segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Os caminhos de Péricles


 

Péricles Rocha compõe parte significativa da história das artes plásticas no Maranhão das últimas quatro décadas. É um artista em tempo integral, disciplinado, intenso, e que não faz concessões para manter viva a exuberância de traços e cores inconfundíveis, abrolhados no sertão do imaginário popular, ainda na infância da pequena Benedito Leite.

 

“Meus caminhos” é uma exposição que mapeia a alma peregrina de Péricles Rocha, que revela a imensidão de alegorias que vem pavimentando o destino do artista. De Codó a São João dos Patos. De São Luís a Alcântara. Do Rio de Janeiro a Florença. As impressões do andejo estão em toda parte, nessa comunhão de mitos e lendas e nas delicadas epifanias entre o sagrado e o profano que povoam a maturidade do artista, agora impregnada em trinta telas de rara harmonia estética. 

 

Péricles Rocha conhece como poucos as belezas e as agruras do Maranhão profundo. Aprendeu ainda muito cedo a alquimia das cores que nascem do urucum, da tabatinga, do toá. O ocre, o amarelo telha, o verde sutil, o vermelho sangue e o azul discreto iluminam cazumbás, guarás, inhaúmas, garças, paisagens, santos e quilombolas que desfilam nesse celeiro de inventividade do artista. 


 

Ora lúdico, ora sincrético, o pintor cria suas próprias cores – as cores de um Maranhão barroco, incorpóreo, às vezes de um Piauí ancestral – para alcançar, sem freios, a sua literatura de cordel numa tela de tecido ou esticada numa lona de caminhão de beira de estrada. Nos trabalhos dessa exposição há o mundo onírico contado pelas pretas velhas do interior, as padroeiras, os santos do pau oco, os bichos de assombração, as brincadeiras de menino, a fé sem cabresto.  

 

Como um São Sebastião açoitado pelas flechas do acrílico sobre a tela, o artista está aprisionado na hierarquia sacrossanta dos anjos de catedrais em ruínas de Alcântara. A arte é o mangue. São os olhos de neon do bumba meu boi de Santa Fé. É a Festa do Divino. É o Barrica de Godão. É o Pai Francisco com a máscara do mestre Abel.

  

“Eu pinto a gente que crer”, diz ele. E nessa exposição de agora estão histórias colecionadas pelo tempo. Para cada tela há um enredo, uma vida, um segredo, uma adivinhação, um degredo. “Meus caminhos”, portanto, é essa engenhosa profissão de fé. Péricles Rocha é meio Maranhão, meio norte. Arte emaranhada no mundo.

 

Zé Limeira, o surrealista bárbaro

 

Em 1980, a gráfica do Senado trouxe a lume, pela Coleção Machado de Assis, a quinta edição do livro Zé Limeira, poeta do absurdo, de Orlando Tejo (a primeira edição da obra é de 1973), com capa e ilustrações de um Péricles Rocha ainda em início de carreira. Hoje essa edição é uma raridade, encontrada somente em alguns poucos sebos do País.  



A primeira exposição individual, de 1977, na Galeria Sérgio Milliet, no Rio, ainda fazia eco quando Péricles recebera o convite do jornalista e poeta paraibano Orlando Tejo, intermediado pelo então senador José Sarney, para ilustrar o livro sobre o lendário cordelista Zé Limeira. À época, o artista maranhense era servidor público da gráfica do Senado. 

 

Foi tudo muito rápido e Péricles teve pouco mais de um mês para entregar treze desenhos em bico de pena a partir da leitura dos versos de Zé Limeira. “Entreguei os originais ao Orlando Tejo e nunca mais os recebi de volta”, conta o artista. Embora naquele momento sem muita intimidade com a obra do cordelista analfabeto nascido em Teixeira (PB), Péricles não encontrou dificuldades para traduzir a explosão de delírios nos versos de Zé Limeira.




Único surrealista bárbaro perdido nos sertões do Nordeste, como observa Tejo, Zé Limeira ainda hoje exerce fascínio entre os estudiosos da cultura popular brasileira, por seu sotaque provocador, brejeiro e universal, pelas corajosas inflexões de andarilho mítico, num período que precede vocações transgressoras no Brasil. 

 

‘Ano passado eu morri/ mas esse ano eu não morro”, os versos que em 1976 ficaram famosos na canção Sujeito de sorte, de Belchior, em verdade pertencem na essência ao rico acervo de cantorias de Zé Limeira inventariado – ou mesmo fantasiado, reinventado – por Tejo. 



A canção de Belchior, que virou quase um hino desses anos soturnos com as dores da pandemia, e também de obscurantismo no cenário político brasileiro dos últimos meses, nasce de um jogo de palavras do homem simples dos confins nordestinos que faz tremer a verossimilhança, que confunde realidade com fantasia:    

 

Em já cantei no Recife,

Dentro do Pronto Socorro,

Ganhei duzentos mil réis,

Comprei duzentos cachorro,

Morri no ano passado,

Mas esse ano eu não morro!

 

Foi com as imagens captadas nesse playground mágico, de luminosa estroinice, que Péricles Rocha começou a urdir a sua teia de ilustrações para o livro sobre o poeta do absurdo. O artista materializou em desenhos ilógicos as pelejas de repentistas alados, o truque das escrituras sagradas, o humor improvável, o coice da besta-fera, o homem em permanente estado de mutação, a viola reencarnada. 

 

Quando Dom Pedro Segundo

Governava a Palestina

E Dona Leopoldina

Devia a Deus e ao mundo,

O poeta Zé Raimundo

Começou a castrar jumento,

Teve um dia um pensamento:

Tudo aquilo era boato,

Oito noves fora quatro,

Diz o Novo Testamento!



Forjada nesses surtos da imaginação humana, desde as primeiras leituras dos versos de Zé Limeira, a obra de Péricles Rocha há muito flerta com o surrealismo, a loucura, o mimetismo do medo com as memórias da infância, a poesia que causa solavancos. O cordel telúrico do artista maranhense é uma vastidão de lembranças picotadas a cada nova exposição, a cada novo projeto. 

 

A obra de Péricles Rocha é uma bela corrente de invenção. Como um dia também inventado talvez tenha sido o personagem Zé Limeira.  

 

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