livraria inteira se transformasse no caderno de anotações de alguém. E o leitor, ao circular por aquele espaço, passeia também pelas impressões, pelas paixões e pelas epifanias de quem, antes dele, já habitou aquelas mesmas páginas. Cada bilhete é uma fresta aberta. “Um romance de tirar o fôlego e muito bem narrado”, diz um. Outro mais direto: “Se você gosta de Simone de Beauvoir, prepare-se.” Há ainda os lacônicos, que me parecem os mais potentes: “Leitura urgente”; ou “Pare de olhar e me devore logo”. Presa à capa da edição francesa de Auguries of Innocence (Présages d’Innocence), da poeta e roqueira norte-americana Patti Smith, há a seguinte advertência: “Estes poemas ressoam como oráculos da modernidade.” São alguns exemplos que me chamaram a atenção nas prateleiras de livrarias como Compagnie e A. Pedone Editeur. Mas a onda já se espalhou para além do Quartier Latin.
Penso no quanto esse gesto, simples, despretensioso, quase doméstico, devolve à experiência da leitura uma dimensão perdida na lógica impessoal das recomendações automatizadas. Ali não há robôs. Não há metadados. Há alguém. Uma pessoa real, com caligrafia real, com entusiasmo real, dizendo: “Olha, eu li. E acho que você deveria ler também.”
No Brasil, essa prática ainda não é tão comum. Mas começa a dar sinais de vida. Na Livraria Leonardo Da Vinci, no Centro do Rio, por exemplo, os bilhetes também costumam florescer entre os livros, por enquanto como jogos de humor (trechos risíveis de músicas populares casados com títulos de livro) e sedução literária (leia texto abaixo).
Quem sabe esse flerte entre o papelzinho e o leitor seja o caminho?! Uma forma de devolver à livraria (e à própria leitura) aquilo que ela tem de mais fabuloso: a arte do encontro. A livraria também é uma praça pública.
Em verdade, cada livro é um bilhete que alguém escreveu para o mundo. E, por isso mesmo, essa iniciativa soa como algo inusitado, alvissareiro. O post-it, agora colado na capa do livro, é a mão de quem já leu estendida para quem ainda não leu – e talvez nem saiba que precisa ler. Urgentemente.
Leituras invisíveis
A vitrine da Livraria Leonardo Da Vinci, no Rio, abriga um segredo embrulhado em papel pardo. Nada de capas brilhantes, sinopses reveladoras ou nomes consagrados em letras douradas. Ali, em alguns períodos do ano, os livros repousam disfarçados, como quem joga um charme discreto num baile de máscaras.
A proposta é simples e engenhosa: sugerir aos curiosos uma leitura sem que eles saibam o título, o autor ou a história. Os leitores são provocados apenas por pistas breves e inventivas, escritas à mão no embrulho, tipo papel de pão. “História do Brasil – Você é do creme ou é do crime?” ou “Não tenho tempo pra ler. Preciso postar, desculpe” são alguns dos exemplos. E o leitor, cúmplice, se lança nessa espécie de roleta russa literária.
É uma travessura contra o consumo apressado e visual que tem moldado nossas escolhas. Num tempo em que tudo é imagem, sinopse, marketing, o “Encontro às cegas Da Vinci” devolve ao livro o mistério perdido, o susto bom da descoberta. É como entrar num quarto escuro e confiar que ali dentro mora algo que vale a pena. O jogo de adivinhação transforma a compra num ritual de intuição: será um romance melancólico? Um conto distópico? Uma biografia disfarçada de ficção? A graça está justamente em não saber. Ao leitor, resta se deixar levar, como quem aceita um convite para dançar sem perguntar qual é a música.
Mais que um projeto de livraria, a ideia aproxima-se da velha arte de contar histórias ao pé do ouvido. Aquela magia da infância, quando alguém nos entregava um livro dizendo apenas: “Leva, acho que você vai gostar”. Há um gesto de confiança envolvido – na curadoria, no acaso, no próprio desejo de se surpreender. E é também um gesto de escuta: ao escolher um pacote com a inscrição “os estranhos ecos do passado”, o leitor talvez esteja, sem saber, reconhecendo a si mesmo.
É bonito ver uma livraria apostando no invisível. Num tempo em que se escolhe vinho pela etiqueta e livro pela capa, o “Encontro às cegas Da Vinci” lembra-nos que a literatura, afinal, é um encontro que se dá no escuro – quando alguém escreve sem saber quem vai ler, e alguém lê sem saber o que vai encontrar. No fundo, todo bom livro é assim: um salto no desconhecido, embalado por palavras que, como esses pacotes de papel pardo, escondem o essencial. Apenas à espera de quem ouse abrir.
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